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A
crônica romanceada A Alma do Lázaro
A Alma do Lázaro é um texto que os especialistas classificam
como novela ou crônica romanceada. Com
uma trama simples, quase pueril, é portadora, porém, da faculdade de manter o leitor preso à
singularidade da sua construção literária. Ambientada em Olinda, na segunda metade do
século XVIII, é dividida em duas partes. Na primeira, o autor (e também narrador)
explica ao leitor a sua busca pela inspiração para os escritos em questão, encontrando-a num
diário abandonado nas ruínas de uma edificação
da citada localidade. Na segunda parte da obra, Alencar dá voz, literalmente, ao autor do diário encontrado, reproduzindo
através dos próprios escritos deste, a sua saga de dor, desprezo e humilhações por ter
contraído o “hediondo mal de Lázaro”. Nesse
sentido, é o próprio Alencar quem adverte:
São de outro tom os singelos contos que
formam estes Alfarrábios... não convidam ao riso, que tão excelente especiaria é para um
livro de entreter. Bem longe disso, talvez que espremam dos corações mais ternos e
sentimentais uns fios de lagrimas. Caso assim
aconteça, será com bem pesar meu, pois sinceramente acho de mau-gosto lembrar-se alguém de produzir choros
d'artifício a guisa de jogos de vista, quando não faltam motivos reais de tristeza e aflição...(ALENCAR, 2011:19-20).
Com
essa “introdução”, Alencar intenciona alertar ao leitor que vai tratar de um tema árido. Esclarece que seu objetivo não é
provocar “choros d‟artifício” sugerindo que
o tema em questão é motivador de tristezas e aflições “reais”. A narrativa é
feita na primeira pessoa, por um
estudante da Academia de Olinda, Pernambuco, fascinado por Olinda e pelas batalhas e glórias dos
antepassados daquela gente. Por sofrer de insônia e por acalentar um desejo secreto de ser
escritor, vagueia pelas cercanias da Vila, numa muda contemplação dos velhos casarões à
procura de inspiração para um conto, uma novela que fosse em “prosa estirada”.
A
partir deste momento da narrativa, é impossível para o leitor desvincular o autor,
o personagem narrador das desventuras do lázaro e o próprio lázaro, estratégia que Alencar utiliza em toda a crônica. O
autor, ao trilhar tal caminho, cria para um leitor um sentimento de recepção em que os principais
personagens e ele próprio (o autor) não se
dicotomizam e não parece haver limites entre o que seria ficcional e o que
seria supostamente real (fora da
crônica, dito na introdução da obra).
Voltando
à trama, nas suas andanças, encontra o narrador, as ruínas de antigo convento, nomeado por ele de Convento do
Carmo. A solidão noturna levava-o a sondar os destroços de alvenaria da velha edificação
e suas paredes fluas, procurando “uma memória,
um nome, uma inscrição, uma frase” que lhe revelasse algum mistério, que lhe sugerisse “o epílogo de alguma lenda que a
imaginação completaria”. Numa noite de tempestade,
é forçado a abrigar-se no antigo convento e lá encontra um velho pescador. Este segundo personagem, Antônio (Tonico) vai
possibilitar ao narrador, engendrar a sua
trama.
Antônio ou Tonico vai contar ao estudante a
história de um leproso que vivia numa
casa abandonada, um pouco afastada das casas os pescadores e habitantes em geral, porém,
relativamente próxima ao convento e que, naturalmente, sobrevivia da caridade e auxilio das
religiosas que ali residiam. O fragmento abaixo retrata o inicio da conversa entre o estudante
e o velho pescador. Ancorada na memória do
segundo, é bastante emblemática da situação de um enfermo de lepra em meados do
século XVIII:
- Um pobre moço doente... veio morar
naquela casa porque todos fugiam dele...
- Que doença?
-
O moço era como o que foi ressuscitado pelo Cristo!
- Lázaro?
- Senhor, sim. Agora, quantos andam por
aí como ele? Mas, naquele tempo não era
assim. A gente pensava que aquilo era uma praga mandada por Deus pelos pecados dos homens...(ALENCAR, 2011: 25-26).
