23/10/2013

Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida

 Manuel Antônio de Almeida - Memorias de um Sargento de Milicias - Iba Mendes
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Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).


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PESSOA, PERSONAGEM, HERÓI E ANTI-HERÓI

É a personagem que com mais nitidez torna  
patente a ficção, e através dela a camada
imaginária se adensa e se cristaliza.
Antonio Candido


Uma das diferenças entre o texto ficcional e outros tipos de texto reside no  fato de, no primeiro, o discurso projetar contextos objectuais e, através deste, a  seres e mundos puramente intencionais. Na obra de ficção, o raio de intenção  detém-se nesses seres puramente intencionais, somente se referindo de um modo  indireto – e isso nem em todos os casos – a qualquer tipo de realidade extraliterária.  Já no discurso de outros escritos, como por exemplo, na História, nas reportagens, a  intenção deve omitir-se para liberar a visão da própria realidade.  Os enunciados de uma obra científica e, na maioria dos casos de notícias,  reportagens, cartas, diários, memórias (reais) constituem juízos, isto é,  objectualidades puramente intencionais pretendem corresponder, adequar-se  exatamente a seres reais. Há nesses casos a intenção séria de verdade.  Precisamente por isso, pode-se falar, nesses casos, de enunciados errados ou  falsos.

O termo “verdade”, quando usado com referência a obras de ficção, tem  significado diverso. Designa obras genuínas, sinceras e autênticas (termos que em  geral visam à atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter  acontecido. “Seria incorreto aplicar aos enunciados fictícios critérios de veracidade  cognoscitiva”. (CANDIDO, 2007, p. 19)

A estrutura do discurso ficcional parece, em geral, ser a mesma de outros  textos. O que os diferencia é a intenção. No texto ficcional, a intenção se restringe às  objectualidades puramente intencionais (e nos significados mais profundos por elas  sugeridos), sem ultrapassá-los em direção a qualquer objeto autônomo.  Observa-se, nos textos ficcionais, um grande esforço do autor para dar  aparência real à situação imaginária relatada por ele, seja através da  particularização, da concretização ou da individualização dos contextos objectuais  ou mediante o preparo de aspectos esquematizados e de uma multiplicidade de  pormenores circunstanciais. É o vigor dos detalhes, a “veracidade” de dados  insignificantes, a coerência interna, a lógica das motivações e a causalidade de  eventos que dão verossimilhança a esse mundo imaginário criado pelo autor do  texto ficcional. Mesmo que alguns desses elementos estejam ausentes do texto  ficcional, isso não tira do texto a sua força.

 Somente no gênero narrativo podem surgir formas de discurso ambíguas,  projetadas ao mesmo tempo em duas perspectivas: a da personagem e a do  narrador fictício.

Na ficção narrativa desaparece o enunciador real e surge um narrador fictício  que, às vezes, passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se com uma  personagem (narrativas em primeira pessoa), ou tornando-se onisciente (narrativas  nas quais o narrador conhece até os pensamentos de seus personagens). O  narrador fictício não é o sujeito real do discurso, pois ele se desdobra  imaginariamente e se torna manipulador da função narrativa; ele não narra de  pessoas, mas de personagens. A ficção trabalha com seres totalmente criados pelo  discurso, mas esses personagens devem dar a impressão de que vivem ou de que  viveram e de que são ou foram seres vivos, isto é, manter certas relações com a  realidade do mundo, participando de um universo de ação e de sensibilidade que se  possa equiparar ao que conhecemos em vida.

Em Memórias de um Sargento de Milícias observa-se um narrador onisciente  que não apenas conhece os pensamentos de Leonardinho, personagem principal, mas também de todos os outros personagens da trama. Além disso, esse narrador  coloca no texto sua opinião a respeito de certos acontecimentos.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas temos um personagem morto que é,  ao mesmo tempo, o autor de suas memórias. Esse autor suposto se converte em   narrador fictício, pois o romance é narrado em primeira pessoa. Assim, Brás Cubas,  autor ficcional, assume o distanciamento necessário para julgar a tudo e a todos,  inclusive a si mesmo. Alfredo Bosi chama a atenção para o duplo sentido da  mudança do foco narrativo da terceira para a primeira pessoa: o recurso à narrativa  memorialista conferiria um caráter verossímil ao relato, uma vez que o “eu” só fala o  que viu, viveu e sentiu. Ao mesmo tempo, o recurso do defunto autor deslocaria essa  verossimilhança, ainda que não por completo, uma vez que utilizada justamente para  conferir o distanciamento necessário para julgar a condição humana e os  acontecimentos da vida.

