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ROMANCE HISTÓRICO
Na obra As mulheres de
mantilha, creio que existam dois personagens relevantes: Maria de... e Alexandre Cardoso. Hesito na definição
a respeito de qual deles assume proeminência no desenvolvimento do enredo, contudo, inclino-me
a pensar que este posto é ocupado pela cortesã. Afinal,
o romance trata justamente
do plano vingativo
desta personagem, suas
armações, manipulações e
desfecho. Concentremo-nos, então, na “famosa” cortesã - epíteto constantemente repetido
por Macedo. É
tarefa árdua comprovar
sua existência extraliterária, pois
o escritor sequer
a denomina integralmente, contentando-se em
informar seu prenome
e completando-o com
reticências.
Reticente, deve ser também,
a postura a ser adotada aqui. Afinal, confirmar inexistência é mais
complicado do que
provar existência. Neste
caso, basta encontrar
qualquer referência em algum texto
ou documento confiável.
Entretanto, para ratificar
a inexistência é
preciso esgotar fontes e não encontrar menção. Por ora, é isto
que acontece. Nesse sentido, por ora, Maria de... não existiu, ou apresenta existência duvidosa.
No entanto, reafirmo a impossibilidade de esgotar as fontes.
*
O mesmo não ocorre com
Alexandre Cardoso de Meneses. O ajudante oficial-de-sala do vice-rei conde da Cunha
é figura histórica.
Seu nome consta
em “enciclopédias” e “livros de história”,
como dirá, abaixo, Eco. Vale referência aqui a Memórias históricas do Rio de
Janeiro, de autoria
do monsenhor Pizarro
e Araújo, composta
em nove volumes,
e editada em
1820 e 1822. A menção ao oficial-de-sala é, aqui,
diminuta. Consiste apenas de uma nota. No entanto, é representativa, pois Macedo declara conhecer a obra em outro livro
seu Memórias da
rua do Ouvidor. (MACEDO, 1952 [1878], p. 20).
Embora breve, esta
referência revela-se importantíssima, pois possibilita entrever como o romance histórico macediano foi construído.
Macedo mostra-se leitor atento - eu diria também, fiel
- de Pizarro
e Araújo. Comparemos
dois excertos de
suas respectivas obras,
relativos às realizações
do conde da
Cunha. O primeiro
refere-se ao estabelecimento de
uma instituição específica para os leprosos. Araújo fala:
(...) e sendo approvado por
ElRei D. Jozé I. o plano dado, fez retirar da communicação da Cidade
os Lazarentos para
a Casa da
Quinta de S.
Christovão (em outro
tempo dos Jesuitas) que o Avizo de 31 de Janeiro de 1765
permittiu para habitação de taes enfermos; e mandando preparar alli um bom Hospital,
estabeleseu reditos muito proporcionados ao sustento
de seus habitantes,
e despezas necessarias,
no tributo de 480 reis,
que annualmente pagam
as propriedades maiores,
ou de sobrado,
e de 240
reis as terreas. (PIZARRO E ARAÚJO, 1820 [Livro V], pp.
182-183).
Já Macedo, por sua vez, em As
mulheres de mantilha, enuncia:
E enfim, retiraram-se
da comunicação da
cidade os míseros
afetados de morféia,
que foram reunidos na antiga casa
dos Jesuítas, em São Cristóvão, mandando-se preparar ali um
hospital suficiente, sendo
em favor dêste
caridoso estabelecimento lançado
sôbre a cidade
um impôsto anual
de 480 réis
por casa de
sobrado e 240
réis por casa
térrea. (MACEDO, 1965, p. 56).
Em outro trecho, Araújo
discorre sobre o recrutamento de indivíduos para as tropas:
Observando a pluralidade de individuos solteiros em ambos
os sexos, e em todos (sic) as classes,
de que se originava a falta de povo correspondente á estenção da Capitania, e a
fartura de vadios, tanto onerosos ao
Estado, como nocivos á Sociedade; procurou o meio de extinguir, ou ao menos, vedar, o progresso
d’esses males, obrigando os jovens, e outros ainda habeis, a se casar, ou á assentar praça
nos Regimentos de Linha (...). (PIZARRO E ARAÚJO, 1820 [Livro V], p. 183).
Atentemos, agora, para as
linhas macedianas:
Assim, pois, no mesmo dia, o bando foi proclamado, e os
habitantes da cidade ficaram na inteligência de que o vice-rei, atendendo à
desproporção que se notava entre os homens casados
e solteiros, sendo
exageradamente superior o
número dêstes, e
considerando a fartura
que havia de vadios onerosos ao Estado e nocivos à sociedade, ordenava que
todos os jovens e quantos estivessem na
idade varonil, tratassem de casar-se em breve prazo, e que aquêles que o não fizessem, assentassem
praça nos regimentos de linha. (MACEDO, 1965, p. 191).
Os excertos
revelam, como se
percebe, extrema semelhança.
Como explicar tamanha similitude? Ora, o romance é histórico. Logo,
é necessário introduzir-lhe extratos históricos. Aí estão eles. Reproduzidos, aliás, com
perceptível exatidão. Pizarro e Araújo (1753 - 1830) viveu o período que narrava. Este elemento é
fundamental, pois a contemporaneidade indica fidelidade e precisão.
