Para
baixar este livro gratuitamente em formato PDF, acessar o site do “Projeto Livro Livre”: http://www.projetolivrolivre.com/
(Download)
(Download)
Os
livros estão em ordem alfabética: autor/título
(coluna à esquerda) e título/autor
(coluna à direita).
---
Joaquim
Manoel de Macedo e
as Memórias da
Rua do Ouvidor
O escritor
Joaquim Manoel de
Macedo iniciou-se na
literatura com grande notoriedade,
em 1844, com
a publicação de A
Moreninha, obra com
a qual inaugura
o romance nacional, embora a crítica literária divida o mérito e apresente, como Candido, por exemplo, que o romance “toma corpo em 1843 com
a obra O filho do pescador de Teixeira e Sousa e a Moreninha de Joaquim Manoel
de Macedo, no ano seguinte” (2000, p. 100).
Macedo, cujo nome se inscreve entre as maiores
figuras da literatura
contemporânea brasileira, participou,
ainda, da vida
política. Porém, a
obra Memórias da Rua do
Ouvidor, publicada em 1878, é
central, para os objetivos desta pesquisa, pois, nela, o escritor, além do aspecto literário, registra suas impressões e
seus conhecimentos histórico-geográficos sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde viveu a maior
parte de sua vida.
Memórias da
Rua do Ouvidor é
uma narrativa histórico-folhetinesca da
qual o narrador se serve para nos remeter ao passado
e retratar usos e costumes de uma classe social urbana e afrancesada, sob o regime imperial,
em meados do século XIX. A obra foi publicada, inicialmente, como folhetim, no Jornal do
Comércio, em 1877, e, depois, em 1878, os textos foram reunidos na forma de romance. O folhetim
se publica com uma certa periodicidade e há uma autonomia visível entre partes ou
capítulos da obra.
Não se
trata de uma
autonomia apenas no
nível formal dos
episódios da série,
que corresponde, também, a
uma autonomia em
termos de conjunto
de ações e
personagens, descritas de forma
independente. Nesse sentido,
Memórias da Rua
do Ouvidor é uma composição
aberta porque não se verifica uma intriga ou uma situação que se problematiza e
se intensifique (clímax) e, finalmente, se resolva.
O narrador descreve a rua e
apresenta fatos a ela relacionados em pequenas narrativas, constituindo aspectos
cotidianos, geralmente, situações
bizarras, da formação
da cultura brasileira em geral e
da Rua do Ouvidor, em particular, ficcionalizados ou não. No conjunto da
narrativa, o espaço da Rua do Ouvidor é o único elemento que permanece
explicitamente em todos os capítulos. Na linguagem genettiana, trata-se de
uma isotopia unificadora (1971, p.33).
O narrador identifica o
seu texto como folhetim:
“[...] pois que a minha tradição da Rua
de Aleixo Manuel
não pode caber
tôda neste folhetim,
eu seria o mais
inexperiente e insensato dos folhetinistas, se não
interrompesse a narração, [...]” (Sic) (p. 8-9). Então, nós o trataremos como
narrativa literária.
A obra
apresenta uma série
de narrativas que
se configuram em
uma montagem romanceada ou
em um romance
caracterizado como uma
sobreposição de textos
Para Candido, o romance
é um “gênero
sem normas”, e
acrescenta: no Brasil,
o romance romântico, para
além do valor
estético e da
dinamização do projeto
nacionalista, tornou-se uma “forma
de pesquisa e descoberta do país” (2000, p. 99). Macedo produz uma narrativa ficcional, operando
transgressões e apresentando
aspectos de verdades
atribuídos a pessoas pouco
representativas historicamente, como
vice-reis e nobres,
desconhecidos da História oficial do
país e outras
personagens secundárias como
funcionários liberais, subalternos
e escravos entre outros.
O narrador
não registra a
História, nem a
ficção, mas nos
adverte que, “salvo
o respeito devido à sua condição de rica, bela e ufanosa dama, tomo com
a minha autoridade de memorialista-historiador26, e
exponho ao público
a Rua do
Ouvidor em seus
cueirinhos de menina recém-nascida
e pobre” (p.
2). E, mais
adiante, complementa, permitindo
total liberdade a seus leitores para aceitar ou não os seus critérios e
verdades:
Para casos
de aperto, como
este, o memorista
que se reserva
direitos confessos de imaginação,
deve ter sempre
velhos manuscritos ricos
de tradições que expliquem o que se ignora. (p. 4)
Referi o
caso de Williams
e de Mlle.