A visão particular dos seres humanos individuais é extremamente  fragmentária e limitada, pois estes estão sempre em constante evolução. Como  consequência disso, o discurso de um texto projeta um mundo bem mais  fragmentário do que a nossa visão fragmentária da realidade. Por mais que o autor  tente preencher o imaginário do leitor com detalhes, sempre haverá vastas regiões  indeterminadas, porque o discurso é finito. Assim a personagem de um romance  será sempre uma configuração esquemática, tanto no sentido físico como no  psíquico, embora essa personagem seja um individuo “real”, totalmente  determinado.

É interessante notar que o leitor não se atém as zonas indeterminadas, ele se  fixa no que é transmitido pelo narrador, na maioria das vezes, ultrapassa o que é  comunicado pelo texto, embora sempre guiado por ele (o texto). Em Memórias  Póstumas de Brás Cubas nada escapa a esse narrador em sua atenção à conduta  alheia. Ele é cronista para quem a verdade está na observação somada a um estilo  agudo, e se define também – e talvez principalmente – pelo comedimento dos juízos  que guarda sobre si próprio. O grande desafio proposto ao leitor é como julgar esse  narrador. Ele precisa preencher as lacunas deixadas pelo narrador, que muitas  vezes narra situações cheias de implicações morais contraditórias e se recusa e  extrair juízo imediato. O leitor é praticamente intimado a recompor o ocorrido e julgar  por si mesmo, procurando reconstruir o significado dos episódios narrados e, em alguns casos, o próprio sentido que o narrador parecia insinuar. Há um modo  instável de apresentações da conduta, das decisões e dos juízos encenado por Brás  Cubas.

A limitação da obra ficcional é sua maior conquista, exatamente porque o  discurso é necessariamente limitado; no entanto, as personagens são transparentes,  ou seja, nós as conhecemos mais intimamente do que as pessoas reais com as  quais convivemos. Isso acontece porque o autor pode realçar aspectos essenciais,  dando às personagens um caráter mais nítido do que a observação pode sugerir,  levando-as através de situações mais decisivas e significativas do que costuma  ocorrer na vida real (e mesmo quando incoerentes, mostram pelo menos nisso certa  coerência); maior exemplaridade (mesmo quando banais); maior significação; e, paradoxalmente, também maior riqueza – e não por serem mais ricas do que as  pessoas reais e, sim, em virtude da concentração, da seleção, da densidade e da  estilização do contexto imaginário, que reúne os fios dispersos da realidade num  padrão firme e consistente. Daí, podermos dizer como Candido “que a personagem  é mais lógica, embora não mais simples do que o ser vivo” (CANDIDO, 2007, p. 59).  A criação de uma personagem oscila entre dois pólos ideais: ou é uma  transposição fiel de modelos, ou é uma invenção totalmente imaginária. São estes  os dois limites da criação novelística, e a sua combinação variável é que define cada  romancista, assim como, na obra de cada romancista, cada uma das personagens.  Existe uma gama bastante extensa de invenção de personagens, o que se dá é um  trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em  graus variáveis, reguladas pelas concepções intelectuais e morais. O próprio autor  não seria capaz de determinar a proporção exata de cada elemento, pois esse  trabalho ou se passa boa parte nas esferas do inconsciente ou vem à consciência  sob formas que podem iludir.

Os elementos que um romancista escolhe para apresentar a personagem,  física e espiritualmente, são, por força, indicativos dos elementos escolhidos para  essa composição. Surge, assim, o personagem que será mais ou menos  convincente, dependendo das escolhas feitas pelo autor. A natureza da personagem  depende da concepção que preside o romance e das intenções do romancista. A  coerência interna de um romance está diretamente relacionada ao ajuste dos elementos (natureza da personagem em acordo com a concepção e a intenção do  autor).

