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PESSOA, PERSONAGEM, HERÓI E
ANTI-HERÓI
É a personagem que com mais nitidez torna
patente a ficção, e através dela a camada
imaginária se adensa e se cristaliza.
Antonio Candido
Uma das diferenças entre o texto
ficcional e outros tipos de texto reside no fato de, no primeiro, o discurso projetar
contextos objectuais e, através deste, a seres e mundos puramente intencionais. Na obra
de ficção, o raio de intenção detém-se
nesses seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo indireto – e isso nem em todos os casos – a
qualquer tipo de realidade extraliterária. Já no discurso de outros escritos, como por
exemplo, na História, nas reportagens, a intenção deve omitir-se para liberar a visão
da própria realidade. Os enunciados de uma
obra científica e, na maioria dos casos de notícias, reportagens, cartas, diários, memórias (reais)
constituem juízos, isto é, objectualidades
puramente intencionais pretendem corresponder, adequar-se exatamente a seres reais. Há nesses casos a
intenção séria de verdade. Precisamente
por isso, pode-se falar, nesses casos, de enunciados errados ou falsos.
O termo “verdade”, quando usado
com referência a obras de ficção, tem significado
diverso. Designa obras genuínas, sinceras e autênticas (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); ou
a verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo
que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido. “Seria incorreto aplicar aos
enunciados fictícios critérios de veracidade cognoscitiva”. (CANDIDO, 2007, p. 19)
A estrutura do discurso ficcional
parece, em geral, ser a mesma de outros textos.
O que os diferencia é a intenção. No texto ficcional, a intenção se restringe
às objectualidades puramente
intencionais (e nos significados mais profundos por elas sugeridos), sem ultrapassá-los em direção a
qualquer objeto autônomo. Observa-se,
nos textos ficcionais, um grande esforço do autor para dar aparência real à situação imaginária relatada
por ele, seja através da particularização,
da concretização ou da individualização dos contextos objectuais ou mediante o preparo de aspectos
esquematizados e de uma multiplicidade de pormenores circunstanciais. É o vigor dos
detalhes, a “veracidade” de dados insignificantes,
a coerência interna, a lógica das motivações e a causalidade de eventos que dão verossimilhança a esse mundo
imaginário criado pelo autor do texto
ficcional. Mesmo que alguns desses elementos estejam ausentes do texto ficcional, isso não tira do texto a sua força.
Somente no gênero narrativo podem surgir
formas de discurso ambíguas, projetadas
ao mesmo tempo em duas perspectivas: a da personagem e a do narrador fictício.
Na ficção narrativa desaparece o
enunciador real e surge um narrador fictício que, às vezes, passa a fazer parte do mundo
narrado, identificando-se com uma personagem
(narrativas em primeira pessoa), ou tornando-se onisciente (narrativas nas quais o narrador conhece até os
pensamentos de seus personagens). O narrador
fictício não é o sujeito real do discurso, pois ele se desdobra imaginariamente e se torna manipulador da
função narrativa; ele não narra de pessoas,
mas de personagens. A ficção trabalha com seres totalmente criados pelo discurso, mas esses personagens devem dar a impressão
de que vivem ou de que viveram e de que
são ou foram seres vivos, isto é, manter certas relações com a realidade do mundo, participando de um
universo de ação e de sensibilidade que se possa equiparar ao que conhecemos em vida.
Em Memórias de um Sargento de
Milícias observa-se um narrador onisciente que não apenas conhece os pensamentos de
Leonardinho, personagem principal, mas também de todos os outros personagens da
trama. Além disso, esse narrador coloca
no texto sua opinião a respeito de certos acontecimentos.
Em Memórias Póstumas de Brás
Cubas temos um personagem morto que é, ao
mesmo tempo, o autor de suas memórias. Esse autor suposto se converte em narrador
fictício, pois o romance é narrado em primeira pessoa. Assim, Brás Cubas, autor ficcional, assume o distanciamento
necessário para julgar a tudo e a todos, inclusive a si mesmo. Alfredo Bosi chama a
atenção para o duplo sentido da mudança
do foco narrativo da terceira para a primeira pessoa: o recurso à narrativa memorialista conferiria um caráter verossímil
ao relato, uma vez que o “eu” só fala o que
viu, viveu e sentiu. Ao mesmo tempo, o recurso do defunto autor deslocaria essa
verossimilhança, ainda que não por
completo, uma vez que utilizada justamente para conferir o distanciamento necessário para
julgar a condição humana e os acontecimentos
da vida.
