Para baixar este livro gratuitamente em
formato PDF, acessar o site do “Projeto
Livro Livre”: http://www.projetolivrolivre.com/
(Download)
↓
(Download)
↓
Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).
---
Lucíola e o ideal romântico
José de Alencar escreveu Lucíola em 1862. No livro Como e porque sou romancista, Alencar narra a história do livro:
Em 1862 escrevi Lucíola, que editei por minha conta e
com o maior sigilo. Talvez não me
arruinasse esse comedimento, se a venda da segunda e
terceira edição ao Sr. Garnier não me alentasse a
confiança provendo—me para os gastos da impressão.(Alencar, 1990, p.66).
O livro foi um sucesso editorial, mas não foi assinado por
Alencar. Lucíola nasceu obra anônima e ganhou notoriedade junto ao público-leitor
por conta própria, sem o apoio do nome consagrado de José de Alencar.
A
primeira edição de mil exemplares, vendida em um ano, é índice da enorme popularidade
que este livro conseguiu junto aos leitores. Esse fator deve-se a dois pontos:
em primeiro lugar, a história é contada de forma epistolar e, portanto, indiretamente.
Lucíola é uma cortesã. Contar a história de uma mulher pública no século XIX é
no mínimo, uma atitude transgressora (se bem que Alexandre Dumas Filho já o fizera), mas fazê-lo por meio de
uma senhora de cabelos brancos, avó insuspeita, viabiliza que o romance seja
apresentado a uma sociedade constituída de jovens e “gentis meninos”. Alencar
prepara o leitor/ leitora antes do
livro:
Lucíola é o lampiro
noturno que brilha de uma luz tão viva no seio das trevas à beira
charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conservava a pureza d`alma
? Deixem que
raivem os moralistas.
A sua história não tem pretensões a vestal. É musa
cristã; vai trilhando o pó com os olhos
do céu. Podem as urzes do caminho dilacerar-lhe a roupagem; veste-a virtude.
Demais se o livro cair nas mãos de alguma das poucas
mulheres que lêem nesse país, ela verá
estátuas e quadro de mitologia, a que não falta, nem
véu de graça,nem
a folha de figueira, símbolos do pudor
no Olimpo e no Paraíso terrestre. (Alencar, 1976 cp 2).
A
heroína é apresentada num jogo claro/escuro; luz viva/seio das trevas; abismo
da perdição/ pureza da alma. Estes contrastes foram apontados por Luís Felipe
Ribeiro:
As imagens relativas a Lucíola, empregadas nesse
discurso, são sempre dicotômicos; luz viva/charcos; abismo da perdição/pureza d’alma;
nudez do corpo/virtude vestida; nudez
artística /folha de figueira. Por mais cortesã que fosse, havia nela um lado cristão e puro. E,
ao final, antes que comece a narrativa, transforma-se em musa cristã, vestida de
virtude, onde não faltam sequer os símbolos do pudor... (Ribeiro, 2008, p. 82).
Ao
apresentar a personagem ao leitor por meio do olhar de Paulo, Alencar faz uma
descrição da mulher discreta e elegante que passaria despercebida se não fosse
o fato de estar desacompanhada de pai, irmão, ou noivo, o que a caracteriza como uma “mulher pública” ou uma cortesã.
Alencar sempre compõe Lúcia associando diferentes trajes aos diversos momentos
em que aparece, ora como cortesã ora como mulher redimida, ou musa casta. No primeiro
capítulo, Lúcia se apresenta vestida
muito discretamente, num vestido “cinzento
com orlas de veludo castanho” e realçava
“ (...) um desses rostos suaves , puros,
e diáfanos “. Rosto de “mulher
bonita” e não de uma “senhora” é o semblante de nossa heroína. É apresentada a Paulo na procissão em louvor de Nossa Senhora da
Glória, onde se encontra a Igreja
(construída no século XVIII) e desconhece que Lúcia seja uma cortesã, Sá ,uma
personagem amiga de Paulo e também conhecido da moça faz as apresentações :
Feita a apresentação no tom desdenhoso e altivo com que
um moço distinto se dirige a essas sultanas do ouro, e trocando algumas
palavras triviais,
meu amigo perguntou-lhe:
-Vieste só?”
- Não acredita?... Se eu viesse por passeio!