Os autores realistas do século XIX levaram ao máximo o povoamento do  espaço literário pelo pormenor, isto é, uma técnica de convencer pelo exterior, pela  aproximação com o aspecto da realidade observada. A seguir, fez-se o mesmo em  relação à psicologia, sobretudo pelo surgimento e generalização do monólogo  interior, que sugere o fluxo inesgotável da consciência. Tem se aqui o  estabelecimento de relação entre um traço e outro, para que o todo se configure,  ganhe significado e poder de convencimento. De certo modo, é semelhante ao  trabalho de compor a estrutura de um romance, situando adequadamente cada traço  que, se mal combinado, pouco ou nada sugere; mas que devidamente organizado,  ganha todo o poder sugestivo; pois, cada traço adquire sentido em função de outro,  de tal modo que a verossimilhança, o sentimento de realidade, depende, sob esse  aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do texto. Essa organização  é o elemento decisivo da verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes dá vida e  os faz parecer mais convincentes do que os próprios seres vivos.  Esses romances foram no rumo de uma complicação crescente da psicologia  das personagens, dentro da inevitável simplificação técnica imposta pela  necessidade de caracterização. Esse romance sofreu uma evolução, passando do  enredo complicado com personagem simples, para o enredo simples com  personagem complicado. Os episódios relatados são importantes na valorização  estética da obra literária, mas o raio de intenção detém-se no plano das  personagens, fazendo o leitor viver, imaginariamente, destinos e aventuras dos  heróis.

Neste caso, podemos incluir, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás  Cubas. Machado de Assis vai apresentar um romance de enredo simples, porém  trabalha exaustivamente na criação de seu personagem principal, que apresentará  complexidade de personalidade, esse personagem se constituirá em paradigma da  natureza humana.

Para Machado de Assis, os caracteres e os sentimentos são a matéria-prima  primordial da criação literária. A intenção de evitar ações mirabolantes e descrições  alongadas aparece na seguinte passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas:  quando o herói, retornando de sua viagem à Europa, se eximiu de descrever a   travessia e os detalhes, bem como as experiências particulares que vivera. Fê-lo  para economizar palavras e manter a dramaticidade da história. Esta ficaria mais  intensa e sustentaria o movimento se ele não distraísse o leitor com passagens  amenas e dias intermináveis no mar. Naquele momento, urgia apressar a narrativa.  Então, ele o fez. Assim o defunto resumiu aquele dramático momento de sua vida:  Vim... Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a  escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou o  autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não  somos um público in fólio, mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo  elegante, corte dourado e vinhetas ... principalmente vinhetas... Não, não  alonguemos o capítulo. (MPBC, 1978, p. 52)13
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Aristóteles, em A Poética Clássica, divide os gêneros em maiores e menores,  a epopeia e a tragédia seriam os gêneros maiores, e a comédia e a sátira menipeia,  os gêneros menores. Se existem gêneros maiores e gêneros menores, seria correto  afirmar que existem heróis maiores e heróis menores? É ainda Aristóteles quem diz  que a epopeia e a tragédia tratam da aristocracia, de personagens que pertenciam,  portanto, à classe dominante, enquanto a comédia trata de pessoas do povo.  Escreve Aristóteles acerca dessa diferença de escolha da classe social dos  personagens da tragédia e da comédia: “Nessa mesma diferença divergem a  tragédia e a comédia; esta os quer imitar inferiores e aquela superiores.”  Seguindo essa linha de raciocínio exposta por Aristóteles, poderia se afirmar  que atualmente o romance representaria o gênero maior por ser mais complexo  assim como a tragédia e a epopeia; e o conto, um gênero menor por apresentar  mais simplicidade assim como a comédia e a sátira menipeia. No romance, estariam  os personagens mais elevados, e, no conto, os personagens menores, mais baixos.  Sendo assim, heróis “elevados” pertenceriam às classes dominantes, a uma minoria  privilegiada, rica (riqueza essa normalmente baseada na exploração do trabalho da  classe baixa) e heróis “baixos” pertenceriam a uma maioria fornecedora dos  privilégios desfrutados pela minoria rica.

