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As vítimas algozes e as intenções do Dr. Macedo
O romance As vítimas-algozes — quadros da escravidão,
publicado em 1869, constitui uma obra de cunho emancipacionista, que narra
histórias de escravos de confiança que traíram os seus senhores e senhoras, roubando,
assassinando, envenenando e corrompendo. Nas três novelas que compõem o livro —
Simeão, o crioulo, Pai-Raiol, o feiticeiro e Lucinda, a mucama — Macedo tentava mostrar como a escravidão
podia transformar as vítimas (escravos) em algozes dos senhores, e os algozes
(senhores), em vítimas dos seus escravos.
De acordo com David Brookshaw, tendo por base um artigo
publicado em A Província de São Paulo (10/01/1880), era provável que tivesse
sido uma obra de encomenda, pedida pelo Imperador D. Pedro II, cujo objetivo
seria o de preparar o “espírito” dos senhores para a lei do Ventre Livre
(1871). Escrito por encomenda ou não, Macedo fez uma explícita propaganda das
idéias que viriam a fazer parte da Lei do Ventre Livre. Como veremos, há nele a
defesa da proposta da libertação do ventre escravo e da indenização dos
senhores e a clara intenção do autor em colaborar, enquanto romancista, para o
convencimento dos proprietários de escravos quanto à necessidade da
emancipação:
[...] o governo e a imprensa devem esforçar-se por iluminar
os proprietários de escravos e convencê-los de que está em seus próprios
interesses auxiliar o Estado na obra imensa e escabrosa da emancipação, para
que ela, que é infalível, se efetue com a menor sombra possível de sacrifícios.
[...] Como, porém, é dever de cada um concorrer a seu modo [...] pagaremos o
nosso tributo nas proporções da nossa pobreza, escrevendo ligeiros romances.
A obra, que Macedo logo no prefácio diz ser indicada aos
senhores de escravos, tenta convencer o leitor a acabar com a escravidão,
mostrando que esta, ao corromper o negro, traria danos irreversíveis à
sociedade brasileira como um todo e, mais especificamente, à família do senhor.
Deste modo, escreve Macedo no referido texto que “a sífilis moral da escravidão
infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, e sua raiva
concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a
vida e a honra de seus incônscios opressores”.
Segundo o autor, para “conscientizar” os senhores, o
literato dis- poria de duas alternativas. A primeira delas seria a de expor o
sofrimento dos escravos: “um desses caminhos se estende por entre as misérias
tristíssimas, e os incalculáveis sofrimentos do escravo [...]. É o quadro do
mal que o senhor, ainda sem o querer, faz ao escravo”. Enquanto a segunda seria
a de mostrar a perversão dos valores da sociedade branca, devido ao contato com
a escravidão:
Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a
torpeza da escravidão, sua influência malvada, suas deformidades morais e
congênitas, seus instintos ruins, seu horror, seus perigos [...], é também
contribuir para condená-la e para fazer mais suave e simpática a idéia da
emancipação que a aniquila.
Pelo título da obra e pelos nomes dados aos personagens, a
escolha do nosso literato é evidente: Simeão lembra símio, Lucinda lembra
Lúcifer e Pai-Raiol lembra raios. Mas o autor explicita a sua intenção:
“preferimos este segundo caminho: é o que mais convém ao nosso em- penho”.7
Seguindo sua intenção, Macedo tenta expor ao seu leitor “os vícios ignóbeis, a
perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravo (...)”. O que o autor não
deixa claro é o motivo pelo qual acreditava ser este o melhor caminho para o
seu empenho de convencer os senhores da necessidade da emancipação. É provável
que, dada a forma como Macedo entendera que as relações entre senhores e
escravos foram estabelecidas no Brasil, não acreditasse em verdadeira mudança
no quadro social apenas apelando para a humanidade dos senhores. Afinal, a
justificativa ideológica para a manutenção da escravidão no Brasil era a
necessidade de civilizar os escravos através do ensinamento da moral católica e
da constituição de uma ética para o trabalho, objetivos que, para a sociedade
da época, não haviam sido atingidos e prova disto era a discussão sobre uma
legislação que obrigasse o liberto a tomar contrato de trabalho, bem como a
existência das alforrias condicionais, que demonstravam o pensamento senhorial
de que os forros — despreparados para a
liberdade — deveriam passar de escravos
a homens livres dependentes. Portanto, parece óbvio que o autor seria muito
mais persuasivo se apelasse para o próprio egoísmo do senhor, mostrando que o
escravo não seria o único prejudicado pela perpetuação da escravidão no Brasil.