- E qual é o outro motivo que te pode trazer à festa da
Glória?
- A senhora veio talvez por devoção? Disse eu.
- A Lúcia devota!... Bem se vê que a não conheces.
- Um dia no ano não é muito! Respondeu ela sorrindo.( Alencar,1976, p.14)
A
personagem é apresentada modesta, caridosa, devota, para logo ser considerada
uma “sultana do ouro” e o tratamento, que lhe é dado ela passa de um tom cortês a “um tom desdenhoso”, presente
sempre nos comentário de Sá, ao longo da
narrativa.
A
caracterização da heroína, neste romance, feita muitas vezes,no esquema teatral luz/sombra, claro/escuro, ainda
apresenta os conceitos do “Rococó” termo devido a “Rocaille” (em forma de
concha) que era um “motivo muito comum de ornamentação da época, e sem uso remonta a
1830 “ (Coutinho,1975,p. 136)
Como Lucíola foi editado em 1862, estes traços
estéticos ambíguos aparecem na obra, e
compensam o estilo “rocaille’. Podemos elencar aqui dois traços que
caracterizam o romantismo: 1) “uma
gama de amor, do namoro ao idílio, à luxúria, ao erotismo; 2) máscaras e
disfarces como recursos intimistas para velar e revelar.(Coutinho, 1975, p. 137)”.
Percebe-se no estilo literário de
José de Alencar que a “máscara” usada é a forma de construir a personagem. Lúcia /Maria
da Glória (seu nome de batismo),são duas mulheres numa só, amalgamadas. A visão
alencariana remete-nos muitas vezes ao
paradoxo: Lúcia se debate entre o desejo do corpo e a pureza de seu espírito, que não aceita a condição de
cortesã, pois almeja um grande amor. Consciente
de sua degradação, o corpo físico procura na abstinência sexual, a redenção
enquanto mulher. Apresenta-se a heroína problemática. A questão do herói
problemático foi abordado por Gyorgy Lukács e este tema já foi abordado no capítulo I.
A ambigüidade
na construção da personagem começa pelo duplo nome: Lucíola também é Maria da Glória.
Com efeito, a personagem central é um ser perfeito e tem
mesmo dois nomes: Lucíola e Maria da Glória. A primeira é cortesã; a segunda,
moça recatada e pura. E elas se
apresentam não apenas numa sucessão temporal, o seu tanto esquizofrênica, mas
num amalgama complexo e que depende do
olhar de quem a vê, para perceber o que é ganga e o que é diamante do mais alto
quilate. (Ribeiro, 2008 ,p.88).
Maria
da Glória é o verdadeiro nome da
cortesã, que tomou o nome de Lúcia de
uma companheira sua que morreu tísica. Com o falecimento desta moça trocou as identidades; quando o médico veio passar o
atestado de óbito. Maria da Glória passou
a viver com a identidade de Lúcia e Maria da Glória foi enterrada para o mundo e
para a família.
Nisto uma moça quase de minha idade veio morar comigo; a
semelhança de nossos destinos fez-nos
amigas; porém Deus quis que eu carregasse só
a minha cruz. Lúcia morreu
tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes. Meu
pai leu no jornal o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa
sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo. Morri, pois
para o mundo e para minha família. Foi
então que aceitei agradecida o oferecimento que me fizeram de levar-me á Europa (Alencar,1976,
p.112)
Com sua
nova identidade como a nova Lúcia, parte para a Europa e na volta assume a vida
de cortesã. Em várias passagens fica claro o erotismo com que José de Alencar atribui à cortesã, o realismo que
compõe estes textos. A iconografia utilizada
para tal , muitas vezes deixa claro, também, que a cortesã é uma face
muito distinta da mulher binômio
Maria da Glória /Lúcia. A iconografia começa na escolha das vestes. No capítulo
V Lúcia esta vestindo um traje branco, um “mar de leite”, “vestes níveas e transparentes”, que
se reporta à singeleza. Entretanto o olhar de Paulo era para a cortesã
e o ícone que nos atenta para
isso é o leque de penas escarlate: “uma grande borboleta rubra pairando no cálice das magnólias”(Alencar,1976,p.27)
Entretanto o meu
olhar ávido e acerado rasgava os véus ligeiros
e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios.Eu sofria a atração
irresistível do gozo fruído , que provoca o desejo até a consunção ; e conheci que essa mulher ia se
tornar uma necessidade , embora momentânea, da minha vida. (Alencar.1976.p.27)
O código
usado por Alencar – a escolha do perfume, a compra de vestidos, jóias, o transporte,
revelava o mundo de sedução que vivia essas “mulheres públicas” que estipulavam seu preço e se colocavam como
mercadoria.