Nesse sentido, o herói “alto” e o herói “baixo” da sociedade aparecem e  acontecem de vários modos na literatura. O comum parece ser mostrar o “alto” como  elevado e o “baixo” como inferior, porém isso corresponde à própria possibilidade de  a classe dominante impor sua ideologia a toda a sociedade.
Com a industrialização, o conflito entre as classes acirrou-se e a literatura,  como reflexo da sociedade, redobrou o seu bombardeio ideológico. A classe  dominante tem cada vez mais necessidade de ser vista como elevada; por outro  lado, cada vez mais tem sido possível mostrar a grandeza da classe menos  favorecida. O percurso do herói moderno é a reversão do percurso do herói antigo.  Se antigamente se colocava a questão do percurso individual ou grupal entre o alto  e o baixo da sociedade, o herói passa a ser, com o processo de industrialização, o  próprio questionamento da estruturação social em classe alta e classe baixa.

Durante séculos, a humanidade teve apenas algumas dúzias de heróis  clássicos – a maioria, criados pelos gregos – para se divertir, instruir e nortear  eticamente seus povos. O herói clássico é considerado um herói “alto” e pertence à  classe alta e faz questão de demonstrar a “classe” dessa classe.  Como ensina Aristóteles, a matéria-prima da tragédia é o mito, e a  personagem ideal para o drama trágico não deve ser o homem justo que não  merece desgraça, nem o injusto e perverso que passou da boa para a má fortuna. O  temor e a compaixão, promovidos pelo drama, são suscitados pela personagem do  homem que não se distingue por sua superioridade ou justiça, mas também não é  mau nem perverso, tornando-se desafortunado por alguma falta cometida,  geralmente na ignorância. O tipo de tragédia ideal é aquele que retrata os “homens  melhores do que nós”, ou seja, aqueles que erraram. Sobre isso, Brandão afirma:  [...] O herói há de ser, por conseguinte, consoante Aristóteles, o homem  que, se caiu em infortúnio, não foi por ser perverso e vil, mas por força de  hamartian toa (de algum “erro”). No mito bem estruturado, pois, o herói não  deve passar da infelicidade para a felicidade, mas, ao revés, da fortuna para  a desdita e isto, não porque seja mau, mas por causa de alguma falta  cometida. Tal falta, hamartia, Aristóteles o diz claramente, não é uma culpa  moral e, por isso mesmo, quando fala da metavolí da reviravolta, que faz o  herói passar da felicidade à desgraça, insiste em que essa reviravolta não  deve nascer de uma deficiência moral, mas de um erro [...].14 (BRANDÃO,  1980, p. 50-51)

Assim a partir dessas considerações, pode-se afirmar que, na tragédia grega,  por mais que um indivíduo tente alertar para a ordem dos fatos, como no caso de  Édipo, jamais o conseguirá. Foi o que aconteceu com o infeliz herói tebano que, ao  fugir de seu destino, encontrou-o, pois este atinge todos, bons e maus. Os homens,  inexplicavelmente, seguem as suas determinações. Por conseguinte, o fio da vida de cada indivíduo se desenrola inexoravelmente. Não adianta esperar esclarecimentos  do destino: ele apenas é assim – a autoridade suprema sobre a vida e morte de  cada um. Não explica nada, não ilumina nada. Os homens acompanham atônitos, o  desenrolar de suas decisões.

Note-se que Édipo é um contraponto perfeito à obra de Machado de Assis,  pois, enquanto no drama grego o herói é uma vítima dos deuses e um fantoche do  Destino, nas obras machadianas, a sina das personagens é dada pelas emoções  que as dominam, pois estão, muitas vezes, impotentes diante desses arroubos que  lhe grassam na alma.

