14/11/2013

As Vítimas Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo

 Joaquim Manuel de Macedo - As Vítimas Algozes - Iba Mendes
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As vítimas algozes e as intenções do Dr. Macedo

O romance As vítimas-algozes — quadros da escravidão, publicado em 1869, constitui uma obra de cunho emancipacionista, que narra histórias de escravos de confiança que traíram os seus senhores e senhoras, roubando, assassinando, envenenando e corrompendo. Nas três novelas que compõem o livro — Simeão, o crioulo, Pai-Raiol, o feiticeiro e Lucinda, a mucama  — Macedo tentava mostrar como a escravidão podia transformar as vítimas (escravos) em algozes dos senhores, e os algozes (senhores), em vítimas dos seus escravos.

De acordo com David Brookshaw, tendo por base um artigo publicado em A Província de São Paulo (10/01/1880), era provável que tivesse sido uma obra de encomenda, pedida pelo Imperador D. Pedro II, cujo objetivo seria o de preparar o “espírito” dos senhores para a lei do Ventre Livre (1871). Escrito por encomenda ou não, Macedo fez uma explícita propaganda das idéias que viriam a fazer parte da Lei do Ventre Livre. Como veremos, há nele a defesa da proposta da libertação do ventre escravo e da indenização dos senhores e a clara intenção do autor em colaborar, enquanto romancista, para o convencimento dos proprietários de escravos quanto à necessidade da emancipação:

[...] o governo e a imprensa devem esforçar-se por iluminar os proprietários de escravos e convencê-los de que está em seus próprios interesses auxiliar o Estado na obra imensa e escabrosa da emancipação, para que ela, que é infalível, se efetue com a menor sombra possível de sacrifícios. [...] Como, porém, é dever de cada um concorrer a seu modo [...] pagaremos o nosso tributo nas proporções da nossa pobreza, escrevendo ligeiros  romances.

A obra, que Macedo logo no prefácio diz ser indicada aos senhores de escravos, tenta convencer o leitor a acabar com a escravidão, mostrando que esta, ao corromper o negro, traria danos irreversíveis à sociedade brasileira como um todo e, mais especificamente, à família do senhor. Deste modo, escreve Macedo no referido texto que “a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, e sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra de seus incônscios opressores”.

Segundo o autor, para “conscientizar” os senhores, o literato dis- poria de duas alternativas. A primeira delas seria a de expor o sofrimento dos escravos: “um desses caminhos se estende por entre as misérias tristíssimas, e os incalculáveis sofrimentos do escravo [...]. É o quadro do mal que o senhor, ainda sem o querer, faz ao escravo”. Enquanto a segunda seria a de mostrar a perversão dos valores da sociedade branca, devido ao contato com a escravidão:

Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a torpeza da escravidão, sua influência malvada, suas deformidades morais e congênitas, seus instintos ruins, seu horror, seus perigos [...], é também contribuir para condená-la e para fazer mais suave e simpática a idéia da emancipação que a aniquila.

Pelo título da obra e pelos nomes dados aos personagens, a escolha do nosso literato é evidente: Simeão lembra símio, Lucinda lembra Lúcifer e Pai-Raiol lembra raios. Mas o autor explicita a sua intenção: “preferimos este segundo caminho: é o que mais convém ao nosso em- penho”.7 Seguindo sua intenção, Macedo tenta expor ao seu leitor “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravo (...)”. O que o autor não deixa claro é o motivo pelo qual acreditava ser este o melhor caminho para o seu empenho de convencer os senhores da necessidade da emancipação. É provável que, dada a forma como Macedo entendera que as relações entre senhores e escravos foram estabelecidas no Brasil, não acreditasse em verdadeira mudança no quadro social apenas apelando para a humanidade dos senhores. Afinal, a justificativa ideológica para a manutenção da escravidão no Brasil era a necessidade de civilizar os escravos através do ensinamento da moral católica e da constituição de uma ética para o trabalho, objetivos que, para a sociedade da época, não haviam sido atingidos e prova disto era a discussão sobre uma legislação que obrigasse o liberto a tomar contrato de trabalho, bem como a existência das alforrias condicionais, que demonstravam o pensamento senhorial de que os forros  — despreparados para a liberdade  — deveriam passar de escravos a homens livres dependentes. Portanto, parece óbvio que o autor seria muito mais persuasivo se apelasse para o próprio egoísmo do senhor, mostrando que o escravo não seria o único prejudicado pela perpetuação da escravidão no Brasil.

Ao narrar histórias de escravos dissimulados, depravados, ladrões e assassinos, à primeira vista pode parecer-nos que o autor está carregando nas características pejorativas do negro, porém, em uma leitura mais atenta, fica claro que Macedo descreve pejorativamente a figura do escravo. Deste modo, escreve que “o escravo que vamos expor a vossos olhos é o escravo das nossas casas e de nossas fazendas, o ho mem que nasceu homem e que a escravidão tornou peste ou fera”, ou seja, Macedo afirmava que a degeneração do negro não era inerente a ele, o que o tornava amoral era a escravidão. Esta idéia é repetida com exaustão praticamente ao final de cada capítulo das três novelas que compõem As vítimas-algozes.

