17/10/2013

As Minas de Prata, de José de Alencar (livro completo)

Jose de Alencar - As Minas de Prata (Completo)
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Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).


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A construção de um herói

A individualidade essencial de Estácio faz-se perceber em sua busca pelo mapa da mina prateada que lhe permitirá alcançar dois objetivos completamente pessoais: conquistar uma posição social que o permita aspirar à mão de Inesita e restabelecer o bom nome de sua família. Por um lado, ao identificarmos Inesita como seu objeto de desejo, seu “fim visado”, observamos que o caminho para alcançar esse objeto passa pelo encontro da mina, o que lhe permitirá, a ele que é pobre, obter os ganhos necessários para igualar-se economicamente à família da moça e ter a chance de pedir sua mão em casamento. Por outro lado, também é  “objeto de desejo” para Estácio limpar o nome do pai, Robério Dias, retirando, assim, a mácula que pesa sobre seu bom nome. Em ambos os casos, Padre Molina é o antagonista, a força opositora, ou seja, aquele que impede  “a força temática de se desdobrar no microcosmos”. Molina está à altura de Estácio, já que  “o herói, para ser grande, necessita de companheiros e adversários que não lhe sejam muito inferiores. [...] A pureza ingênua do herói, num mundo de crápulas, transforma-o em ser quixotesco”. Sendo assim, temos na figura de Padre Molina o grande obstáculo que Estácio tem que vencer. Para isso, ele está sozinho; não conta com a ajuda de forças místicas, nem míticas, e seus amigos, apesar de fiéis, pouco podem fazer para ajudá-lo.

A observância desse tratamento, dado por Alencar aos seus personagens, permite-nos entender que ele não apresenta seus heróis na concepção clássica da palavra, apesar de eles terem certo caráter épico. Podemos verificar que os personagens alencarinos fogem, portanto, do sentido hegeliano consagrado ao herói, objetivado no absoluto e sendo fio condutor da história.

Não podemos conceituar dessa forma os heróis alencarinos, principalmente Estácio. A história não se desenvolve por ele, mas através dos acontecimentos, concedendo-nos a oportunidade de observar as reações do herói, que passamos a conhecer mais profundamente. O “herói” alencarino busca muito mais uma conquista de objetivos pessoais, e suas buscas individuais são mais fortes do que a busca pelo bem coletivo, a redenção de seu povo – o que, quando surge ao seu alcance, na possibilidade de desarticulação de uma conspiração holandesa, por exemplo, é puramente ao acaso, não algo pelo qual ele estivesse buscando ou lutando para conquistar. O seu envolvimento nessa desarticulação deve-se mais à oportunidade reconhecida de aproximar-se da realização de seu intento do que de um desejo propriamente dito de salvação do reino, apesar de não podermos desconsiderar a honra que o move em todas as suas ações, pois “Estácio buscará o polimento da imagem paterna, bem como o amor de Inesita [...]; e ainda que debele a conspiração holandesa não haverá de exprimir, no conjunto, a concentração de um fato histórico”.

Mas é também essa exarticulação do conluio que nos permite apreciar uma cena das mais curiosas, em que o protagonista do romance, travando contato com D. Diogo de Meneses e Siqueira – real personagem da história do Brasil – revela toda a sua altivez, nobreza e coragem. Ao entregar-se ao governador-geral, exige justiça e reparação dos agravos sofridos por culpa de uma falsa acusação que o levou preso. Ora, somente um personagem com porte de herói agiria de tal forma diante de uma tão grande autoridade. Estácio não hesita, invade a sala de D. Diogo, dá-se a conhecer, revela toda a conspiração interrompida por sua ação e ainda o afronta, acusando-o de ser injusto. Tudo em nome da honra violada.

– Estas são as provas de minha inocência, sr. governador. Agora, a captura destes presos que se evadiam, a destruição dos dois navios de contrabando que os esperavam em Itapoã para levá-los à Holanda; a descoberta do plano que concertaram os judeus desta cidade para entregarem a Bahia aos holandeses; estas são as provas da vossa injustiça.

Suas atitudes estão de acordo com a criação que lhe deu Vaz Caminha, o qual, segundo o próprio Estácio, ensinou-o a suportar a pobreza e que lhe aconselhava: “sois moço e valente cavalheiro; a riqueza mudou-vos de repente a carreira; habituai-vos desde já a trazer a vossa fortuna, como a vossa honra, na ponta de vossa espada”.