Ao narrar histórias de escravos dissimulados, depravados,
ladrões e assassinos, à primeira vista pode parecer-nos que o autor está
carregando nas características pejorativas do negro, porém, em uma leitura mais
atenta, fica claro que Macedo descreve pejorativamente a figura do escravo.
Deste modo, escreve que “o escravo que vamos expor a vossos olhos é o escravo
das nossas casas e de nossas fazendas, o ho mem que nasceu homem e que a
escravidão tornou peste ou fera”, ou seja, Macedo afirmava que a degeneração do
negro não era inerente a ele, o que o tornava amoral era a escravidão. Esta
idéia é repetida com exaustão praticamente ao final de cada capítulo das três
novelas que compõem As vítimas-algozes.
Esta é a tese fundamental na tentativa de Macedo de formar
uma nacionalidade. Para ele, se o que corrompia o negro era a escravidão, só
quando esta cessasse se poderia iniciar sua regeneração, através do ensinamento
da moral católica, do nascimento de negros que não teriam sido marcados pela
experiência do cativeiro e também pela miscigenação com o branco. Deste modo,
poderia haver uma contribuição do negro na formação de um povo brasileiro, sem
que esta contribuição representasse um empecilho no processo civilizatório do
país.
Para confirmar esta interpretação de As vítimas-algozes, é
importante percebermos a visão que Macedo tinha do escravo em um discurso
proferido no IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), em 1871, onde
comenta a Lei do Ventre Livre:
Em nossa pátria, o céu quase sempre tão brando é toldado por
nuvens escuras, que se aproximam e se misturam; as questões de política interna
se resolvem e se agravam com a inexorável questão social, que aliás, para a
glória do Brasil, foi em sua moderada e prudente resolução iniciada nobre e
santamente, com a purificação da inocência, até bem pouco maculada pelo selo
negro da escravidão, imposto duas vezes: uma ao feto, no ventre da mãe escrava;
outra ao brasileiro recém-nascido às portas da vida, predestinada inferno.
Portanto, neste discurso, em que Macedo denomina de
brasileiro aquele que nascia escravo, e a Lei do Ventre Livre, de “purificação
da inocência”, fica claro que, acabada a escravidão, o negro, ou melhor, o crioulo,
poderia vir a integrar a sociedade brasileira. Ao se referir ao escravo como
brasileiro, Macedo tem uma visão distinta do conceito de nacionalidade,
estabelecido pela Constituição Brasileira de 1824, segundo a qual só eram
considerados brasileiros aqueles que “no Brasil tiverem nascido, quer sejam
ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não
resida por serviço de sua nação”.
Se podemos perceber na obra de Macedo um fundo moralista, é
certo que não podemos considerá-la plenamente conservadora. O autor tentava,
então, fornecer, no âmbito político e social do país, um modelo a ser seguido,
tanto pelo cidadão comum quanto pelo político brasileio. Neste modelo, o
negro — ainda que escravo — era enquadrado como compatriota. Assim, ao
argumentar a favor da emancipação escrava, Macedo apelava para o sentimento de
nacionalidade da elite brasileira — tão
caro àquela geração romântica — já que,
de acordo com o autor, a escravidão era imposta “ao brasileiro recém-nascido às
portas da vida”, o que equivalia a dizer que a perpetuação da escravidão no
Brasil implicava na constante escravização de brasileiros.