A visão particular dos seres
humanos individuais é extremamente fragmentária
e limitada, pois estes estão sempre em constante evolução. Como consequência disso, o discurso de um texto
projeta um mundo bem mais fragmentário
do que a nossa visão fragmentária da realidade. Por mais que o autor tente preencher o imaginário do leitor com
detalhes, sempre haverá vastas regiões indeterminadas,
porque o discurso é finito. Assim a personagem de um romance será sempre uma configuração esquemática,
tanto no sentido físico como no psíquico,
embora essa personagem seja um individuo “real”, totalmente determinado.
É interessante notar que o leitor
não se atém as zonas indeterminadas, ele se fixa no que é transmitido pelo narrador, na
maioria das vezes, ultrapassa o que é comunicado
pelo texto, embora sempre guiado por ele (o texto). Em Memórias Póstumas de Brás Cubas nada escapa a esse
narrador em sua atenção à conduta alheia.
Ele é cronista para quem a verdade está na observação somada a um estilo agudo, e se define também – e talvez
principalmente – pelo comedimento dos juízos que guarda sobre si próprio. O grande desafio
proposto ao leitor é como julgar esse narrador.
Ele precisa preencher as lacunas deixadas pelo narrador, que muitas vezes narra situações cheias de implicações
morais contraditórias e se recusa e extrair
juízo imediato. O leitor é praticamente intimado a recompor o ocorrido e julgar
por si mesmo, procurando reconstruir o
significado dos episódios narrados e, em alguns casos, o próprio sentido que o
narrador parecia insinuar. Há um modo instável
de apresentações da conduta, das decisões e dos juízos encenado por Brás Cubas.
A limitação da obra ficcional é
sua maior conquista, exatamente porque o discurso é necessariamente limitado; no
entanto, as personagens são transparentes, ou seja, nós as conhecemos mais intimamente do
que as pessoas reais com as quais
convivemos. Isso acontece porque o autor pode realçar aspectos essenciais, dando às personagens um caráter mais nítido do
que a observação pode sugerir, levando-as
através de situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida real (e mesmo quando
incoerentes, mostram pelo menos nisso certa coerência); maior exemplaridade (mesmo quando
banais); maior significação; e, paradoxalmente, também maior riqueza – e não
por serem mais ricas do que as pessoas
reais e, sim, em virtude da concentração, da seleção, da densidade e da estilização do contexto imaginário, que reúne
os fios dispersos da realidade num padrão
firme e consistente. Daí, podermos dizer como Candido “que a personagem é mais lógica, embora não mais simples do que
o ser vivo” (CANDIDO, 2007, p. 59). A
criação de uma personagem oscila entre dois pólos ideais: ou é uma transposição fiel de modelos, ou é uma
invenção totalmente imaginária. São estes os dois limites da criação novelística, e a
sua combinação variável é que define cada romancista, assim como, na obra de cada
romancista, cada uma das personagens. Existe
uma gama bastante extensa de invenção de personagens, o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a
observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, reguladas pelas concepções
intelectuais e morais. O próprio autor não
seria capaz de determinar a proporção exata de cada elemento, pois esse trabalho ou se passa boa parte nas esferas do
inconsciente ou vem à consciência sob
formas que podem iludir.
Os elementos que um romancista escolhe
para apresentar a personagem, física e
espiritualmente, são, por força, indicativos dos elementos escolhidos para essa composição. Surge, assim, o personagem
que será mais ou menos convincente,
dependendo das escolhas feitas pelo autor. A natureza da personagem depende da concepção que preside o romance e
das intenções do romancista. A coerência
interna de um romance está diretamente relacionada ao ajuste dos elementos
(natureza da personagem em acordo com a concepção e a intenção do autor).
