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“A MÃO E A LUVA”: a ação
apenas como tela para os contornos dos perfis
Na “Advertência” da 1ª edição de
A mão e a luva (1878), Machado de Assis já deixava claro para o
leitor que o desenho dos caracteres foi seu “objeto principal, se não exclusivo”139,
do romance; servindo-lhe a ação apenas de tela em que lançara os contornos dos
perfis. Por conseguinte, o leitor habituado à trama romanesca em que o enredo
se constrói essencialmente a partir da representação das ações certamente
ficará frustrado com a simplicidade da trama de A mão e a luva. Na
“Advertência de 1874” ,
Machado se justifica, dizendo que a obra, “sujeita às
urgências da publicação diária, saiu das mãos do autor capítulo a capítulo, sendo
natural que a narração e os estilos padecessem com esse método de
composição”, segundo ele, um pouco fora de seus hábitos. Destaque-se que ele
mesmo preferiu – talvez pelo fato de se tratar de um livro mais curto, simples e
direto – chamar A mão e a luva de “novela”. No entanto, Flora Süssekind (2006)
explica que os próprios escritores não sabiam muito bem explicar os limites
entre romance e novela, de modo que acabavam chamando um pelo outro e
vice-versa.
Os próprios autores ora os intitulam novela (acrescentando em geral
alguma indicação geográfica: “baiana”, “brasileira”, “rio-grandense”), ora
romance, ora crônica histórica, ora romancete, ora legenda ou história “brasileira”, ora
romance histórico. Variações de
classificação que não implicam necessariamente grandes mudanças nos textos em questão. É
verdade que novela era geralmente uma
história contemporânea e que romance ou crônica costumavam ser aplicados a
textos voltados para o passado
histórico. Isso até a popularização nos anos 40, com O filho do pescador e A Moreninha, respectivamente
em 1843 e 1844, do termo romance para os
textos de ficção em prosa de certa extensão.
Basicamente, o enredo envolve
apenas uma meia-dúzia de personagens e o evento gerador de toda a
problemática da trama gira em torno de uma jovem que precisa escolher um
esposo entre três pretendentes. A personagem principal da história é Guiomar,
uma moça de origem humilde, que, tendo ficado órfã, passa a ser criada
pela madrinha. Esta, uma baronesa muito rica, que vê em Guiomar a pessoa a quem
pode dar todo o amor que seria dado à filha que perdera. Vivendo sob a
tutela da madrinha, a jovem tem uma vida completamente diferente daquela
que teve até então. Aliás, a partir daquele momento, Guiomar, que antes
pensava em virar professora para, segundo ela, poder “ganhar o pão”,
descobriu o conforto.
Quando ainda sonhava com o
magistério, Guiomar estudava na escola da tia de Estevão, um rapaz
sonhador com quem ela tem um breve envolvimento e que se torna
completamente apaixonado por ela. A jovem, que em praticamente toda a trama se
mantém fria nos sentimentos, não corresponde ao amor do rapaz, que acaba se
mudando para São Paulo para esquecê-la. Passados alguns anos, Estevão,
aparentemente livre dos fantasmas do passado, volta ao Rio de Janeiro e,
estando na casa do seu grande amigo de faculdade, Luís Alves, reencontra Guiomar,
que morava na casa ao lado. Inicia-se uma nova série de tentativas de
conquistar o amor da moça. Esta, por sua vez, mantém-se impassível. Mais
adiante, entra em cena na disputa pelo amor da jovem o sobrinho da baronesa,
Jorge – rapaz de caráter dúbio, interessado antes de tudo no dinheiro da tia. Apesar de também
não se encantar por Jorge, Guiomar passa
a temer que uma negativa em relação à corte que lhe venha fazer o jovem possa desagradar à madrinha. Por
fim, nem Estevão nem Jorge ganham a
disputa pela mão da bela, mas sim, Luís Alves, que subitamente, vê-se
interessado por aquela com quem outrora tivera apenas um “namoro de vizinho, tentativa que durou pouco mais de
vinte e quatro horas”. Guiomar e Luís
Alves se casam e, aparentemente, vivem felizes para sempre.
Visto apenas dessa forma, A mão e
a luva em nada se afasta da caracterização
mais convencional dos folhetins românticos. Todavia, há uma série de elementos que podem ser identificados
na tessitura da narrativa e que fogem à
representação convencional da trama de ações. Como disse o próprio autor, a ação no romance representa apenas o
pano de fundo, ou seja, a tela onde ele
lançou os contornos dos perfis de caracteres a serem explorados na trama. Por meio desse recurso, Machado de
Assis estaria se afastando do modelo
hegemônico da ficção narrativa na literatura brasileira e fundando as bases para uma nova forma de estruturação.