Em Duvidas sobre
alguns pontos da
historia patria, Macedo
evidencia este topos
de veracidade. Assim, o escritor
itaboraiense concede voz plena a Pizarro e Araújo. O narrador de As mulheres de mantilha assume sua
parcela historiadora. O romance é histórico pois informa o leitor tal como um livro de história ou de
memórias.
E como historiador do
século 19, Macedo foi também biógrafo. A biografia é modalidade importante
na historia magistra
vitae praticada no
período. Na verdade
retifico: não se
trata exatamente de
biografias, mas antes
de “esboços” ou “apontamentos” biográficos.
(ENDERS, 2000/1, p. 3). De
qualquer forma, esta modalidade também resguarda um sentido exemplar. “O exemplo
do grande homem deve ser contagioso, fazer surgir novos exemplos ou, ao menos,
servir de guia moral ou cívico.”
(ENDERS, 2000/1, p. 8). Desta forma, selecionam-se indivíduos. Suas realizações são registradas e eternizadas.
Passam, agora, a funcionar como orientação.
Pois Macedo
foi biógrafo. Em
1876, editou, em
três volumes, o Anno
biographico brazileiro. Obra encomendada, ganhou
suplemento em 1880. Lembremos, ainda,
que Macedo foi orador
do IHGB. Produziu,
no total, 20
discursos cujo objetivo
era lembrar os
feitos dos consócios
falecidos. Muitas das
biografias produzidas aí,
então, foram depois
transferidas para seu
compêndio biográfico. (BOSISIO,
2007, p. 68).
Menciono apenas dois
indivíduos que, dignos de serem exaltados, foram biografados
por Macedo: conde da Cunha e monsenhor Pizarro e Araújo. Bosisio ainda examina outros
biografados. (BOSISIO, 2007, pp. 68-76).
Mas fomos interrompidos
pelo historiador-biógrafo Macedo. Retornemos à conceituação do
romance histórico. Umberto
Eco sustenta hipótese
semelhante à lukacsiana,
isto é, o personagem real
não precisa destacar-se
no romance. Eco
ainda acrescenta que
existem três maneiras
de abordar o
passado numa obra
ficcional. (ECO, 1985,
pp. 62-64). Na
primeira alternativa, o passado é
mero adereço. Sua função é apenas cenográfica e, desta forma, o escritor possui
maior liberdade de
criação. A segunda
opção é composta
pelo denominado romance
de capa e espada, no qual o
passado e os personagens são extraídos das enciclopédias e dos livros de história. Ambos são, pois, reais e
reconhecíveis. Mais importante, contudo, é que os personagens criados possuem maior liberdade, ou seja, suas
realizações podem ser extemporâneas. Por fim, a terceira
possibilidade refere-se ao
romance histórico propriamente
dito, que merece,
aqui, parágrafo próprio.
Neste caso, os personagens
não precisam sequer ser reconhecidos - embora ele não afirme que
possam ser inteiramente
inventados. Para o
autor de O
nome da Rosa,
o elemento característico
de um romance
histórico é a
correspondência entre o modo de
proceder dos personagens e o período histórico. Eco
exemplifica seu argumento discorrendo sobre a obra Os noivos, do escritor italiano Manzoni: “O
que os personagens fazem serve para fazer compreender melhor
a história, aquilo
que aconteceu. Acontecimentos e
personagens são inventados, entretanto dizem sobre a Itália da época
coisas que os livros de história nunca disseram com tanta clareza.”
(ECO, 1985, pp.
63-64). Em outra
obra, Eco sintetiza:
“um dos acordos
ficcionais básicos de
todo romance histórico
é o seguinte:
a história pode
ter um sem-número
de personagens imaginários, porém
o restante deve corresponder mais ou menos ao que aconteceu naquela época no mundo real.” (ECO, 1994, p.
112). Agora, o mais importante, como se percebe, não são os personagens, mas os acontecimentos.
Novamente, então,
Lukács e Eco
parecem concordar a
respeito do aspecto
central e caracterizador
do romance histórico.
O elemento definidor
do gênero é
mais sutil. Reside
na tentativa de
plasmar um período
histórico, levando em
consideração as relações
entre os acontecimentos e seus efeitos nos personagens,
sejam eles reais ou não. Tal como a emergência do romance
histórico é possibilitado
pela condição histórica
em que surgiu
(século 19), seu fundamento
maior situa-se na circunscrição dos personagens ao tempo em que vivem. Em
outras palavras, a
atuação dos personagens
depende da situação
histórica concreta na
qual eles estão inseridos.
---
Fonte:
Eduardo Wright Cardoso: “A representação histórica a partir da obra As mulheres de mantilha (1870), ou, uma aula com o professor Joaquim Manuel de Macedo”. (Orientador: professor Temístocles Américo Corrêa Cezar). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.
Fonte:
Eduardo Wright Cardoso: “A representação histórica a partir da obra As mulheres de mantilha (1870), ou, uma aula com o professor Joaquim Manuel de Macedo”. (Orientador: professor Temístocles Américo Corrêa Cezar). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008.
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