Os autores realistas do século
XIX levaram ao máximo o povoamento do espaço
literário pelo pormenor, isto é, uma técnica de convencer pelo exterior, pela aproximação com o aspecto da realidade
observada. A seguir, fez-se o mesmo em relação
à psicologia, sobretudo pelo surgimento e generalização do monólogo interior, que sugere o fluxo inesgotável da
consciência. Tem se aqui o estabelecimento
de relação entre um traço e outro, para que o todo se configure, ganhe significado e poder de convencimento. De
certo modo, é semelhante ao trabalho de
compor a estrutura de um romance, situando adequadamente cada traço que, se mal combinado, pouco ou nada sugere;
mas que devidamente organizado, ganha
todo o poder sugestivo; pois, cada traço adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança, o
sentimento de realidade, depende, sob esse aspecto, da unificação do fragmentário pela
organização do texto. Essa organização é
o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes dá
vida e os faz parecer mais convincentes
do que os próprios seres vivos. Esses
romances foram no rumo de uma complicação crescente da psicologia das personagens, dentro da inevitável
simplificação técnica imposta pela necessidade
de caracterização. Esse romance sofreu uma evolução, passando do enredo complicado com personagem simples, para
o enredo simples com personagem
complicado. Os episódios relatados são importantes na valorização estética da obra literária, mas o raio de
intenção detém-se no plano das personagens,
fazendo o leitor viver, imaginariamente, destinos e aventuras dos heróis.
Neste caso, podemos incluir, por
exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Machado de Assis vai apresentar um romance de enredo simples, porém trabalha exaustivamente na criação de seu
personagem principal, que apresentará complexidade
de personalidade, esse personagem se constituirá em paradigma da natureza humana.
Para Machado de Assis, os
caracteres e os sentimentos são a matéria-prima primordial da criação literária. A intenção de
evitar ações mirabolantes e descrições alongadas
aparece na seguinte passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas: quando o herói, retornando de sua viagem à
Europa, se eximiu de descrever a travessia e os detalhes, bem como as
experiências particulares que vivera. Fê-lo para economizar palavras e manter a
dramaticidade da história. Esta ficaria mais intensa e sustentaria o movimento se ele não
distraísse o leitor com passagens amenas
e dias intermináveis no mar. Naquele momento, urgia apressar a narrativa. Então, ele o fez. Assim o defunto resumiu
aquele dramático momento de sua vida: Vim...
Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com
grave prejuízo meu, que sou o autor.
Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in fólio, mas in-12, pouco
texto, larga margem, tipo elegante,
corte dourado e vinhetas ... principalmente vinhetas... Não, não alonguemos o capítulo. (MPBC, 1978, p. 52)13
.
Aristóteles, em A Poética
Clássica, divide os gêneros em maiores e menores, a epopeia e a tragédia seriam os gêneros
maiores, e a comédia e a sátira menipeia, os gêneros menores. Se existem gêneros maiores
e gêneros menores, seria correto afirmar
que existem heróis maiores e heróis menores? É ainda Aristóteles quem diz que a epopeia e a tragédia tratam da
aristocracia, de personagens que pertenciam, portanto, à classe dominante, enquanto a
comédia trata de pessoas do povo. Escreve
Aristóteles acerca dessa diferença de escolha da classe social dos personagens da tragédia e da comédia: “Nessa
mesma diferença divergem a tragédia e a
comédia; esta os quer imitar inferiores e aquela superiores.” Seguindo essa linha de raciocínio exposta por
Aristóteles, poderia se afirmar que
atualmente o romance representaria o gênero maior por ser mais complexo assim como a tragédia e a epopeia; e o conto,
um gênero menor por apresentar mais
simplicidade assim como a comédia e a sátira menipeia. No romance, estariam os personagens mais elevados, e, no conto, os
personagens menores, mais baixos. Sendo
assim, heróis “elevados” pertenceriam às classes dominantes, a uma minoria privilegiada, rica (riqueza essa normalmente
baseada na exploração do trabalho da classe
baixa) e heróis “baixos” pertenceriam a uma maioria fornecedora dos privilégios desfrutados pela minoria rica.