Observando apenas a movimentação das
ações dos personagens, deixa-se de lado a investigação das paixões humanas e das experiências emocionais
que estão por trás dos eventos, o que,
segundo o autor, não seria o interesse principal de sua obra como um todo.
Um crítico, Taine, escreverá que, se a exata cópia das coisas fosse o
fim da arte, o melhor romance ou o
melhor drama seria a reprodução taquigráfica
de um processo judicial.
Na visão da maior parte da
crítica especializada, é bastante comum apontar como o grande demérito da
produção ficcional da chamada primeira fase de sua obra o tipo de construção
narrativa que o aproxima mais do estilo alencarino de composição do que o que
se vê naquele praticado por ele na maturidade. A respeito do romance
Ressurreição, por exemplo, Merquior (1996) afirma o seguinte:
(...) essas páginas realmente desdenham as exterioridades ao gosto da ficção
da época. Mas os pontos de estrangulamento do discurso narrativo são numerosos.
A declaração patética incha os diálogos, que uma linguagem figurada de gosto
duvidoso torna ainda mais forçados.
Ora, o questionamento que se pode
fazer em relação ao uso dessa “linguagem figurada de gosto duvidoso” talvez
seja o seguinte: o autor teria optado por tal uso de maneira consciente ou
estaria tão somente limitado a isso por desconhecer outra técnica de
composição? Ou seja, Machado de Assis utilizou essa linguagem “excessivamente
romântica” porque esse era o seu estilo de compor ou seria uma estratégia
irônica do autor para desconstruir os convencionalismos literários vigentes nas
letras nacionais por meio do seu próprio uso? A resposta a essas questões
poderia comprovar uma coerência interna em toda a obra do
escritor, que, estaria, assim, a cada passo renovando a literatura brasileira.
Em A mão e a luva, por exemplo,
certas passagens com descrições longas e repletas de imagens consagradas por um
certo lirismo ultrarromântico são mais comuns quando trazem Estevão à boca da
cena. Ora, é muito curioso ser justamente este um jovem amoroso e sonhador que
compunha “versos que imprimiu nos jornais acadêmicos, os quais eram todos
repassados do mais puro byronismo, moda
muito do tempo”; um homem que, afinal, “nascera para amar”. Nesse sentido, não
estaria sendo o escritor aquele que contaminaria a narrativa com sua linguagem
romântica, mas sim, a narrativa que estaria representando o romantismo que
caracteriza o personagem que está em cena; logo, quem carrega a imagem de
lirismos é o próprio personagem. Afinal, como o interesse, no que se referia à
elaboração do projeto arquitetônico do romance, era construir “os contornos de
perfis” de caracteres que fossem “naturais e verdadeiros”, como afirmara na
“Advertência de 1874” ,
seria coerente que a narrativa absorvesse esses muitos pontos de vista.
Assim, embora se posicione em
terceira pessoa, o narrador parece mudar de dicção de acordo com o personagem
que entra em cena. Por exemplo, ao apresentar os perfis dos amigos Estevão e
Luís Alves, o narrador não apenas fala a respeito das diferenças entre os dois,
mas faz isso de maneira diferente também. Ou seja, o narrador não se contenta
em apenas dizer que Estevão é mais romântico e que Luís Alves é mais
pragmático, mas sim, constrói para aquele uma ambientação lírica capaz de
acolher a sua personalidade e para este uma representação mais objetivamente
compatível com o seu caráter.
Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves no
quarto ano e Estevão no terceiro. Conheceram-se na academia, e ficaram amigos
íntimos, tanto quanto podiam sê-los dois espíritos diferentes, ou talvez por isso
mesmo que o eram. Estevão, dotado de extrema sensibilidade, e não menor
fraqueza de ânimo, afetuoso e bom, não daquela vontade varonil, que é apanágio
de uma alma forte, mas dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de
todas as circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda
sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves via
bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão de egoísmo, e
se era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens travara-se
amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no costume. Eram eles
os naturais confidentes um do outro, com a diferença que Luís Alves dava menos
do que recebia, e, ainda assim, nem tudo o que dava exprimia grande confiança.
[...]
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Fonte:
Fonte:
Márcio Vinícius do Rosário
Hilário: "A Desconstrução do Romanesco nos Primeiros Romances de Machado
de Assis. Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-graduação em Letras vernáculas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas
- Literatura Brasileira. Orientador: Professor Doutor
Ronaldes de Melo e Souza). Rio de
Janeiro, 2012
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