A
noção da “doença de Lázaro” como a expressão de pecado mortal ou faltas graves é observada desde a Antiguidade. No
Ocidente ou Oriente antigos, o diagnóstico da doença era realizado por um
sacerdote ou autoridade religiosa similar. Se fosse confirmada a doença, o enfermo estava “morto”
para o mundo e como conseqüência deveria
isolar-se de todos. Assim, uma série de interdições e prescrições impostas aos leprosos foi constante, nas mais variadas
culturas e épocas.
Porém,
de toda a narrativa que faz o velho pescador acerca da vida miserável e isolada que levava o pobre lázaro de Olinda,
um detalhe chama a atenção do nosso narrador:
a existência de um diário escrito pelo enfermo nas suas imensas horas vazias. A existência desse diário leva o estudante a
encontrar outras vezes o pescador para supostamente
ouvir suas histórias, mas guardando o secreto desejo de descobrir onde estariam guardados os escritos do leproso.
Finalmente, consegue que Tonico o leve até o local onde estava guardado o diário:
...
cavamos três palmos; creio que se abrisse
o túmulo de um ente que me fosse caro, não sentiria as emoções porque passei
naquele momento. A chuva que caíra a
cântaros amolecera o terreno e facilitara o trabalho. Depois de um quarto de hora de escavação, o pescador
tirou do chão uma caixa de folha, que
teria dois palmos de comprimento, sobre um e meio de largo, já inteiramente oxidada. E carregado com meu
tesouro, recolhi-me. (ALENCAR,
2011:30-32)
O narrador teria mantido “o tesouro” consigo
durante vinte anos, até que decidiu
publicá-lo. Assim, a narrativa do estudante em busca de uma inspiração para sua
novela ocupa a primeira parte da obra e
a segunda, resume-se a suposta narrativa do lázaro, na forma como o próprio a teria
organizado. Assim, a segunda parte da novela “A Alma do Lázaro” é totalmente dedicada à
narrativa do leproso segundo as suas próprias
palavras.
Tal
narrativa e dividida em dias (mais ou menos equivalentes há três meses haja vista que começa em 07 de março de 1752 e
termina em nove de maio do mesmo ano). O
primeiro texto assim inicia:
“...
estou só no mundo. A quem direi a minha
dor? Ao vento para levá-la à gente que
me escarnece? Que profunda é a solidão desta casa... parece-me um túmulo! A noite desce como lousa fria e
negra. Ah! Se com ele me trouxesse o
repouso. Mas é só morte ao coração, a fé, a crença. A dor vive em meu cadáver. Depois que morri não me
conhece... Sim! conhecem-me quando me
fogem (ALENCAR, 2011: 35-36) .
O
fragmento de texto acima, atribuído ao leproso, sugere os sentimentos de solidão, dor e abandono a que todos os
leprosos eram acometidos quando a doença se tornava visível. Porém, o modo como eram
tratados os leprosos no século XVIII (ou XIX e até primeiras décadas do século XX) não
devem ser dissociado do pavor que a doença
disseminava por suas várias características: por ser uma enfermidade deformante, paralisante, cujos agentes
etiológicos eram completamente desconhecidos, por acreditar-se que era contagiosa,
incurável, e, portanto, letal. Assim, na ausência de tratamento, medicação e
cura, a sociedade se apavorava diante da possibilidade de contrair tal enfermidade:
A notícia da minha enfermidade
divulgou-se de modo espantoso. Quando passava,
apontavam-me de longe. Murmuravam meu nome. Realmente, o Lázaro não é mais um homem. Foi concebido pela
mulher, mas foi a praga que o abortou.
No terror que infunde é fera, no asco que excita, é verme! (ALENCAR,2011:
42-43).
Para
além da fuga de qualquer contato ou proximidade física com um lázaro, qualquer objeto que pudesse ser tocado por ele
era recusado pela população. Diante deste
fato, podemos afirmar que a moeda que passasse pelas mãos de um enfermo de lepra era recusada no comércio. Segundo a
trama em questão, o lázaro do qual se fala, possuía uma escrava que realizava para ele as
tarefas que, necessariamente, eram feitas fora de casa. Um dia, esta foi às compras e os
comerciantes recusaram o dinheiro que sabiam
ser proveniente do lázaro como ilustra o fragmento da página dezenove, transcrito abaixo:
Maria voltou da feira sem as compras. Do
seu jeito chucro achou as palavras para
me dizer: os regatões recusam receber o dinheiro que passou por minhas mãos... têm nojo do meu dinheiro!