Nesse sentido, o herói “alto” e o
herói “baixo” da sociedade aparecem e acontecem
de vários modos na literatura. O comum parece ser mostrar o “alto” como elevado e o “baixo” como inferior, porém isso
corresponde à própria possibilidade de a
classe dominante impor sua ideologia a toda a sociedade.
Com a industrialização, o
conflito entre as classes acirrou-se e a literatura, como reflexo da sociedade, redobrou o seu
bombardeio ideológico. A classe dominante
tem cada vez mais necessidade de ser vista como elevada; por outro lado, cada vez mais tem sido possível mostrar
a grandeza da classe menos favorecida. O
percurso do herói moderno é a reversão do percurso do herói antigo. Se antigamente se colocava a questão do
percurso individual ou grupal entre o alto e o baixo da sociedade, o herói passa a ser,
com o processo de industrialização, o próprio
questionamento da estruturação social em classe alta e classe baixa.
Durante séculos, a humanidade
teve apenas algumas dúzias de heróis clássicos
– a maioria, criados pelos gregos – para se divertir, instruir e nortear eticamente seus povos. O herói clássico é
considerado um herói “alto” e pertence à classe alta e faz questão de demonstrar a
“classe” dessa classe. Como ensina
Aristóteles, a matéria-prima da tragédia é o mito, e a personagem ideal para o drama trágico não deve
ser o homem justo que não merece desgraça,
nem o injusto e perverso que passou da boa para a má fortuna. O temor e a compaixão, promovidos pelo drama,
são suscitados pela personagem do homem
que não se distingue por sua superioridade ou justiça, mas também não é mau nem perverso, tornando-se desafortunado
por alguma falta cometida, geralmente na
ignorância. O tipo de tragédia ideal é aquele que retrata os “homens melhores do que nós”, ou seja, aqueles que
erraram. Sobre isso, Brandão afirma: [...]
O herói há de ser, por conseguinte, consoante Aristóteles, o homem que, se caiu em infortúnio, não foi por ser
perverso e vil, mas por força de hamartian
toa (de algum “erro”). No mito bem estruturado, pois, o herói não deve passar da infelicidade para a felicidade,
mas, ao revés, da fortuna para a desdita
e isto, não porque seja mau, mas por causa de alguma falta cometida. Tal falta, hamartia, Aristóteles o
diz claramente, não é uma culpa moral e,
por isso mesmo, quando fala da metavolí da reviravolta, que faz o herói passar da felicidade à desgraça, insiste
em que essa reviravolta não deve nascer
de uma deficiência moral, mas de um erro [...].14 (BRANDÃO, 1980, p. 50-51)
Assim a partir dessas
considerações, pode-se afirmar que, na tragédia grega, por mais que um indivíduo tente alertar para a
ordem dos fatos, como no caso de Édipo,
jamais o conseguirá. Foi o que aconteceu com o infeliz herói tebano que, ao fugir de seu destino, encontrou-o, pois este
atinge todos, bons e maus. Os homens, inexplicavelmente,
seguem as suas determinações. Por conseguinte, o fio da vida de cada indivíduo
se desenrola inexoravelmente. Não adianta esperar esclarecimentos do destino: ele apenas é assim – a autoridade
suprema sobre a vida e morte de cada um.
Não explica nada, não ilumina nada. Os homens acompanham atônitos, o desenrolar de suas decisões.
Note-se que Édipo é um
contraponto perfeito à obra de Machado de Assis, pois, enquanto no drama grego o herói é uma
vítima dos deuses e um fantoche do Destino,
nas obras machadianas, a sina das personagens é dada pelas emoções que as dominam, pois estão, muitas vezes,
impotentes diante desses arroubos que lhe
grassam na alma.
