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O Homem: possessão sexual,
vampirismo e pecado original no romance
de Aluísio de Azevedo
Por: Isabel Guimarães Rodrigues Freire (Professora Substituta e
Mestranda – UFC)
Em 1887, o escritor maranhense
Aluísio Azevedo publica no Rio de Janeiro o
romance O homem. Considerado o
romance azevediano que mais ressalta aspectos do Naturalismo, esse livro tem sido posto em
segundo plano quando se trata de avaliar a
qualidade literária do autor. Devido ao fato de ressaltar expedientes
cientificistas, através do determinismo
biológico, e colocar a satisfação dos apetites sexuais acima da capacidade do indivíduo de discernir, o
referido romance não recebeu a merecida
valoração; poucos críticos realmente se debruçam sobre a obra a fim de
lançar um juízo de valor favorável, ao
contrário do que ocorre à trilogia O
cortiço (1890), Casa de Pensão (1884) e O
mulato (1881). Tendo recebido uma direta influência de Thérèse Raquin (1867), de Émile Zola, Aluísio Azevedo aborda
em O homem a questão da histeria,
da tirania do organismo sobre a vontade
do homem (no caso em questão, representado por
uma protagonista feminina), e a repressão às manifestações sexuais da
mulher.
O enredo gira em torno de
Madalena, filha do Conselheiro Pinto Marques, a qual nutre uma profunda afeição por Fernando,
afilhado de seu pai. Contudo, tal afeição não é vista com bons olhos pelo
conselheiro, que, para evitar a consumação do relacionamento de ambos, revela para Fernando um segredo
arrebatador: ele e sua filha são, na
verdade, irmãos, sendo Fernando fruto de um relacionamento extraconjugal
do conselheiro. A revelação, além de
causar profundo pesar no espírito de Fernando, provoca o distanciamento do
rapaz e a consequente decisão de partir rumo à Europa, onde pretende morar. Madalena percebe o
distanciamento do meio-irmão e sua frieza em
relação a ela, porém atribui esse comportamento às preocupações com a
formatura; qual não é sua surpresa
quando o jovem se forma e anuncia sua viagem à Europa, sendo essa, sem retorno. A partir de
então, Madalena sofre uma profunda decepção da qual jamais conseguirá se recuperar,
mesmo que em alguns momentos a jovem mostre ter superado a frustração sofrida e
até uma indiferença com relação à partida do amado.
Observando o início do enredo,
acima descrito, o autor já revela sua
intencionalidade cientificista ao tomar como ponto de partida para a
narrativa um enlace amoroso entre dois
irmãos. O tema do incesto, aliás, é recorrente na literatura naturalista, haja vista o romance Os Maias (1888), de Eça de Queirós. O
único impedimento para a concretização
do amor incestuoso são, de fato, as regras sociais, pois que não existe nenhum impedimento
biológico no que diz respeito aos desejos e à
atração sexual, podendo esta haver entre irmãos consanguíneos.
Observando o desespero em que sua
filha se encontrava, o conselheiro não viu
outra saída a não ser contar a verdade para Madalena, a qual, sabedora
de tudo, tem a sensação de alívio ao
saber que o motivo de ser evitada por Fernando era o parentesco existente entre eles. Um ano se passou e eis
que chega uma carta da Europa avisando
acerca da morte de Fernando por problemas pulmonares. Ao saber da morte
do irmão, Madalena entra num processo de
definhamento, em que sua vida parece perder o
sentido. Seu desinteresse pelos homens que lhe aparecem como
pretendentes é crescente, e sua saúde,
já fragilizada pelo amor frustrado, parece esvair-se a cada dia que passa.
Todavia, mais do que uma obra
naturalista de tese experimental, O homem
encerra valores e símbolos anteriores à
corrente literária referida. Podem ser detectados no romance resíduos da mentalidade medieval,
que, por sua vez, contêm valores herdados
de outras eras. Mais do que defender uma tese de caráter científico e
determinista, Aluísio ressalta valores
presentes na mentalidade do século 19, que têm origem em tempos mais remotos; esses valores aparecem
no romance através de fenômenos os quais
pretendemos analisar sob a perspectiva da teoria da residualidade, elaborada por
Roberto Pontes; tais fenômenos seriam: possessão sexual, vampirismo e pecado original.
