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Algumas considerações sobre "Guerra dos Mascates", de José de Alencar
Algumas considerações sobre "Guerra dos Mascates", de José de Alencar
Em alguns textos, como Alfarrábios
e Guerra dos mascates, o narrador apresenta-se como mediador capaz
de recuperar tradições e, assim, de desmobilizar a leitura historicista do
Instituto Histórico Brasileiro que, em sua retórica cientificista e formal, coloca
em segundo plano a memória popular. Tais textos apontam a discrepância entre o
conhecimento oficial, predestinado a confinar-se na poeira dos arquivos e uma
memória “viva”, representada geralmente na imagem do ancião.
Há um paradoxo no desejo do
narrador em transmitir a experiência coletiva e estabelecer laços com a
comunidade, pois esta construção é despida do caráter original e único da
narração oral de histórias12; a experiência do passado foi arruinada pela
colonização e há um vazio capaz de ser transformado pelo desejo de adivinhá-lo.
A experiência autêntica, a erfahrung na complexa leitura benjaminiana,
dissolve-se no novo ritmo de vida imposto pela civilização capitalista. Este
tipo de experiência, calcada na tradição cultural, é paulatinamente substituída
por uma vivência imediata (a erlebnis) e pela vivência de choque.
A imaginação emerge como meio criativo de dialogar com
um passado abafado por séculos de domínio colonial; a leitura deste passado
aceita a ficção e a subjetividade autoral como peças integrantes de seu
processo. A sensibilidade do artista também colabora, pois “sem uma rigorosa
intuição do pensamento, que produziu o poema popular, e do centro em que ele
vivia, não é possível conseguir essa ressurreição da obra literária” (ALENCAR,
1966, p. 972).
[...]
A casa do colono brasileiro
é representada de frente para o mar, em Guerra dos Mascates, sinal para
os que navegam, com suas cores berrantes e confusas a metaforizar a pergunta
"quem somos nós?":
Larga e baixa, a casa
terreira acaçapava-se entre o arvoredo do quintal que a beirava de um e outro
lado; mas dava logo nas vistas pela especialidade da pintura extravagante com
zue a haviam lambuzado, pois outra qualificação não quadraria à incrível
borradela. (...)
Sabidas as contas, decidira
a Sra. Rufina Ribas que a fachada fôsse
de uma côr farfante e para ver-se a léguas, lá do alto-mar. Antes de surdir o
navio pelo Lameirão a dentro, queria a respeitável matrona que sua casa
entrasse pelas vistas da gente que v
inha da santa terrinha...
Chamado a conselho o
exímio borrador a fim de dar aviltre sôbre o caso, foi de voto que não havia
como o zarcão, para fazer o gôsto à Sra. Rufina. Dito e feito: no dia seguinte
amanheceu a parede assenhada com uma crosta do mais coruscante vermelho.
Barulho no caso; novo
apêlo ao borrador que guisou a combinação do verdete com o zarcão e assim, de
resinga em resinga, chegou -se àquele espalhafato de tôdas as côres, onde o
azul brigava com o encarnado, o verde com o vermelho, e o roxo-terra com o amarelo
da oca. Era cousa indescritível, que o prospet ode algumas tabernas de hoje não
conseguiriam imitar.
Nos primeiros dias
esteve a casa de mostra aos basbaques e pascácios que por lá iam, para se
pasmarem diante daquela maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra
cousa; até que um dia lá apareceu pela manhã escrito a carvão, na frente, este
dístico maligno – Perereca.
(ALENCAR, s.d., Guerra
dos Mascates, p. 16 e p.17).
A incerteza da escolha e a
opção pelo “espalhafato de todas as cores” leva à alcunha de “perereca” (no
sentido de confuso), como a casa, remendada em uma identidade confusa, a face
do Brasil oitocentista procurava, em um palimpsesto de tintas, pintar a si, com
os pincéis do indígena e da natureza. A alcunha de perereca pode insinuar também
a crítica a crônica colonial, percebida como oblíqua e contraditória, ao
remeter ao Padre Perereca, o principal cronista do reinado de Dom João VI.
Alencar imprime novos
olhares, pois novas coisas estariam “à vista”. Ao reverter o ato de descobrir, imprime
uma outra significação: a de não cobrir, de arrancar os andrajos, como
afirma em “Benção Paterna”, revelando assim a nudez americana sufocada na
crosta dos resíduos coloniais.
Deriva da emergência dos
novos signos de unificação a necessidade de mapear o país, inclusive
ficcionalmente, em uma escrita que extrapola o âmbito territorial, e alça os
campos social, temporal e cultural.
Alencar constrói uma
geografia – uma escrita da terra – pessoal através de seu olhar para o país,
adivinhando espaços, inventando paisagens e fazendo da literatura a bússola
condutora do leitor que conduz por cenários inventados, pelo imaginário sempre
em construção.
Na ficção alencarina a
paisagem é elemento de configuração da memória. Através de suas lembranças
pessoais a propósito de sua terra natal, construídas na infância, o autor
transforma a memória individual em esfera de passagem para a memória coletiva,
agregando este espaço ao nacional, indicando o Ceará como um dos elementos
territoriais da nação brasileira; assim, a idéia da unidade política vincula-se
à sedimentação da imagem
de uma nação integrada
territorialmente.
O mapa de um país uno
inaugura-se na viagem: viajar é preciso em um país impreciso. Mesmo que se
viaje apenas na imaginação, como fez Alencar, ao figurar cenários jamais ou
pouco conhecidos por ele fisicamente.
Esta viagem imaginária tem
como fonte privilegiada a leitura, capaz de erigir universos simbólicos e
potencializar a imaginação de um Brasil coeso. Extrapola o âmbito físico e,
pluridimensional e polissêmica, derrama-se em um turbilhão de espaços e tempos
vários e imbricados.
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Fonte:
Fonte:
Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos Paisagens: “Caro-escuro:
memória e imagem em José de Alencar”. Universidade Federal Fluminense, 2006
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