Enquanto na tragédia grega a
desgraça do herói era dada pela hamartia, pela falta que cativava a ira divina, portadora de
todas as ruínas para os mortais, em Machado
de Assis, o destino irrevogável é dado pelo caráter do personagem. O autor faz uma inversão fenomenal dos fatos da
vida para a índole, para o feitio moral e
psicológico de figuras narrativas, conduzindo seus heróis e heroínas ao sabor
das paixões humanas. Mas essas
personagens não estão à mercê de todas as paixões ao mesmo tempo. O autor, segundo sua intenção,
destaca um caráter, compõe uma personalidade
e nesta dá relevo a um traço marcante que conduz a sorte e determina a ação. Sabemos que Machado de Assis
interessou-se pela confecção do caráter
das personagens e da ação decorrente dela por evidências que deixou nas advertências que faz em algumas de suas obras
e também por comentários registrados em
sua correspondência publicada e na crítica literária que elaborou. Em Memórias de um Sargento de Milícias também
temos um “herói” que é influenciado pelo
destino, mas que no livro é referido como “sina”. Percorre todo livro uma “sina” que é a responsável por todos os
acontecimentos desagradáveis que vão envolver
o personagem principal. Ele parece predestinado a esses acontecimentos, o autor dá a entender que ele não seria o
responsável por tudo o que de ruim lhe acontece.
Na verdade, em ambos os casos é o
traço principal do caráter de nossos “heróis”
que vai determinar-lhes o “destino”. Leonardinho, personagem principal da obra de Manuel Antônio de Almeida, é um
malandro refinado, e Brás Cubas, personagem
principal da obra de Machado de Assis, é exímio hedonista. Dessas duas características básicas vão decorrer
todas as ações dos “heróis” e todos acontecimentos da trama.
O herói trivial - caso de
Leonardinho -, assim como o herói clássico, também passa por dificuldades e sofre derrotas, mas
elas como que permanecem estranhas a
ele, não o alteram substancialmente. Há um enredo e toda uma série de
peripécias que envolvem o herói, mas
basicamente tudo volta à situação inicial de calmaria e felicidade ao final.
O herói trivial masculino de
direita é a versão moderna do herói clássico. Nos últimos dois séculos, este processo de criação
de heróis triviais parece ter se acelerado,
de fato, Frankenstein e Drácula, por exemplo, se somaram ao imaginário de todos os povos com uma nova mitologia; muito
do que parece novo na verdade são
variações sobre mitos ancestrais. Fez-se uma bricolagem com novas características para velhos mitos. Super-homem
e Batman são certamente os heróis contemporâneos
mais bem formados junto ao imaginário popular.
O herói trivial pretende ser
elevado e tende a não admitir em si o baixo: mas, exatamente por isso ele se inferioriza
artisticamente, à medida que se torna unidimensional
e não capta nem exprime a natureza contraditória do real. Quando se quer criar um personagem apenas
sublime, elevado, acaba-se criando
alguém artisticamente baixo porque carente de veracidade. Todo personagem que apresente apenas qualidades
positivas ou negativas é um personagem
trivial, pois foge à natureza contraditória do ser humano e não questiona seus próprios valores. A
trivialidade corresponde a uma visão ingênua ou, talvez a visão que se tem quando tomado por
sentimentos extremos, sejam de amor ou
de ódio.
Pelo exposto, percebe-se que o
personagem principal de Memórias de um Sargento
de Milícias poderia ser enquadrado como herói trivial, porém o herói de Memórias Póstumas de Brás Cubas, não poderia
ser assim classificado, pois apesar de
apresentar muitos defeitos, muitas baixezas como ser humano, em algumas ocasiões, ele apresenta qualidades: devolve
uma moeda – de dono desconhecido – enviando-a à delegacia para a devida
restituição; engaja-se numa certa ordem (Ordem
Terceira), praticando caridade.
Parece, de certo modo, um
contra-senso falar em “herói baixo”, pois se supõe pertencer à natureza do herói que ele seja
elevado. Nesta classificação de herói baixo
está inserido o herói pícaro.
O pícaro não é apenas um herói
trivial às avessas que, ao invés de querer mostrar o alto como elevado, procuraria
mostrar o baixo como inferior. O herói pícaro não faz a defesa do socialmente mais baixo:
pelo contrário, tende a ridicularizá-lo, rebaixando-o. O herói pícaro deseja expressar
o interesse e o espírito de uma classe social
ou de um grupo social. Ele procura obter o máximo trabalhando o mínimo; louva a preguiça e a vagabundagem; não
valoriza o trabalho, não tem projetos de vida, é um alienado, não possui princípios
sociais, nem morais. O herói pícaro é a filosofia
da sobrevivência feito gente.