As vítimas-algozes é, portanto, uma obra de tese, onde o
autor, manipulando o “imaginário do medo” da classe senhorial, tenta convencer
o leitor da necessidade da emancipação gradual dos escravos, sem que isto acarretasse prejuízo à lavoura,
haja vista que o autor deendia também a indenização dos senhores de escravos
pelo governo, o que procura deixar claro logo no prefácio do livro:
Como quer que seja, mau grado os interesses que hão de
padecer, a despeito das oposições que se fazem e se farão sentir, embalde as
fáceis objeções denunciadoras de indubitáveis inconveniências e senões em
quantos projetos e imagináveis planos se engendrarem para que menos violenta e
dolorosa se resolva a questão social, é positivo que tocamos às vésperas da
emancipação dos escravos. Ninguém se iluda, ninguém se deixe iludir. Não há
combinação de interesses, não há partido político, não há governo, por mais
forte que se presuma, que possa impedir o proceloso aconteci- mento. [...] A
emancipação imediata e absoluta dos escravos, que aliás pode vir a ser um fato
indeclinável e súbito na hipótese de adiamento teimoso do problema, e
provocador do ressentimento do mundo, seria louco arrojo que poria em convulsão
o país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em
miséria o povo, em bancarrota o estado. [...] A emancipação gradual iniciada
pelos ventres das escravas, e completadas por meios indiretos no correr de
prazo não muito longo, e diretos no fim desse prazo com indenização garantida
aos senhores.
Vemos, pelo prefácio, que a discussão sobre a escravidão
estava na “ordem do dia”. Macedo parecia escrever tendo em conta os últimos
acontecimentos da política nacional, que tinham colocado no poder o ministério
de Itaboraí, conservador; sendo que ele próprio tinha sido eleito deputado pela
Província do Rio de Janeiro e apoiara o ministério liberal de Zacarias. Este já
havia mostrado ante a Coroa a sua disposição em implementar a reforma servil,
ao contrário do ministério Itaboraí, resistente à reforma.
Ao afirmar que a emancipação poderia tornar-se um “fato
súbito” no caso de um “adiamento do problema”, Macedo parece tentar explicar
que à mudança de gabinete ministerial não poderia corresponder um recuo no que
dissesse respeito à reforma servil. Mais do que isto, ao afirmar que “não há
governo [...] que possa impedir o proceloso acontecimento”, Macedo parece
estar, de antemão, defendendo o Imperador das críticas que, porventura,
pudessem atingi-lo, quando a Lei do Ventre Livre fosse implementada. O que
pretendia, então, era mostrar que tal lei era, dentro das possibilidades, a
melhor alternativa para a emancipação da escravidão, já que a abolição
imediata, além de trazer desordem para a produção agrícola, arruinaria de vez o
Estado que, devido aos gastos com a guerra do Paraguai, se encontrava em
situação financeira bastante desfavorável.
A defesa que fazia do Imperador era necessária diante da
repercussão negativa que houve à Fala do Trono de 1867 e de 1868, quando Pedro
II tocou na questão da emancipação.17 Esta era uma das principais preocupações
de Macedo em um memorial dirigido ao Imperador em março de 1868:
A emancipação dos escravos levada à efeito como V. Alt.
Imperial entende e deseja, em escrupulosa moderação, com respeito à
propriedade, e encetando-se pela liberdade dos ventres [...] é uma necessidade
indeclinável; mas ainda encontrará a mais decidida oposição, acenderá sério
ressentimento no ânimo dos lavradores menos esclarecidos, e a classe dos
lavradores era e creio que ainda é a mais dedicada ao elemento monárquico de
nosso sistema de governo. Essa oposição [...] poderão ser nocivos à Augusta
Pessoa de V. Alt. Imperial; porque inconveniente se faz correr que é V. Alt.
Imperial o ativo [...] e insistente instigador da emancipação.
Macedo quer a emancipação, porém parece concordar com a tese
de Zacarias de que “o rei reina e não governa”, ou seja, a responsabili- dade
pelos atos do poder moderador deveria caber aos ministros. Tinha consciência de
que a classe proprietária ficaria bastante desgostosa com a Lei do Ventre Livre
e de que era ela quem sustentava o Estado. Com o intuito de diminuir o desgaste
da figura do Imperador, acrescenta:
A emancipação é uma inevitável e profunda revolução
econômica, seus admiráveis e majestosos resultados serão colhidos e apreciados
pelas gerações futuras: a geração atual pagará o preço de enormes sacrifícios
essa bela vitória da humanidade e da civilização; saibam pois os ministros de
V. Alt. Imperial assumir diante da geração atual toda a glória e todo peso da
idéia emancipadora.
Ao que parece, os conselhos dados por Macedo a Pedro II — da necessidade de se promover a emancipação
escrava através dos nasci- turos, com a indenização dos proprietários e com a
responsabilidade atribuída ao gabinete ministerial — tinham por base a atitude de José de
Alencar, então Ministro da Justiça do gabinete Itaboraí. Alencar, sendo a favor
da emancipação voluntária, se recusara a discutir durante o seu ministério a
questão servil, por ser abertamente contra qualquer lei que impusesse a
emancipação aos senhores de escravos.
Neste conjunto de três novelas, Macedo busca impressionar o
leitor mais pelo realismo com que são escritas as histórias do que pela própria
violência do enredo. Este realismo com que são feitas as descrições —
permitindo ao leitor do século XIX identificar os locais, as práticas sociais e
as relações entre os personagens das tramas com a sua vida cotidiana — deveria ter o efeito de um retrato sem
retoques (coisa que o leitor do romantismo não andava lá muito acostumado);
nele o senhor deveria reconhecer-se como o verdadeiro responsável pela
criminalidade dos escravos, já que, no discurso de Macedo, a perversão é
atribuída à escravidão e não à raça negra: “sua ingratidão e a sua perversidade
não se explicam pela natureza da raça, o que seria absurdo; explicam-se
pela condição de escravo, que corrompe e
perverte o homem”. E o único agente social capaz de exterminar a escravidão era
o próprio senhor: “O negro escravo é assim. Se não o quereis assim, acabai com
a escravidão”.
Neste caso, restaria ao senhor arcar com as dificuldades
advindas da mudança na estrutura de trabalho e preservar suas famílias, ou
então manter a escravidão e também a desmoralização da sociedade. É com o
intuito de descrever as influências nocivas da manutenção da escravidão que são
escritas as histórias:
queremos agora contar-vos em alguns romances histórias
verdadeiras que todos vós já sabeis, sendo certo que em as já saberdes é que
pode consistir o único merecimento que porventura tenha este trabalho; porque
na vossa ciência e na vossa consciência se hão de firmar as verdades que vamos
dizer.
O fato de Macedo ter consciência de que as histórias
contadas já eram bastante conhecidas do seu público parece descartar a
possibilidade de que o autor pretendesse atingir seu leitor pela violência do
enredo. Se aquela sociedade já estava cansada de saber das relações sociais
impostas pela escravidão, como se poderia concretizar a sua intenção de
manipular um suposto medo senhorial? Possivelmente, através da tentativa de
mostrar como situações do cotidiano senhor-escravo, já bastante naturalizadas
pela sociedade, poderiam desembocar em atos violentos do escravo contra o
senhor. Neste caso, a intenção do autor seria menos de atingir a consciência
senhorial, através de cenas de violências explícitas, do que de trazer para a
casa de cada leitor o perigo iminente, levantando ali uma ponta de dúvida sobre
cada escravo que possuísse, fosse este de confiança ou não.
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Fonte:
Sharyse Amaral: “Emancipacionismo e as Representações do Escravo na Obra Literária de Joaquim Manuel de Macedo”. Afro-Ásia, 35 (2007), disponível digitalmente no site: http://www.afroasia.ufba.br/
Sharyse Amaral: “Emancipacionismo e as Representações do Escravo na Obra Literária de Joaquim Manuel de Macedo”. Afro-Ásia, 35 (2007), disponível digitalmente no site: http://www.afroasia.ufba.br/
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