06/11/2013

A Mão e a Luva, de Machado de Assis

 A Mão e a Luva, de Machado de Assis
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“A MÃO E A LUVA”: a ação apenas como tela para os contornos dos perfis


Na “Advertência” da 1ª edição de A mão e a luva (1878), Machado de Assis já deixava claro para o leitor que o desenho dos caracteres foi seu “objeto principal, se não exclusivo”139, do romance; servindo-lhe a ação apenas de tela em que lançara os contornos dos perfis. Por conseguinte, o leitor habituado à trama romanesca em que o enredo se constrói essencialmente a partir da representação das ações certamente ficará frustrado com a simplicidade da trama de A mão e a luva. Na “Advertência de 1874”, Machado se justifica, dizendo que a obra, “sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e os estilos padecessem com esse método de composição”, segundo ele, um pouco fora de seus hábitos. Destaque-se que ele mesmo preferiu – talvez pelo fato de se tratar de um livro mais curto, simples e direto – chamar A mão e a luva de “novela”. No entanto, Flora Süssekind (2006) explica que os próprios escritores não sabiam muito bem explicar os limites entre romance e novela, de modo que acabavam chamando um pelo outro e vice-versa.

Os próprios autores ora os intitulam novela (acrescentando em geral alguma indicação geográfica: “baiana”, “brasileira”, “rio-grandense”), ora romance, ora crônica histórica, ora romancete,  ora legenda ou história “brasileira”, ora romance histórico.  Variações de classificação que não implicam necessariamente  grandes mudanças nos textos em questão. É verdade que novela  era geralmente uma história contemporânea e que romance ou crônica costumavam ser aplicados a textos voltados para o  passado histórico. Isso até a popularização nos anos 40, com O  filho do pescador e A Moreninha, respectivamente em 1843 e 1844, do  termo romance para os textos de ficção em prosa de certa  extensão.

Basicamente, o enredo envolve apenas uma meia-dúzia de personagens e o evento gerador de toda a problemática da trama gira em torno de uma jovem que precisa escolher um esposo entre três pretendentes. A personagem principal da história é Guiomar, uma moça de origem humilde, que, tendo ficado órfã, passa a ser criada pela madrinha. Esta, uma baronesa muito rica, que vê em Guiomar a pessoa a quem pode dar todo o amor que seria dado à filha que perdera. Vivendo sob a tutela da madrinha, a jovem tem uma vida completamente diferente daquela que teve até então. Aliás, a partir daquele momento, Guiomar, que antes pensava em virar professora para, segundo ela, poder “ganhar o pão”, descobriu o conforto.

Quando ainda sonhava com o magistério, Guiomar estudava na escola da tia de Estevão, um rapaz sonhador com quem ela tem um breve envolvimento e que se torna completamente apaixonado por ela. A jovem, que em praticamente toda a trama se mantém fria nos sentimentos, não corresponde ao amor do rapaz, que acaba se mudando para São Paulo para esquecê-la. Passados alguns anos, Estevão, aparentemente livre dos fantasmas do passado, volta ao Rio de Janeiro e, estando na casa do seu grande amigo de faculdade, Luís Alves, reencontra Guiomar, que morava na casa ao lado. Inicia-se uma nova série de tentativas de conquistar o amor da moça. Esta, por sua vez, mantém-se impassível. Mais adiante, entra em cena na disputa pelo amor da jovem o sobrinho da baronesa, Jorge – rapaz de caráter dúbio, interessado antes  de tudo no dinheiro da tia. Apesar de também não se encantar por Jorge,  Guiomar passa a temer que uma negativa em relação à corte que lhe venha  fazer o jovem possa desagradar à madrinha. Por fim, nem Estevão nem Jorge  ganham a disputa pela mão da bela, mas sim, Luís Alves, que subitamente, vê-se interessado por aquela com quem outrora tivera apenas um “namoro de  vizinho, tentativa que durou pouco mais de vinte e quatro horas”. Guiomar e  Luís Alves se casam e, aparentemente, vivem felizes para sempre.