O personagem principal de
Memórias de um Sargento de Milícias, Leonardinho
faz esta inversão picaresca na sociedade brasileira do século XIX. Leonardinho vê o mundo de uma perspectiva que
não é a da literatura oficial da época.
Ele tem o caráter semelhante ao de um pícaro, ou seja, de um “picareta”. O pícaro é, inicialmente, um ingênuo, porém a
brutalidade da realidade vai aos poucos,
destruindo essa ingenuidade e transformando o esperto em uma pessoa sem escrúpulos, mas isso não ocorre por
uma maldade intrínseca e sim pela falta
de saída que o miserável enfrenta, ocorre como uma espécie de defesa do mais pobre, e, portanto, mais fraco. Candido,
afirma que o pícaro é um ser “amável e risonho”
que vai, com o passar do tempo e dos infortúnios que o perseguem, conquistando um aprendizado, uma espécie de
amadurecimento que o faz repensar e
própria vida e com isso chegar a uma certa sabedoria, a astúcia, pois está é a única arma disponível para esse malandro.
O herói pícaro tem predecessores
na comédia clássica e na Bíblia, mas o pícaro
clássico só podia ter surgido quando o capitalismo se implantava: Lazarillo – personagem que está sempre procurando salvar a
própria pele, ele é um artista da gigolagem.
Leonardinho apresenta muitas características semelhantes a esse herói, porém surge já no século XIX, por isso, foi
muitas vezes classificado como um neopícaro;
porém Leonardo nada aprende com as desgraças que o assolam. Se Aristóteles considerava implicitamente como
maiores os gêneros não centrados em
personagens oriundos do povo, na poética moderna temos três momentos distintos: o primeiro deles diz
respeito ao herói que constrói, a partir de iniciativa própria, o seu processo de ascensão
social. São exemplos de tipo de herói:
Robinson Crusoe15 e Sorel16. O
segundo é o momento de descrença nesse processo de luta pela ascensão social e, como exemplos
desse tipo de herói, tem-se Madame Bovary17
e Leopold Bloom18 e Marcel19. O terceiro momento é de crença no processo de reversão da própria estrutura
social e na positividade dos heróis que tentam
fazê-lo.
Nos clássicos modernos, os
personagens de extração social alta tendem cada vez mais a se mostrarem como inferiores,
enquanto, para poder ser herói elevado sem
ser trivial, cada vez mais o grande personagem tende a ser de extração social menos favorecida.
O herói burguês está enquadrado
dentro dos heróis da modernidade. O herói burguês é oriundo das camadas mais altas da
sociedade. Os personagens de Memórias
Póstumas de Brás Cubas são oriundos em sua grande maioria da classe mais alta (Brás Cubas, Virgília, Lobo Neves)
que são a minoria de toda a sociedade fluminense
da época; os escravos, que constituíam a maioria da população, estão quase ausentes da obra. Se Machado não se
inclina a mostrar o socialmente inferior como elevado, pelo contrário tende a mostrá-lo
como cheio de baixezas, conforme aparece
em figuras como Marcela, Eusébia e Prudêncio, se ele quase não se refere ao nível social mais baixo, ele também não
mostra a classe alta como sendo elevada:
pelo contrário, é um moralista, que questiona e corrói todas as posturas morais. Machado não se constitui, portanto,
num autor trivial, nem de direita e nem de
esquerda.