Esta é a tese fundamental na tentativa de Macedo de formar uma nacionalidade. Para ele, se o que corrompia o negro era a escravidão, só quando esta cessasse se poderia iniciar sua regeneração, através do ensinamento da moral católica, do nascimento de negros que não teriam sido marcados pela experiência do cativeiro e também pela miscigenação com o branco. Deste modo, poderia haver uma contribuição do negro na formação de um povo brasileiro, sem que esta contribuição representasse um empecilho no processo civilizatório do país.

Para confirmar esta interpretação de As vítimas-algozes, é importante percebermos a visão que Macedo tinha do escravo em um discurso proferido no IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), em 1871, onde comenta a Lei do Ventre Livre:

Em nossa pátria, o céu quase sempre tão brando é toldado por nuvens escuras, que se aproximam e se misturam; as questões de política interna se resolvem e se agravam com a inexorável questão social, que aliás, para a glória do Brasil, foi em sua moderada e prudente resolução iniciada nobre e santamente, com a purificação da inocência, até bem pouco maculada pelo selo negro da escravidão, imposto duas vezes: uma ao feto, no ventre da mãe escrava; outra ao brasileiro recém-nascido às portas da vida, predestinada inferno.

Portanto, neste discurso, em que Macedo denomina de brasileiro aquele que nascia escravo, e a Lei do Ventre Livre, de “purificação da inocência”, fica claro que, acabada a escravidão, o negro, ou melhor, o crioulo, poderia vir a integrar a sociedade brasileira. Ao se referir ao escravo como brasileiro, Macedo tem uma visão distinta do conceito de nacionalidade, estabelecido pela Constituição Brasileira de 1824, segundo a qual só eram considerados brasileiros aqueles que “no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação”.

Se podemos perceber na obra de Macedo um fundo moralista, é certo que não podemos considerá-la plenamente conservadora. O autor tentava, então, fornecer, no âmbito político e social do país, um modelo a ser seguido, tanto pelo cidadão comum quanto pelo político brasileio. Neste modelo, o negro  — ainda que escravo  — era enquadrado como compatriota. Assim, ao argumentar a favor da emancipação escrava, Macedo apelava para o sentimento de nacionalidade da elite brasileira  — tão caro àquela geração romântica  — já que, de acordo com o autor, a escravidão era imposta “ao brasileiro recém-nascido às portas da vida”, o que equivalia a dizer que a perpetuação da escravidão no Brasil implicava na constante escravização de brasileiros.

As vítimas-algozes é, portanto, uma obra de tese, onde o autor, manipulando o “imaginário do medo” da classe senhorial, tenta convencer o leitor da necessidade da emancipação gradual dos escravos,  sem que isto acarretasse prejuízo à lavoura, haja vista que o autor deendia também a indenização dos senhores de escravos pelo governo, o que procura deixar claro logo no prefácio do livro:

Como quer que seja, mau grado os interesses que hão de padecer, a despeito das oposições que se fazem e se farão sentir, embalde as fáceis objeções denunciadoras de indubitáveis inconveniências e senões em quantos projetos e imagináveis planos se engendrarem para que menos violenta e dolorosa se resolva a questão social, é positivo que tocamos às vésperas da emancipação dos escravos. Ninguém se iluda, ninguém se deixe iludir. Não há combinação de interesses, não há partido político, não há governo, por mais forte que se presuma, que possa impedir o proceloso aconteci- mento. [...] A emancipação imediata e absoluta dos escravos, que aliás pode vir a ser um fato indeclinável e súbito na hipótese de adiamento teimoso do problema, e provocador do ressentimento do mundo, seria louco arrojo que poria em convulsão o país, em desordem descomunal e em soçobro a riqueza particular e pública, em miséria o povo, em bancarrota o estado. [...] A emancipação gradual iniciada pelos ventres das escravas, e completadas por meios indiretos no correr de prazo não muito longo, e diretos no fim desse prazo com indenização garantida aos senhores.

Vemos, pelo prefácio, que a discussão sobre a escravidão estava na “ordem do dia”. Macedo parecia escrever tendo em conta os últimos acontecimentos da política nacional, que tinham colocado no poder o ministério de Itaboraí, conservador; sendo que ele próprio tinha sido eleito deputado pela Província do Rio de Janeiro e apoiara o ministério liberal de Zacarias. Este já havia mostrado ante a Coroa a sua disposição em implementar a reforma servil, ao contrário do ministério Itaboraí, resistente à reforma.

Ao afirmar que a emancipação poderia tornar-se um “fato súbito” no caso de um “adiamento do problema”, Macedo parece tentar explicar que à mudança de gabinete ministerial não poderia corresponder um recuo no que dissesse respeito à reforma servil. Mais do que isto, ao afirmar que “não há governo [...] que possa impedir o proceloso acontecimento”, Macedo parece estar, de antemão, defendendo o Imperador das críticas que, porventura, pudessem atingi-lo, quando a Lei do Ventre Livre fosse implementada. O que pretendia, então, era mostrar que tal lei era, dentro das possibilidades, a melhor alternativa para a emancipação da escravidão, já que a abolição imediata, além de trazer desordem para a produção agrícola, arruinaria de vez o Estado que, devido aos gastos com a guerra do Paraguai, se encontrava em situação financeira bastante desfavorável.