Enquanto na tragédia grega a desgraça do herói era dada pela hamartia, pela  falta que cativava a ira divina, portadora de todas as ruínas para os mortais, em  Machado de Assis, o destino irrevogável é dado pelo caráter do personagem. O  autor faz uma inversão fenomenal dos fatos da vida para a índole, para o feitio moral  e psicológico de figuras narrativas, conduzindo seus heróis e heroínas ao sabor das  paixões humanas. Mas essas personagens não estão à mercê de todas as paixões  ao mesmo tempo. O autor, segundo sua intenção, destaca um caráter, compõe uma  personalidade e nesta dá relevo a um traço marcante que conduz a sorte e  determina a ação. Sabemos que Machado de Assis interessou-se pela confecção do  caráter das personagens e da ação decorrente dela por evidências que deixou nas  advertências que faz em algumas de suas obras e também por comentários  registrados em sua correspondência publicada e na crítica literária que elaborou.  Em Memórias de um Sargento de Milícias também temos um “herói” que é  influenciado pelo destino, mas que no livro é referido como “sina”. Percorre todo livro  uma “sina” que é a responsável por todos os acontecimentos desagradáveis que vão  envolver o personagem principal. Ele parece predestinado a esses acontecimentos,  o autor dá a entender que ele não seria o responsável por tudo o que de ruim lhe  acontece.

Na verdade, em ambos os casos é o traço principal do caráter de nossos  “heróis” que vai determinar-lhes o “destino”. Leonardinho, personagem principal da  obra de Manuel Antônio de Almeida, é um malandro refinado, e Brás Cubas,  personagem principal da obra de Machado de Assis, é exímio hedonista. Dessas  duas características básicas vão decorrer todas as ações dos “heróis” e todos acontecimentos da trama.   

O herói trivial - caso de Leonardinho -, assim como o herói clássico, também  passa por dificuldades e sofre derrotas, mas elas como que permanecem estranhas  a ele, não o alteram substancialmente. Há um enredo e toda uma série de peripécias  que envolvem o herói, mas basicamente tudo volta à situação inicial de calmaria e  felicidade ao final.

O herói trivial masculino de direita é a versão moderna do herói clássico. Nos  últimos dois séculos, este processo de criação de heróis triviais parece ter se  acelerado, de fato, Frankenstein e Drácula, por exemplo, se somaram ao imaginário  de todos os povos com uma nova mitologia; muito do que parece novo na verdade  são variações sobre mitos ancestrais. Fez-se uma bricolagem com novas  características para velhos mitos. Super-homem e Batman são certamente os heróis  contemporâneos mais bem formados junto ao imaginário popular.

O herói trivial pretende ser elevado e tende a não admitir em si o baixo: mas,  exatamente por isso ele se inferioriza artisticamente, à medida que se torna  unidimensional e não capta nem exprime a natureza contraditória do real.  Quando se quer criar um personagem apenas sublime, elevado, acaba-se  criando alguém artisticamente baixo porque carente de veracidade. Todo  personagem que apresente apenas qualidades positivas ou negativas é um  personagem trivial, pois foge à natureza contraditória do ser humano e não  questiona seus próprios valores. A trivialidade corresponde a uma visão ingênua ou,  talvez a visão que se tem quando tomado por sentimentos extremos, sejam de amor  ou de ódio.

Pelo exposto, percebe-se que o personagem principal de Memórias de um  Sargento de Milícias poderia ser enquadrado como herói trivial, porém o herói de  Memórias Póstumas de Brás Cubas, não poderia ser assim classificado, pois apesar  de apresentar muitos defeitos, muitas baixezas como ser humano, em algumas  ocasiões, ele apresenta qualidades: devolve uma moeda – de dono desconhecido – enviando-a à delegacia para a devida restituição; engaja-se numa certa ordem  (Ordem Terceira), praticando caridade.

Parece, de certo modo, um contra-senso falar em “herói baixo”, pois se supõe  pertencer à natureza do herói que ele seja elevado. Nesta classificação de herói  baixo está inserido o herói pícaro. 
  