Visto apenas dessa forma, A mão e a luva em nada se afasta da  caracterização mais convencional dos folhetins românticos. Todavia, há uma  série de elementos que podem ser identificados na tessitura da narrativa e que  fogem à representação convencional da trama de ações. Como disse o próprio  autor, a ação no romance representa apenas o pano de fundo, ou seja, a tela  onde ele lançou os contornos dos perfis de caracteres a serem explorados na  trama. Por meio desse recurso, Machado de Assis estaria se afastando do  modelo hegemônico da ficção narrativa na literatura brasileira e fundando as  bases para uma nova forma de estruturação. Observando apenas a  movimentação das ações dos personagens, deixa-se de lado a investigação das  paixões humanas e das experiências emocionais que estão por trás dos eventos,  o que, segundo o autor, não seria o interesse principal de sua obra como um  todo.

Um crítico, Taine, escreverá que, se a exata cópia das coisas fosse o fim  da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução  taquigráfica de um processo judicial.

Na visão da maior parte da crítica especializada, é bastante comum apontar como o grande demérito da produção ficcional da chamada primeira fase de sua obra o tipo de construção narrativa que o aproxima mais do estilo alencarino de composição do que o que se vê naquele praticado por ele na maturidade. A respeito do romance Ressurreição, por exemplo, Merquior (1996) afirma o seguinte:

(...) essas páginas realmente desdenham as exterioridades ao gosto da ficção da época. Mas os pontos de estrangulamento do discurso narrativo são numerosos. A declaração patética incha os diálogos, que uma linguagem figurada de gosto duvidoso torna ainda mais forçados.

Ora, o questionamento que se pode fazer em relação ao uso dessa “linguagem figurada de gosto duvidoso” talvez seja o seguinte: o autor teria optado por tal uso de maneira consciente ou estaria tão somente limitado a isso por desconhecer outra técnica de composição? Ou seja, Machado de Assis utilizou essa linguagem “excessivamente romântica” porque esse era o seu estilo de compor ou seria uma estratégia irônica do autor para desconstruir os convencionalismos literários vigentes nas letras nacionais por meio do seu próprio uso? A resposta a essas questões poderia comprovar uma coerência interna em toda a obra do escritor, que, estaria, assim, a cada passo renovando a literatura brasileira.

Em A mão e a luva, por exemplo, certas passagens com descrições longas e repletas de imagens consagradas por um certo lirismo ultrarromântico são mais comuns quando trazem Estevão à boca da cena. Ora, é muito curioso ser justamente este um jovem amoroso e sonhador que compunha “versos que imprimiu nos jornais acadêmicos, os quais eram todos repassados do mais puro  byronismo, moda muito do tempo”; um homem que, afinal, “nascera para amar”. Nesse sentido, não estaria sendo o escritor aquele que contaminaria a narrativa com sua linguagem romântica, mas sim, a narrativa que estaria representando o romantismo que caracteriza o personagem que está em cena; logo, quem carrega a imagem de lirismos é o próprio personagem. Afinal, como o interesse, no que se referia à elaboração do projeto arquitetônico do romance, era construir “os contornos de perfis” de caracteres que fossem “naturais e verdadeiros”, como afirmara na “Advertência de 1874”, seria coerente que a narrativa absorvesse esses muitos pontos de vista.

Assim, embora se posicione em terceira pessoa, o narrador parece mudar de dicção de acordo com o personagem que entra em cena. Por exemplo, ao apresentar os perfis dos amigos Estevão e Luís Alves, o narrador não apenas fala a respeito das diferenças entre os dois, mas faz isso de maneira diferente também. Ou seja, o narrador não se contenta em apenas dizer que Estevão é mais romântico e que Luís Alves é mais pragmático, mas sim, constrói para aquele uma ambientação lírica capaz de acolher a sua personalidade e para este uma representação mais objetivamente compatível com o seu caráter.

Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no quarto ano e Estevão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-los dois espíritos diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estevão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela vontade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e se era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
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Fonte
Márcio Vinícius do Rosário Hilário: "A Desconstrução do Romanesco nos Primeiros Romances de Machado de Assis.  Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas - Literatura Brasileira. Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza).  Rio de Janeiro, 2012

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