Luci; quem quiser
que o tome
por verdadeiro ou imaginação,
e agora deixem-me
prosseguir seriamente na exposição
das Memórias que escrevo. (Sic., p. 95)
Apesar de, nas primeiras
páginas, o narrador autodenominar-se memorista-historiador (p. 2), em vários momentos, como nas
citações anteriores, deixa entrever que utiliza também a imaginação para escrever sobre a Rua e
explicar o que não conhece. Assim sendo, quando o narrador
não sabe o
que realmente aconteceu,
recorre à imaginação,
enfeita um detalhe
ou outro, acrescenta um
comentário e assim vai construindo a narrativa, sempre, na tentativa de manter a característica da verossimilhança. Ao utilizar os termos memorialista, memorista
e historiador para
se autodenominar, ou
histórico, para narrar fatos
da diegese, o
narrador dá ênfase
a aspectos, acontecimentos e
personagens que ele
quer afirmar terem
existido. O próprio
termo, História, apresenta
um duplo sentido:
como “narração metódica
dos fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em
particular, e na vida da humanidade, em geral”; ou como “conto, narração, narrativa, enredo,
trama, fábula”, portanto, ficção, sem conotação de verdade que se relacione com a história real
(HOLANDA FERREIRA, 1983, p. 644).
É possível perceber,
também, certa ironia do narrador ao afirmar que vai “prosseguir seriamente” na apresentação da rua. Isto é, as
Memórias da rua estão baseadas na tradição, em manuscritos, mas também na imaginação. O leitor
decide se acredita ou não nas informações elencadas pelo narrador.
A certa altura, o narrador
declara: “meu trabalho era e é romance,
embora histórico” (p.70). Candido,
ao analisar os
recursos narrativos da
ficção de Teixeira
e Sousa, fiel
aos modelos folhetinescos, considera
que os romances
do autor se
aproximam do gênero romance-histórico “tanto pela localização
temporal e a tentativa de reconstruir os costumes, quanto
pelo recurso a
fatos ou personagens
históricos” (2000, p.118,
v.2). Ainda sobre
o conjunto em
análise de Teixeira
e Souza, Candido
faz referência à
denominação romance “quase-histórico” ou
ainda “romance-minhoca”, pois
que feito “por
partes justapostas, alternando-se
ou tripartindo-se as
várias meadas, dando
as mais das
vezes a impressão
de pedaços, cozidos numa duvidosa
unidade” (idem, ibidem).
A obra Memórias da Rua do Ouvidor poderia ser
classificada da mesma forma, visto apresentar
uma
intenção confessa de
retomar a História
da rua: “porque
tomei a peito escrever-lhe a
história” (p. 1),
fatos e personagens
históricas a ela
relacionadas. Se observarmos a composição dos capítulos, é
possível perceber que, em alguns, ocorre apenas a descrição da rua e de
fatos e personagens que por ali passaram sem
nenhuma ligação entre eles,
além de sua
relação com a
Rua, pode ser
constatado. Entre uma
e outra descrição,
o narrador introduz algumas
narrativas, histórias de amores condenáveis, de espertos rapagões, de
desencontros, muitas, de
caráter cômico, sem
a preocupação explícita
com a coesão narrativa, embora ela exista.
Entre o real e o
ficcional, o narrador
apresenta as memórias da
rua, como forma
de resistência ao esquecimento,
como estratégia para apresentar o passado interagindo com a arte ficcional. Trata-se de uma verdadeira viagem
toponímica, na qual se concentram Histórias e estórias da “monumental” Rua do Ouvidor, que
procura resgatar a origem de outras ruas, dos nomes
das ruas e
das pessoas, dos
espaços, pelo recurso
da memória e
do que o narrador
designa
“tradição”. Isso, de
certa forma, colabora
para atribuir um
caráter de verdade
e verossimilhança à narrativa.
Essa parece ter sido a forma como o público leitor a considerou, na
época da publicação
em folhetim, tanto
que o autor
precisou acrescentar capítulos
para satisfazer o público. Assim,
a narrativa responde às expectativas dos leitores.