Trabalhando com o conceito de herói clássico, ou seja, na esfera do mito, o herói seria aquele ser nascido da relação entre um deus e um mortal; um semi-deus, cujas façanhas sobre-humanas tornavam-no alguém fora do comum, diferente de deuses e de homens, tanto pela valentia física quanto pelas qualidades da alma; um ser a-histórico, que

visa ao sempre igual, arquetípico, [que] não reconhece transformações históricas fundamentais. Os fenômenos históricos são, para ele, apenas máscaras através das quais transparecem os padrões eternos. Sua visão do tempo é circular, não há desenvolvimento. O mito salienta a identidade essencial do homem em todos os tempos e lugares.

Movido por um dinamismo vital, mantinha-se constantemente em ação, fazendo uso de seus instintos aguçados ou da ajuda direta dos deuses. Impelido por sua valentia e grande força física e moral, o herói estava sempre pronto a arriscar sua vida por outrem ou pela causa que defendia, deixando os seus próprios interesses em segundo plano. ― “Instintivo, genuíno, puro, ignorante das forças que possuía, conduzia-se impelido por um dinamismo que se confundia com o próprio ato vital”.

Esse é o herói da epopeia, forma estética que responde à pergunta ― “como pode a vida tornar-se essencial?” E esse seria o segredo do helenismo, segundo Lukács.

Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo do helenismo, sua perfeição que nos parece impensável e a sua estranheza intransponível para nós: o grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas nenhum caos.

Hegel explica que “a epopeia, quando narra alguma coisa, tem por objeto uma ação que [...] apresenta inumeráveis ramificações pelas quais contata com o mundo total de uma nação ou de uma época”. E é o romantismo, com sua caracterização lírica, que desenvolve a noção de indivíduos excepcionais que encarnam a providência histórica; homens com a capacidade de realizar determinadas tarefas importantes para a humanidade, também chamados pelos poetas românticos de gênios. Essa é a linha de pensamento de Hegel, que considera como individual a finalidade de toda a ação épica, mesmo as que se ligam de alguma forma à coletividade. Defende, ainda, que a história de uma nação, ou o seu acontecimento épico, por não ter o que ele chama de “uma existência individual subjetiva” está ligada inexoravelmente a um determinado indivíduo, ―cuja individualidade confere a forma e o conteúdo a toda a realidade”.

Já antes tínhamos dito que o que constitui o fundo do mundo épico é um empreendimento coletivo no qual se possa exprimir a totalidade do espírito nacional ainda nos primórdios do seu estado heróico. Porém, acima desta base geral deve elevar-se um fim particular, cuja realidade pode ter uma influência decisiva sobre o caráter nacional, sobre as crenças e a atividade nacionais.

Em se tratando de seres históricos, esse herói estará sempre ligado aos acontecimentos políticos de sua nação. Como poeta, na sua arte, conferirá a forma e o conteúdo à realidade através de uma descrição poética e viva, que se fundamenta no espírito universal. Hegel elege os heróis de Homero como os exemplos de homens completos, cujas ações denunciam a identidade comum à do seu povo, porém atingindo o máximo grau de desenvolvimento, afirmando a totalidade extensiva da vida à medida que se desenrolam os acontecimentos.

Seriam eles os heróis que vivem “nessas épocas naturais quando o caráter individual conserva toda a sua ingenuidade”. Totais em si mesmos, são, no entanto, tocados pelo destino, subjugados pelo poder do fatum, o qual determina a sucessão de acontecimentos aos quais o herói tem a “necessidade” de obedecer, sob pena de ser castigado pelos deuses. É, portanto, o exterior que rege o herói clássico, e mesmo o herói universal hegeliano, pois que a epopeia tem por objeto os acontecimentos, ao contrário do romance que tem objetiva o indivíduo e apresenta todo o resto, como suas ações e seu contato com o mundo, como consequência de seu estado interior.

Desta forma, o herói do romance diferencia-se do helênico por ser o seu oposto. Por ter mais dúvidas que respostas; por estar em uma busca incessante de algo e não saber como tornar a vida essencial. “A epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”.


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Fonte:
 Arlene Fernandes Vasconcelos:  “A Verdade Dispensa a Verossimilhança”: O Fato e a Ficção no Romance Histórico As Minas De Prata, de José De Alencar (Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Almeida Peloggio). Fortaleza, 2011

3 comentários:

  1. Boa análise de um clássico, infelizmente, pouco divulgado entre as escolas para seus alunos. A história daria um filme

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  2. Desejo ler o volume 3 de As minas de prata

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