A classe trabalhadora é a grande
ausente da obra de Machado de Assis. O próprio
Machado, oriundo da classe baixa, incorpora-se em narrador pertencente à classe alta: Brás Cubas. A família de Brás
Cubas é uma família tradicional da antiga classe dominante que vive de rendas. Em
contraste, temos apenas D. Plácida, senhora
pobre, mas muito trabalhadora, de vida infeliz e errática, que se vê, por necessidade, obrigada a compactuar com o
adultério de Virgília e Brás. Dada sua posição de dependência absoluta, de
início, ainda sente nojo da situação; Brás, entretanto, exerce seu poder de cima: além de
enganá-la com a falsa “novela sentimental”,
compra-a com cinco contos de réis que achara e que não devolvera. As obras literárias, que são sistemas sociais,
muitas vezes, reproduzem em miniatura o
sistema social, e o herói será, portanto, quem elucidará estrategicamente a identidade desse sistema. Quando o percurso
e a tipologia do herói são rastreados,
aí se encontra o sistema das obras. Nenhuma obra literária consegue mostrar a totalidade do sistema, mas o
percurso do herói pode ser um índice de totalização,
uma totalidade indiciada.
O herói se caracteriza por
apresentar qualidades extremadas. No exercício de suas virtudes, o herói estende benefícios para
além de si próprio, pondo em risco tudo o que ele é e o que ele possui,
particularmente a própria vida. O herói é, em geral, o personagem principal de uma
narrativa. Sobre ele é que o enredo é desenvolvido,
as ações principais são realizadas para ou sobre ele.
O anti-herói, enquanto
protagonista de uma narração, apresenta características
contrárias às do herói que, em geral, são: beleza, força física e espiritual, habilidade, agilidade e capacidade
de interferência e de liderança social e valores morais. Uma vez que a avaliação do
herói, feita pelo leitor/espectador, assume
sempre aspectos subjetivos e uma vez que, no quadro da apreciação humana das situações de vida e dos
acontecimentos, a ambiguidade dos pontos de vista é uma constante, que se inscreve no
caráter dialético da condição humana, qualquer
reação do protagonista é sempre suscetível de interpretações antagônicas.
O herói apresenta muitas
qualidades, como, por exemplo, ser destemido, corajoso, astucioso, porém, às vezes, essas
características levadas ao exagero apresentam
facetas de anti-heroísmo, ou seja, o destemor leva ao abuso de poder, a coragem a excessos egocêntricos e a astúcia, à
mentira, transformando esse herói em
anti-herói.
Anti-herói é o termo que, em
narratologia e dramaturgia, se opõe ao do herói, numa dupla acepção. O significado do vocábulo
anti-herói parece referir-se à personagem
que, numa narrativa ficcional, exerce papel paralelo ao do herói como sua
contrapartida, conforme declara Mário Miguel González, em A Saga do Anti-herói.
Teríamos num mesmo romance, numa mesma narração o herói, como se fosse o
protagonista e o seu oposto o anti-herói, o antagonista. No entanto, quando o anti-herói aparece em um texto ficcional,
não significa que seu sentido anti-heroico advenha da existência de um outro personagem
no texto representado pelo herói.
O anti-herói é a antítese do
herói, na medida em que só possui os defeitos opostos às virtudes do herói; além disso, suas
ações apontam no sentido inverso às do
herói, isto é, projetam-se apenas sobre o eu da própria personagem. Dada a natureza da maioria das obras de ficção, o
herói é geralmente um personagem bom. Se
seguir uma moral própria, teremos um anti-herói. O anti-herói só deixa de ser “herói” por ele não se enquadrar no esquema de
valores subjacente ao ponto de vista
narrativo.
Neste capítulo, procurou-se
estabelecer a distinção entre pessoa, personagem,
herói e anti-herói.
A seguir, a partir de cruzamentos
– cruzando memórias e cruzando heróis – será
analisada a construção do enredo e das principais ações dos “heróis” de Memórias de um Sargento de Milícias e de
Memórias Póstumas de Brás Cubas.
---
Fonte:
Fonte:
Lea Rodrigues Siqueira: “O Herói
das Memórias Análise em Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Memórias de um
Sargento De Milícias”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Letras, da Universidade Federal de Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Letras. Orientadora:
Profa. Dra. Lúcia Sá Rebello). Porto Alegre, 2010
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão
devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido
trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese
em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Repositório Digital da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul
Direitos autorais:
Segundo Portaria n 5068, de 13/10/2010, da UFRS: “Os trabalhos depositados no Lume estão disponíveis gratuitamente para
fins de pesquisa de acordo com a licença pública Creative Commons.”
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