A teoria da residualidade
consiste em observar resquícios de uma mentalidade em outra mentalidade, resquícios esses
envolvendo aspectos culturais e literários recorrentes em época distintas e que denunciam uma
constância residual de determinados fenômenos.
Ou seja, um aspecto literário e cultural presente na época atual pode ter
sua origem em outro momento histórico,
denunciando sua permanência enquanto atitude
mental inconsciente. Contudo, o termo resíduo, referindo-se a essas
atitudes mentais, antes de ser utilizado
por Roberto Pontes para caracterizar a
teoria da residualidade, já havia sido referido por Raymond Williams, pensador
marxista de origem galesa, quando este estabelece a diferença entre “resíduo” e
“arcaico”, cuja diferença básica seria o fato deste possuir uma natureza
estagnada, enquanto aquele estaria em constante processo de transformação, o
que nos leva a um outro conceito desmembrado da teoria da residualidade, o de
cristalização. O termo cristalização, a partir desta teoria, passou a ser enquadrado nos estudos
literários, pois que, até então, era um termo próprio dos estudos referentes à
mineralogia, recebendo nessa perspectiva cultural e literária uma nova
atribuição. A cristalização, portanto, está associada à ideia de remanescentes
que permanecem, porém, atualizados, modificados; e assim como um cristal, que
pode ser modificado e utilizado com diferentes finalidades, o resíduo sofre
transformações e se aclimata ao local onde se faz presente e se atualiza
agregando os valores da época em questão.
Vê-se que o termo “mentalidade”
aparece com muita frequência quando o assunto vem a ser de residualidade, visto não ser
possível conceber o princípio residual sem o conceito de mentalidade. As concepções
referentes às mentalidades ganharam força com os estudos dos pensadores da Escola dos Annales, da qual Lucien
Febvre e Marc Bloch foram os fundadores. Além dos supracitados, Jacques Le Goff
e Georges Duby participaram do
movimento, o qual viria a ser fundamental para o estabelecimento da Nouvelle
Histoire francesa. A Escola dos
Annales propõe uma nova perspectiva de ver a história, levando em consideração não só os
acontecimentos no nível da macroestrutura, ou seja, as revoluções, as batalhas e
conflitos de grande porte, mas a história implicada nas microestruturas: nos hábitos, nos
costumes, na religião, nas crenças populares, nessas
estruturas nem sempre contempladas pelos manuais de História e que compõem as mentalidades, como podemos observar nas
palavras do próprio Jacques Le Goff no livro
Em busca da Idade Média:
Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que
essas mudanças materiais, cotidianas,
eram um dos componentes fundamentais da História.
Que a História, ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos
governos. Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse
movimento de mudança de mentalidade –
mudança que acompanharia as trocas materiais.
Destarte, levando em consideração
o conceito de mentalidade desenvolvido pelos pensadores da Escola dos Annales e o conceito de resíduo, de Raymond Williams, tem-se duas das bases constituintes da teoria da
residualidade, a qual nos servirá de fundamentação
teórica a fim de relacionar o romance aqui abordado e a mentalidade medieval, pois, como Jean-Maurice de Montremy,
no prólogo de Em busca da Idade Média, afirma:
É exatamente o nosso problema: somos freqüentemente medievais quando nos vangloriamos de sermos modernos; e
freqüentemente não passamos de “apreciadores
da Idade Média” quando acreditamos nos enraizar no tempo das catedrais, dos cavaleiros, dos lavradores
e dos comerciantes. Os códigos e os
valores desse longínquo passado próximo são bem mais estranhos a nós do que habitualmente pensamos. Mas lhe devemos
bem mais do que queremos admitir.