Lúcia
está sempre “elegantemente vestida” e
mesmo usando de simplicidade, as cortesãs “desejem esmagar a casta simplicidade
da mulher honesta, quanta vezes defraudadas por essa prodigalidade” (Alencar,
1976, p.27). Ou seja, a simplicidade, per
si, não era um atributo das cortesãs que usavam disto, mas, era um contraponto de
ironia e não, uma particularidade. Muitos objetos caracterizam a figura da “bacante”,
mas um sempre é indicado nos trechos em que Lúcia aparece como cortesã: o leque
de penas escarlates.
No
capítulo V da obra analisada, Alencar começa a descrever os trajes de Lúcia, direcionando olhar do leitor para o
leque escarlate que a moça carrega para depois, apresentar o traje, que é
branco (que, como pano de fundo ressalta
a presença do leque).
Não me posso agora recordar das minúcias do traje de
Lúcia naquela noite. O que ainda vejo neste momento, se fecho os olhos, são as
nuvens brancas e nítidas, que se frocavam graciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque: o mesmo leque que eu
apanhara, e que de longe parecia uma
grande borboleta rubra pairando sobre o cálice das magnólias. O rosto suave e
harmonioso, o colo e as espáduas nuas nadavam como cisne naquele mar de leite, que ondeava sobre
formas divinas. A expressão angélica de sua fisionomia naquele
instante, a atitude modesta e quase
tímida, e a singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e
viço de infância, que devia influir pensamentos calmos, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e
acerado rasgava os véus ligeiros e
desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios.(Alencar, 1976, p.27)
Ao
analisarmos este trecho percebemos que a descrição faz uso da ambigüidade. O
sentido de pureza do traje não inspira
sentimentos puros, mas sim de desejos, que são expressos num jogo de palavras
em que aparecem as expressões “borboleta
rubra”, “espáduas nuas”, “mar de leite” (onde a sonoridade das
últimas palavras lembram o verbo ‘deleitar-se’);opondo a idéia de uma imagem de mulher pura e
angelical à imagem de mulher cortesã.
A idéia
de uma possível conspurcação da castidade permitida pela descrição do traje e
fisionomia da personagem se opõe à própria condição de Lúcia (por ser uma
cortesã) e também aos pensamentos lascivos despertados em Paulo.
O
romance entre Lúcia e Paulo não é bem visto pela sociedade, afinal a cortesã é uma mulher pública e Sá
conversando com Paulo, comenta que as pessoas pensam que ele é sustentado por
Lúcia.Transtornado, Paulo conversa com a cortesã e diz que não ser justo que eles
fiquem juntos, pois ela é uma figura pública. Magoada, Lúcia retoma sua vida
mundana e volta a circular em companhia de Couto com quem vai ao baile vestida
sedutora e elegantemente. Seu traje em vermelho e negro assim como as jóias
(brilhantes) compõem a imagem de forte sedução
e brilho da personagem.
Ao
descrever Lúcia em seu traje para ir ao baile as cores escolhidas são emblemáticas: preto e vermelho.Lúcia é a imagem da sedução, riqueza e perfídia: ,
Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os
últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para
deixar ver as suas belas espáduas, de um
filó alvo e transparente que
flutuava-lhe pelo seio cingindo
o colo , e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva , se ela tivesse
resistido ao fruto proibido.Uma
grinalda de espiga de trigo cingia-lhe a
fronte e caía sobre os ombros com a basta madeixa de cabelos, misturando os louros
cachos aos negros anéis que brincavam.(Alencar, 1976, p.71)
[...]
---
Fonte:
Fonte:
Luiza
Valentina Pereira de Arruda: “Lucíola A ambigüidade na construção da personagem”.
(Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo como
exigência parcial para obtenção do título
de Mestre em Literatura e Crítica Literária sob a orientação da Profª Doutora Olga de Sá). São Paulo, 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário