12/10/2013

Guerra dos Mascates, de José de Alencar

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Algumas considerações sobre "Guerra dos Mascates", de José de Alencar

Em alguns textos, como Alfarrábios e Guerra dos mascates, o narrador apresenta-se como mediador capaz de recuperar tradições e, assim, de desmobilizar a leitura historicista do Instituto Histórico Brasileiro que, em sua retórica cientificista e formal, coloca em segundo plano a memória popular. Tais textos apontam a discrepância entre o conhecimento oficial, predestinado a confinar-se na poeira dos arquivos e uma memória “viva”, representada geralmente na imagem do ancião.

Há um paradoxo no desejo do narrador em transmitir a experiência coletiva e estabelecer laços com a comunidade, pois esta construção é despida do caráter original e único da narração oral de histórias12; a experiência do passado foi arruinada pela colonização e há um vazio capaz de ser transformado pelo desejo de adivinhá-lo. A experiência autêntica, a erfahrung na complexa leitura benjaminiana, dissolve-se no novo ritmo de vida imposto pela civilização capitalista. Este tipo de experiência, calcada na tradição cultural, é paulatinamente substituída por uma vivência imediata (a erlebnis) e pela vivência de choque.

A imaginação emerge como meio criativo de dialogar com um passado abafado por séculos de domínio colonial; a leitura deste passado aceita a ficção e a subjetividade autoral como peças integrantes de seu processo. A sensibilidade do artista também colabora, pois “sem uma rigorosa intuição do pensamento, que produziu o poema popular, e do centro em que ele vivia, não é possível conseguir essa ressurreição da obra literária” (ALENCAR, 1966, p. 972).

[...]

A casa do colono brasileiro é representada de frente para o mar, em Guerra dos Mascates, sinal para os que navegam, com suas cores berrantes e confusas a metaforizar a pergunta "quem somos nós?":

Larga e baixa, a casa terreira acaçapava-se entre o arvoredo do quintal que a beirava de um e outro lado; mas dava logo nas vistas pela especialidade da pintura extravagante com zue a haviam lambuzado, pois outra qualificação não quadraria à incrível borradela. (...)
Sabidas as contas, decidira a Sra. Rufina Ribas que a  fachada fôsse de uma côr farfante e para ver-se a léguas, lá do alto-mar. Antes de surdir o navio pelo Lameirão a dentro, queria a respeitável matrona que sua casa entrasse pelas  vistas da gente que v inha da santa terrinha...
Chamado a conselho o exímio borrador a fim de dar aviltre sôbre o caso, foi de voto que não havia como o zarcão, para fazer o gôsto à Sra. Rufina. Dito e feito: no dia seguinte amanheceu a parede assenhada com uma crosta do mais coruscante vermelho.
Barulho no caso; novo apêlo ao borrador que guisou a combinação do verdete com o zarcão e assim, de resinga em resinga, chegou -se àquele espalhafato de tôdas as côres, onde o azul brigava com o encarnado, o verde com o vermelho, e o roxo-terra com o amarelo da oca. Era cousa indescritível, que o prospet ode algumas tabernas de hoje não conseguiriam imitar.
Nos primeiros dias esteve a casa de mostra aos basbaques e pascácios que por lá iam, para se pasmarem diante daquela maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra cousa; até que um dia lá apareceu pela manhã escrito a carvão, na frente, este dístico maligno – Perereca.
(ALENCAR, s.d., Guerra dos Mascates, p. 16 e p.17).

A incerteza da escolha e a opção pelo “espalhafato de todas as cores” leva à alcunha de “perereca” (no sentido de confuso), como a casa, remendada em uma identidade confusa, a face do Brasil oitocentista procurava, em um palimpsesto de tintas, pintar a si, com os pincéis do indígena e da natureza. A alcunha de perereca pode insinuar também a crítica a crônica colonial, percebida como oblíqua e contraditória, ao remeter ao Padre Perereca, o principal cronista do reinado de Dom João VI.

Alencar imprime novos olhares, pois novas coisas estariam “à vista”. Ao reverter o ato de descobrir, imprime uma outra significação: a de não cobrir, de arrancar os andrajos, como afirma em “Benção Paterna”, revelando assim a nudez americana sufocada na crosta dos resíduos coloniais.

Deriva da emergência dos novos signos de unificação a necessidade de mapear o país, inclusive ficcionalmente, em uma escrita que extrapola o âmbito territorial, e alça os campos social, temporal e cultural.

Alencar constrói uma geografia – uma escrita da terra – pessoal através de seu olhar para o país, adivinhando espaços, inventando paisagens e fazendo da literatura a bússola condutora do leitor que conduz por cenários inventados, pelo imaginário sempre em construção.

Na ficção alencarina a paisagem é elemento de configuração da memória. Através de suas lembranças pessoais a propósito de sua terra natal, construídas na infância, o autor transforma a memória individual em esfera de passagem para a memória coletiva, agregando este espaço ao nacional, indicando o Ceará como um dos elementos territoriais da nação brasileira; assim, a idéia da unidade política vincula-se à sedimentação da imagem
de uma nação integrada territorialmente.

O mapa de um país uno inaugura-se na viagem: viajar é preciso em um país impreciso. Mesmo que se viaje apenas na imaginação, como fez Alencar, ao figurar cenários jamais ou pouco conhecidos por ele fisicamente.

Esta viagem imaginária tem como fonte privilegiada a leitura, capaz de erigir universos simbólicos e potencializar a imaginação de um Brasil coeso. Extrapola o âmbito físico e, pluridimensional e polissêmica, derrama-se em um turbilhão de espaços e tempos vários e imbricados.

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Fonte:
Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos Paisagens: “Caro-escuro: memória e imagem em José de Alencar”. Universidade Federal Fluminense, 2006

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