A defesa que fazia do Imperador era necessária diante da repercussão negativa que houve à Fala do Trono de 1867 e de 1868, quando Pedro II tocou na questão da emancipação.17 Esta era uma das principais preocupações de Macedo em um memorial dirigido ao Imperador em março de 1868:

A emancipação dos escravos levada à efeito como V. Alt. Imperial entende e deseja, em escrupulosa moderação, com respeito à propriedade, e encetando-se pela liberdade dos ventres [...] é uma necessidade indeclinável; mas ainda encontrará a mais decidida oposição, acenderá sério ressentimento no ânimo dos lavradores menos esclarecidos, e a classe dos lavradores era e creio que ainda é a mais dedicada ao elemento monárquico de nosso sistema de governo. Essa oposição [...] poderão ser nocivos à Augusta Pessoa de V. Alt. Imperial; porque inconveniente se faz correr que é V. Alt. Imperial o ativo [...] e insistente instigador da emancipação.

Macedo quer a emancipação, porém parece concordar com a tese de Zacarias de que “o rei reina e não governa”, ou seja, a responsabili- dade pelos atos do poder moderador deveria caber aos ministros. Tinha consciência de que a classe proprietária ficaria bastante desgostosa com a Lei do Ventre Livre e de que era ela quem sustentava o Estado. Com o intuito de diminuir o desgaste da figura do Imperador, acrescenta:

A emancipação é uma inevitável e profunda revolução econômica, seus admiráveis e majestosos resultados serão colhidos e apreciados pelas gerações futuras: a geração atual pagará o preço de enormes sacrifícios essa bela vitória da humanidade e da civilização; saibam pois os ministros de V. Alt. Imperial assumir diante da geração atual toda a glória e todo peso da idéia emancipadora.

Ao que parece, os conselhos dados por Macedo a Pedro II  — da necessidade de se promover a emancipação escrava através dos nasci- turos, com a indenização dos proprietários e com a responsabilidade atribuída ao gabinete ministerial  — tinham por base a atitude de José de Alencar, então Ministro da Justiça do gabinete Itaboraí. Alencar, sendo a favor da emancipação voluntária, se recusara a discutir durante o seu ministério a questão servil, por ser abertamente contra qualquer lei que impusesse a emancipação aos senhores de escravos.

Neste conjunto de três novelas, Macedo busca impressionar o leitor mais pelo realismo com que são escritas as histórias do que pela própria violência do enredo. Este realismo com que são feitas as descrições — permitindo ao leitor do século XIX identificar os locais, as práticas sociais e as relações entre os personagens das tramas com a sua vida cotidiana  — deveria ter o efeito de um retrato sem retoques (coisa que o leitor do romantismo não andava lá muito acostumado); nele o senhor deveria reconhecer-se como o verdadeiro responsável pela criminalidade dos escravos, já que, no discurso de Macedo, a perversão é atribuída à escravidão e não à raça negra: “sua ingratidão e a sua perversidade não se explicam pela natureza da raça, o que seria absurdo; explicam-se pela  condição de escravo, que corrompe e perverte o homem”. E o único agente social capaz de exterminar a escravidão era o próprio senhor: “O negro escravo é assim. Se não o quereis assim, acabai com a escravidão”.

Neste caso, restaria ao senhor arcar com as dificuldades advindas da mudança na estrutura de trabalho e preservar suas famílias, ou então manter a escravidão e também a desmoralização da sociedade. É com o intuito de descrever as influências nocivas da manutenção da escravidão que são escritas as histórias:

queremos agora contar-vos em alguns romances histórias verdadeiras que todos vós já sabeis, sendo certo que em as já saberdes é que pode consistir o único merecimento que porventura tenha este trabalho; porque na vossa ciência e na vossa consciência se hão de firmar as verdades que vamos dizer.

O fato de Macedo ter consciência de que as histórias contadas já eram bastante conhecidas do seu público parece descartar a possibilidade de que o autor pretendesse atingir seu leitor pela violência do enredo. Se aquela sociedade já estava cansada de saber das relações sociais impostas pela escravidão, como se poderia concretizar a sua intenção de manipular um suposto medo senhorial? Possivelmente, através da tentativa de mostrar como situações do cotidiano senhor-escravo, já bastante naturalizadas pela sociedade, poderiam desembocar em atos violentos do escravo contra o senhor. Neste caso, a intenção do autor seria menos de atingir a consciência senhorial, através de cenas de violências explícitas, do que de trazer para a casa de cada leitor o perigo iminente, levantando ali uma ponta de dúvida sobre cada escravo que possuísse, fosse este de confiança ou não.

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Fonte:
Sharyse Amaral: “Emancipacionismo e as Representações do Escravo na Obra Literária de Joaquim Manuel de Macedo”. Afro-Ásia, 35 (2007), disponível digitalmente no site: http://www.afroasia.ufba.br/

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