Do seu dinheiro... se o tivesse roubado,
o aceitariam, mas, tocaste no dinheiro e eu também ...(ALENCAR, 2011:45-46).
Em virtude de não poder circular pela
localidade durante o dia, apesar de não apresentar
ainda as escrófulas nas mãos e na face - o lázaro passeava à noite protegido pelas sombras. Assim, vagava pelas praias e
pelas ruas e distraía-se olhando as pessoas de longe, sem ser visto por elas. Num desses
passeios chamou-lhe a atenção uma bela voz
feminina que interpretava cantos de “louvor ao menino Jesus”. Aproximou-se da habitação de onde vinha a voz e como a casa
possuía uma varanda, observou uma jovem que
cantava recostada numa rede.
A
partir daquele dia, passou a observar diariamente o sítio e sempre no mesmo horário: no momento em que a moça cantava suas
orações. A moça (Úrsula) também passou a
observá-lo e à medida que os dias passavam, a moça procurava aproximar-se cada vez mais do local onde o lázaro
permanecia um pouco oculto pelas sombras da noite. Numa dessas ocasiões sorriu-lhe e após
dias e dias nessa mútua troca de olhares e sorrisos entende-se que surge um imenso amor
(embora totalmente platônico). Entre os dois.
O infeliz lázaro achava-se hediondo por “ousar
erguer os olhos para a mais bela criatura
de Deus” E rogava a este Deus que o “fulminasse” antes que pudesse infligir qualquer mal à sua bem-amada. Porém, negando a
racionalidade que o acometia durante dia,
a cada noite, aproximava-se mais de Úrsula, a ponto dela lhe ofertar uma rosa e
exigir que lhe revelasse o seu nome. Nessa
noite, de tão doce enlevo no seu cotidiano de solidão, deixou-se ficar alheio na contemplação da figura da amada.
Neste transe, não viu surgir o corpo alquebrado
de um velho amigo da família de Úrsula. Este momento é assim narrado pelo personagem:
Eis que se rasgou a escuridão e vomita sobre
mim as chamas do inferno e cinge-me uma
labareda sinistra. Corro. Mas, além está o luar alvacento. Alaga o rúbido clarão todo o arvoredo. Volvo
esvairado sobre os passos e de novo na
flama vermelha que me persegue como a língua do Satanás: - É o Lazaro! É o Lázaro! Brada o velho com voragem
de desespero. Ainda ouvi o grito de
angústia que despedaçou a alma de Úrsula... (ALENCAR, 2011:55-57).
Este
se constitui no momento de clímax da novela. O instante em que Úrsula entende as razões do seu amado esconder-se e
não dirigir-lhe a palavra. Seguindo o fio da narrativa o leitor imagina, inicialmente,
que Úrsula assume o mesmo comportamento de
todos os demais e rejeita o lázaro, haja vista que não mais aparece na varanda
ou é vista. Porém, o epílogo da novela é
surpreendente romântico e o fechamento da obra revela uma carga de dramaticidade que supera
as expectativas do mais criativo leitor.
Nas
páginas finais, ao leitor é dado a saber que, Úrsula adoecera de amor e tristeza. Fica implícito que a moça, por ser
sabedora da impossibilidade de realização da sua história de amor, definha até a morte. O
lázaro, retornando ao sítio onde residia sua amada percebe uma grande movimentação e intui
que algo acontecera a Úrsula. Desesperado,
invade a residência e percebe que o que ali ocorria era o velório da jovem. Num ato extremo, o lázaro rouba o corpo da
bem-amada e o leva consigo para a cabana em que morava.
A família de Úrsula e a cidade em fúria,
perseguem o lázaro pelas ruas da cidade até
a sua morada. Lá chegando, decidem atear na cabana. Ainda assim, o lázaro sobrevive para escrever o diário encontrado
pelo narrador e que deu origem à trama, supostamente.
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Fonte:
Fonte:
Zilda
Maria Menezes Lima: “A Alma do Lázaro” de José de Alencar: uma possibilidade de diálogo entre História
das Doenças e Literatura. Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011
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