O pícaro não é apenas um herói trivial às avessas que, ao invés de querer  mostrar o alto como elevado, procuraria mostrar o baixo como inferior. O herói pícaro  não faz a defesa do socialmente mais baixo: pelo contrário, tende a ridicularizá-lo,  rebaixando-o. O herói pícaro deseja expressar o interesse e o espírito de uma classe  social ou de um grupo social. Ele procura obter o máximo trabalhando o mínimo;  louva a preguiça e a vagabundagem; não valoriza o trabalho, não tem projetos de  vida, é um alienado, não possui princípios sociais, nem morais. O herói pícaro é a  filosofia da sobrevivência feito gente.

O personagem principal de Memórias de um Sargento de Milícias,  Leonardinho faz esta inversão picaresca na sociedade brasileira do século XIX.  Leonardinho vê o mundo de uma perspectiva que não é a da literatura oficial da  época. Ele tem o caráter semelhante ao de um pícaro, ou seja, de um “picareta”.  O pícaro é, inicialmente, um ingênuo, porém a brutalidade da realidade vai  aos poucos, destruindo essa ingenuidade e transformando o esperto em uma  pessoa sem escrúpulos, mas isso não ocorre por uma maldade intrínseca e sim pela  falta de saída que o miserável enfrenta, ocorre como uma espécie de defesa do mais  pobre, e, portanto, mais fraco. Candido, afirma que o pícaro é um ser “amável e  risonho” que vai, com o passar do tempo e dos infortúnios que o perseguem,  conquistando um aprendizado, uma espécie de amadurecimento que o faz repensar  e própria vida e com isso chegar a uma certa sabedoria, a astúcia, pois está é a  única arma disponível para esse malandro.

O herói pícaro tem predecessores na comédia clássica e na Bíblia, mas o  pícaro clássico só podia ter surgido quando o capitalismo se implantava: Lazarillo –  personagem que está sempre procurando salvar a própria pele, ele é um artista da  gigolagem. Leonardinho apresenta muitas características semelhantes a esse herói,  porém surge já no século XIX, por isso, foi muitas vezes classificado como um  neopícaro; porém Leonardo nada aprende com as desgraças que o assolam.  Se Aristóteles considerava implicitamente como maiores os gêneros não  centrados em personagens oriundos do povo, na poética moderna temos três  momentos distintos: o primeiro deles diz respeito ao herói que constrói, a partir de  iniciativa própria, o seu processo de ascensão social. São exemplos de tipo de herói: 

Robinson Crusoe15 e Sorel16. O segundo é o momento de descrença nesse processo  de luta pela ascensão social e, como exemplos desse tipo de herói, tem-se Madame  Bovary17 e Leopold Bloom18 e Marcel19. O terceiro momento é de crença no  processo de reversão da própria estrutura social e na positividade dos heróis que  tentam fazê-lo.

Nos clássicos modernos, os personagens de extração social alta tendem cada  vez mais a se mostrarem como inferiores, enquanto, para poder ser herói elevado  sem ser trivial, cada vez mais o grande personagem tende a ser de extração social  menos favorecida.

O herói burguês está enquadrado dentro dos heróis da modernidade. O herói  burguês é oriundo das camadas mais altas da sociedade. Os personagens de  Memórias Póstumas de Brás Cubas são oriundos em sua grande maioria da classe  mais alta (Brás Cubas, Virgília, Lobo Neves) que são a minoria de toda a sociedade  fluminense da época; os escravos, que constituíam a maioria da população, estão  quase ausentes da obra. Se Machado não se inclina a mostrar o socialmente inferior  como elevado, pelo contrário tende a mostrá-lo como cheio de baixezas, conforme  aparece em figuras como Marcela, Eusébia e Prudêncio, se ele quase não se refere  ao nível social mais baixo, ele também não mostra a classe alta como sendo  elevada: pelo contrário, é um moralista, que questiona e corrói todas as posturas  morais. Machado não se constitui, portanto, num autor trivial, nem de direita e nem  de esquerda.

A classe trabalhadora é a grande ausente da obra de Machado de Assis. O  próprio Machado, oriundo da classe baixa, incorpora-se em narrador pertencente à  classe alta: Brás Cubas. A família de Brás Cubas é uma família tradicional da antiga  classe dominante que vive de rendas. Em contraste, temos apenas D. Plácida,  senhora pobre, mas muito trabalhadora, de vida infeliz e errática, que se vê, por  necessidade, obrigada a compactuar com o adultério de Virgília e Brás. Dada sua posição de dependência absoluta, de início, ainda sente nojo da situação; Brás,  entretanto, exerce seu poder de cima: além de enganá-la com a falsa “novela  sentimental”, compra-a com cinco contos de réis que achara e que não devolvera.  As obras literárias, que são sistemas sociais, muitas vezes, reproduzem em  miniatura o sistema social, e o herói será, portanto, quem elucidará estrategicamente  a identidade desse sistema. Quando o percurso e a tipologia do herói são  rastreados, aí se encontra o sistema das obras. Nenhuma obra literária consegue  mostrar a totalidade do sistema, mas o percurso do herói pode ser um índice de  totalização, uma totalidade indiciada.

O herói se caracteriza por apresentar qualidades extremadas. No exercício de  suas virtudes, o herói estende benefícios para além de si próprio, pondo em risco   tudo o que ele é e o que ele possui, particularmente a própria vida. O herói é, em  geral, o personagem principal de uma narrativa. Sobre ele é que o enredo é  desenvolvido, as ações principais são realizadas para ou sobre ele.

O anti-herói, enquanto protagonista de uma narração, apresenta  características contrárias às do herói que, em geral, são: beleza, força física e  espiritual, habilidade, agilidade e capacidade de interferência e de liderança social e  valores morais. Uma vez que a avaliação do herói, feita pelo leitor/espectador,  assume sempre aspectos subjetivos e uma vez que, no quadro da apreciação  humana das situações de vida e dos acontecimentos, a ambiguidade dos pontos de  vista é uma constante, que se inscreve no caráter dialético da condição humana,  qualquer reação do protagonista é sempre suscetível de interpretações antagônicas.
O herói apresenta muitas qualidades, como, por exemplo, ser destemido,  corajoso, astucioso, porém, às vezes, essas características levadas ao exagero  apresentam facetas de anti-heroísmo, ou seja, o destemor leva ao abuso de poder, a  coragem a excessos egocêntricos e a astúcia, à mentira, transformando esse herói  em anti-herói.

Anti-herói é o termo que, em narratologia e dramaturgia, se opõe ao do herói,  numa dupla acepção. O significado do vocábulo anti-herói parece referir-se à  personagem que, numa narrativa ficcional, exerce papel paralelo ao do herói como sua contrapartida, conforme declara Mário Miguel González, em A Saga do Anti-herói. Teríamos num mesmo romance, numa mesma narração o herói, como se fosse o protagonista e o seu oposto o anti-herói, o antagonista. No entanto, quando  o anti-herói aparece em um texto ficcional, não significa que seu sentido anti-heroico  advenha da existência de um outro personagem no texto representado pelo herói.

O anti-herói é a antítese do herói, na medida em que só possui os defeitos  opostos às virtudes do herói; além disso, suas ações apontam no sentido inverso às  do herói, isto é, projetam-se apenas sobre o eu da própria personagem. Dada a  natureza da maioria das obras de ficção, o herói é geralmente um personagem bom.  Se seguir uma moral própria, teremos um anti-herói. O anti-herói só deixa de ser  “herói” por ele não se enquadrar no esquema de valores subjacente ao ponto de  vista narrativo.

Neste capítulo, procurou-se estabelecer a distinção entre pessoa,  personagem, herói e anti-herói.

A seguir, a partir de cruzamentos – cruzando memórias e cruzando heróis –  será analisada a construção do enredo e das principais ações dos “heróis” de  Memórias de um Sargento de Milícias e de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

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Fonte:
Lea Rodrigues Siqueira: “O Herói das Memórias  Análise em Memórias Póstumas de Brás Cubas e  Memórias de um Sargento De Milícias”. (Dissertação apresentada ao  Programa de  Pós-Graduação em Letras, do Instituto de  Letras, da Universidade Federal de Rio  Grande do Sul, como requisito parcial para  a obtenção de título de Mestre em Letras.   Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Sá Rebello). Porto Alegre, 2010

Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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