O primeiro assunto a ser abordado
neste trabalho será a possessão sexual. Tem-se por possessão sexual a ação de seres malignos,
também conhecidos como demônios do sexo,
sobre as pessoas, tanto do sexo masculino como do feminino. Tais demônios na Idade Média receberam as denominações de
“íncubo”, quando assumiam forma de homem
para seduzir mulheres, e “súcubo”, ao assumirem forma de mulher a fim de apossar-se de homens. Na Idade Média, o íncubo
(do verbo latino incubare, que
significa “deitar-se sobre”,
referindo-se à posição masculina sobre a mulher durante o ato sexual), e o súcubo (do verbo sucubare, ou “deitar-se sob”, o que seria uma referência à posição feminina abaixo do homem na relação carnal)
serviram para justificar as frequentes recaídas
sexuais dos indivíduos em meio a uma sociedade opressora e que aprisionava as realizações eróticas sob o estigma do pecado
judaico-cristão. Os principais alvos dos “ataques” noturnos dos possessores eram
aquelas pessoas em torno das quais havia algum tipo de impedimento à realização sexual,
como padres, freiras, mulheres casadas e
camponeses. Desta forma, a fim de evitar a assunção do ato sexual realizado efetivamente com alguém do seu convívio, o
possuído atribuía as consequências desse ato (polução noturna dos homens, gravidez
indesejada em freiras e resquícios de secreções em mulheres casadas quando
estas não praticavam sexo com seus maridos) à ação maléfica de seres demoníacos
durante o sono.
O pavor a esses seres das trevas,
que perturbavam o sono das pessoas com o intuito de possuí-las sexualmente, foi muito
intensificado pela ação da Igreja Católica, que, objetivando infligir medo e receio com
relação a eventos naturais da sexualidade humana, mascarou tais ocorrências com uma
motivação diabólica. A alegativa da Igreja era a de que o homem de Deus deveria
purificar-se e distanciar-se dos prazeres carnais a fim de chegar a Ele; caso o homem insistisse
em ceder às tentações, estaria compactuando
com as entidades ligadas ao maligno. Muitas vezes, porém, os íncubos serviram para camuflar a exploração sexual
masculina em relação às mulheres, que após terem sua alcova invadida por um homem comum
acreditavam terem sido possuídas por um
demônio que assumiu a forma de homem. Com relação aos camponeses, estes sofriam, mais do que a nobreza, os impactos do
fanatismo religioso, haja vista o fato de o número de mulheres camponesas queimadas nas
fogueiras da Inquisição, acusadas de bruxaria,
ser superior ao número de mulheres aristocratas. No meio campesino, a fé católica exercia maior influência na mente e
nos hábitos das pessoas, pois, ao contrário da nobreza, os camponeses não tinham prestígio
e nem posses que lhes valessem, caso fossem
acusados pelos tribunais inquisitoriais.
Vale ressaltar, contudo, que a
ideia de entidades ligadas ao sexo, que travam relações sexuais com humanos, tem origem bastante
anterior à Idade Média, e faz parte do
imaginário de várias culturas, não só da cultura europeia, mas até a do
Oriente, pois há registros bastante
contundentes, embora raros, que atestam a crença de alguns povos orientais na existência de seres
possessores. A amplitude desta temática não só possui uma dimensão espacial, estando presente
tanto no imaginário do Ocidente como na
do Oriente, mas também possui uma dimensão temporal, pois muito antes da Idade Média, já quando existiam as lendas pagãs
celtas, a ideia do íncubo e do súcubo está presente, como podemos observar na lenda do
rei Arthur, cujo mestre, o mago Merlim, seria
filho de uma mulher terrena com um demônio (desse parentesco, o mago teria herdado sua essência mística). É comum em
todas as culturas que possuem a representação
dos demônios do sexo, possuírem estes uma beleza fora do comum e irresistível. Na Idade Média, a imagem dos
íncubos e súcubos era asquerosa, grotesca e bestial, porém, quando do momento da
possessão, eles se revestiam de uma beleza sem igual; consumado o ato, reassumiam a forma
original repugnante.
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