O contrato
da ficcionalidade, ou
seja, o critério
de fingimento, ou
o faz-de-conta (estabelecimento de um mundo possível), aceito em relação à
construção da obra, não exige uma ruptura
com a realidade extratextual e, na perspectiva da sociocrítica, remete ao mundo
real. O leitor e o autor estabelecem um
pacto, denominado por Reis e Lopes como “suspensão voluntária
da descrença” (1988, p. 44) que
é fundamental para a
aceitação das verdades
na narrativa. Na aceitação do
mundo possível, a lógica pode não ser
homóloga ao mundo real. Trata-se,
na verdade, de uma “pseudo-referencialidade”,
em que a “referência metafórica” é decorrente, segundo
Ricoeur, “a leitura
coloca de novo
o problema da
fusão de dois horizontes,
o do texto e o do leitor [...]” (1994, p.121), portanto ocorre uma interação
entre o mundo da ficção
com o mundo real
do leitor. Ocorre o que
Jauss (1994) denomina
como a fusão entre o horizonte de
expectativas dos elementos representados na obra e o do público leitor.
Para acirrar
a indefinição, o
narrador das Memórias declara
consultar seus “velhos manuscritos” e, mais ainda, adverte o
leitor:
[...] como estes [manuscritos], porém,
não trazem nome
de autor, nem baseiam em
documentos suas informações, é claro que
só me aproveitam para enfeitar
estas Memórias; porque fora abuso
condenável expor-me a falsificar a
história, dando por
fatos averiguados alguns
devaneios da imaginação. (p.69, grifos nossos)
Justifica o seu
procedimento em função do objeto:
[...] hei de teimar
nele: escrevo as
Memórias da Rua do Ouvidor,
que em seu
caráter de rua
das modas, da
elegância e do
luxo merece e
deve ser adornada e adereçada condignamente. Não vendo
gato por lebre, desde que previamente
declaro a origem e a matéria das tradições, que vou contando a salvar sempre a verdade histórica. (p. 69)
Essa verdade histórica
encontra-se no intervalo e não dispensa o conhecimento de seu leitor
(narratário). Nas memórias,
a combinação entre
ficção e História
é sempre confessa. Aqui,
o narrador se
propõe a apresentar
as pseudomemórias da Rua do
Ouvidor. Sua preocupação
não reside na
exemplaridade ou no
rigor dos fatos,
tampouco ele pretende apresentar
fatos elogiosos ou
de caráter pedagógico;
ele se compromete
apenas com o ambiente
social em que a produção folhetinesca tem um espaço privilegiado, pois se trata de um modismo importado da França. Esse tipo de
escrita em folhetim, cuja essência consiste em aprisionar o leitor e, no limite, leva à
dissipação do senso crítico, “provoca o desaparecimento da fronteira entre a literatura e a vida”
(TADIÉ, 1992, p. 186).
O narrador parece ter um
interesse maior em prender o leitor, registrando suspenses e construindo
pequenas fábulas com
enredos simples, como
a vida dos
prováveis leitores da época,
muitas vezes, com finais cômicos. Para um leitor menos atento, talvez, para o
leitor da época, a
narrativa parece não
provocar grandes ou
complexas reflexões, porque
ele não consegue captar a narrativa como um
todo, devido à fragmentação em capítulos publicados semanalmente,
e porque precisaria
se distanciar da
sua própria história
para ver com
olhar crítico o que Macedo
apresenta em sua produção. Assim, a obra, por sua estrutura narrativa, poderia
ser classificada como
gênero de fronteira,
por não seguir
um modelo ou
padrão e, assim,
não se poder
classificá-la rigidamente em
romance ou História.
Entretanto, como já anunciamos,
consideramos, para a análise que engendramos, o texto como narrativa, O livro
é composto por
dezenove capítulos iniciados
por um breve
resumo que antecipa os
fatos mais importantes,
para o narrador,
que procura manter
a atenção de um possível
leitor (narratário)...
---
Fonte:
Fátima de Lourdes Ferreira Liuti: “Representações Literárias da Rua do Ouvidor”. (Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de Concentração em Teoria da Literatura, Campus de São José do Rio Preto, como requisito para obtenção do Título de Doutora em Teoria da Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Norma Wimmer). São José do Rio Preto, 2007.
Fonte:
Fátima de Lourdes Ferreira Liuti: “Representações Literárias da Rua do Ouvidor”. (Tese apresentada ao Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, Programa de Pós-Graduação em Letras - Área de Concentração em Teoria da Literatura, Campus de São José do Rio Preto, como requisito para obtenção do Título de Doutora em Teoria da Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Norma Wimmer). São José do Rio Preto, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário