08/06/2024

Tratado de Direito Natural: uma produção literária do século XVIII

 

TRATADO DE DIREITO NATURAL: UMA PRODUÇÃO LITERÁRIA DO SÉCULO XVIII 

OS GÊNEROS DIDÁTICO-ENSAÍSTICOS 

Para se estudar o Tratado de Direito Natural, faz-se antes necessário apresentar as diversas tipologias dos gêneros didático-ensaísticos e a expressão objetiva ou subjetiva utilizada pelos escritores para cada tipologia. Para tanto, visita-se o conceito de gênero, que foi retirado da enciclopédia ESPASA-CALPE, que o apresenta da seguinte forma: “De los géneros literarios puede decir-se que son tantos cuantos los objetos que trata el escritor y los modos que tratarlos” (1924: 1238).

Torna-se importante verificar também as palavras de António García Berrio em seu texto Poética: tradição e modernidade. Geralmente, faz- se uma delimitação didática de apenas três tipos de sistemas de gêneros literários – a épica, a lírica e a dramática; e realmente estes foram, no Ocidente, a forma mais fixa e rígida que vigorou por largo tempo. Na Idade Média, iniciou-se uma alteração quanto à classificação dos gêneros literários. Tratava-se de compreender uma realidade com a existência dos mais diversos temas e formas de expressão, cuja proliferação não estava sob nenhum controle teórico.

A noção de gêneros literários se alterou então, faltando instrumentos teóricos precisos para a regularização. Nas universidades, observava-se ainda a concepção aristotélica da mimesis, mas a doutrina sobre os gêneros acabava por se confundir com a teoria das modalidades do discurso. Nesta perspectiva, os livros mais influentes foram De inventiore e Retórica a Herennio de Cícero e Epístola de Horácio.

Percebe-se que o conceito enciclopédico, elencado acima, possibilita entender que há grande diversidade de gêneros de obras literárias e que o fato de prevalecerem e serem aceitos, em um determinado período, permite o surgimento de teoria acerca de novos gêneros. Segundo García Berrio, para haver a prevalência de outro gênero, é preciso levar em consideração a dimensão histórica da literatura e sua evolução.

Há alguns gêneros em prosa, chamados pelo autor de argumentação ensaística, caso da prosa doutrinária e da oratória. Dentro desse gênero argumentativo literário, conforme García Berrio e Javier Huerta Calvo em sua outra obra Los Géneros Literarios: sistema e Historia, sob o nome de gêneros didático-ensaísticos, existem os subgêneros que apresentam ora objetividade, ora subjetividade ou então objetividade e subjetividade ao mesmo tempo.

Para esclarecer as nuanças dos gêneros didático-ensaísticos, os autores expuseram um quadro, determinando a maneira de sua forma expressiva: “es decir objetivad (épica), subjetividad (lírica) y objetividad- subjetividad (dramática)”(GARCÍA BERRIO e HUERTA CALVO 1995: 220). Ressalte-se que García Berrio e Huerta Calvo citam Jesús Gómez, um estudioso do diálogo, que em 1988 fez um estudo monográfico acerca do diálogo renascentista, estabelecendo três modelos: o de Platão, o de Cícero e o de Luciano. São eles:

a) El diálogo platónico presenta un carácter básicamente filosófico: cómo acceder a la verdad con o sin el método mayéutico. El contraste dialógico es en los diálogos platónicos españoles puramente aparente, pues por lo general el maestro es transmisor de la verdad incuestionable a unos discípulos-interlocutores que son sólo el pretexto para que él hable.

b)  El diálogo ciceroniano es una exposición de conocimientos necesarios al orator ideal. El diálogo es una oratio perpetua a cargo del maestro con apostillas del discípulo; son ejemplos de esta modalidad El Cortesano, de Castiglione, el Diálogo de la dignidad del hombre, de Fernán Pérez de Oliva, y De los nombres de Cristo, de Fray Luis de Leon.

c) El diálogo lucianesco es de los tres el que peor encaja en este grupo genérico didáctico-ensayístico, pues son más numerosos los elementos imaginarios que involucra que los de carácter racionalista y discursivo. (GARCÍA BERRIO e HUERTA CALVO 1995: 221-222) 

Os gêneros didático-ensaísticos apresentados pelos autores são, portanto, classificados em três expressões: (a) a expressão dramática: o diálogo platônico, o lucianesco e a sátira menipéia; (b) a objetiva: o ensaio, o artigo, o tratado, a glosa, a miscelânia (variando como apotegma, refrão, máxima, aforismo e greguería, que é o folclore, conforme Ramón Gómez de la Sena), a história, a biografia, o livro de viagens, o discurso e o sermão (os dois últimos como formas mais oratórias); (c) e a expressão subjetiva: autobiografia, confissão, diário e memórias. de anotar que os gêneros didático-ensaísticos de expressão objetiva são considerados tradicionalmente como fora do âmbito poético, por tratar de assuntos doutrinais e não ficcionais, e a linguagem usada serve para comunicar pensamentos filosóficos, religiosos, políticos, científicos, tendo como propósito sempre um fim ideológico.

Para definir um pouco mais os gêneros didático-ensaísticos, torna- se importante selecionar alguns conceitos relevantes sobre os subgêneros apresentados anteriormente, através de uma síntese do texto de García Berrio e Huerta Calvo. Falar sobre as utopias ou tratados utópicos é falar sobre Thomas More que foi um dos primeiros a fazer um tratado utópico e que depois se estendeu por todas as literaturas, por volta do século XVI. García Berrio e Huerta Calvo consideram a epístola e o sermão como subgêneros dos gêneros didático-ensaísticos. As epístolas podem ser feitas em verso ou em forma narrativa. Em prosa pode servir para uma expressão didática como foi o caso de Cartas Persas de Montesquieu e Cartas Marruecas de Cadalso, no século XVIII. No renascimento, as epístolas foram subgêneros essenciais para a comunicação espiritual e científica. A epístola é um subgênero poético versificado que alcança sua perfeição quando consegue imitar a desordem ou a ausência de um fato executado, utilizando-se do discurso livre. A epístola mantém-se como subgênero da prosa literária nos famosos epistolários humanísticos, chegando a constituir-se em veículo que expressa as manifestações sociais. Percebe-se nestes escritos um excepcional caráter de ficção situacional e seus autores como Montesquieu, Goethe, Schiller, Joyce, Vieira e outros, estão sempre conscientes da perpetuação e da condição pública de seus escritos.

Como  documentos  confidenciais,  os  epistolários  modernos oferecem focalização subjetiva e encaixam-se aos subgêneros das memórias e da autobiografia. Esses escritos são opostos à objetividade da história científica. A autobiografia e as memórias são narrações não- ficcionais, mas usam dos recursos de atração e encadeamento do  interesse que são próprios da narração romanesca, que será foco de estudo ainda neste capítulo.

Segundo a definição que aparece na enciclopédia citada, as cartas ou as epístolas constituem também um subgênero literário: “Las cartas ó epístolas constituyem además un género literario que ha tenido sus días de esplendor y que, por constituir un importantísimo género literario especial, se estudiará detenidamente en la voz Epístola” (ESPASA- CALPE 1924: 1420).

A epístola apresenta três sentidos distintos: carta particular; escrito em prosa destinado à publicidade, em que se trata de interesses públicos; e composição poética sobre moral, literatura, arte ou sátira. A epístola em prosa é destinada à publicidade de assuntos importantes, porque permite ao escritor expor livremente a sua maneira íntima de pensar e, também, uma grande idéia dos costumes de um país e época em que foi escrita.

Faz-se necessário destacar o ensaio, que se apresenta como a forma básica da expressão objetiva, como nas monografias de caráter histórico e teórico. A temática formal deste subgênero dos gêneros didático-ensaísticos pode ser assim caracterizada:

-  como sujeto de la enunciación, el autor sostiene una posición subjetiva.

-  La temática es variada.

En cuanto al estilo, se trata de una “prosa literária sin estructura prefijada, que admite la exposición y argumentación lógica, junto a las digresiones, en un escrito breve sin intención de exhaustividad”.

El propósito es comunicativo, reflexivo o didáctico. (GARCÍA BERRIO e HUERTA CALVO 1995: 224)

Vale salientar que o texto Ensaios de Montaigne não correspondia necessariamente a um gênero literário, mas sim a “una noción de método, del desarrolho de un proceso intelectual” (GARCÍA BERRIO e HUERTA CALVO 1995: 225).

Como os autores consideram a epístola e o sermão como subgêneros dos gêneros didático-ensaísticos, o conceito de ensaio se faz necessário, conforme proposto por György Lukács em 1911, em seu “Sobre la esencia y la forma del ensayo”:

Hay (...) vivencias escribe que no podrían ser expresadas por ningún gesto y que, sin embargo, ansían expresión (...): la intelectualidad, la conceptualidad como vivencia sentimental, como realidad inmediata, como principio espontáneo de la existencia; la concepción del mundo en su deseada pureza, como acontecimiento anímico, como principio espontáneo de existência. (GARCÍA BERRIO e HUERTA CALVO 1995: 225) 

Nota-se assim que a concepção de ensaio era algo subjetivo e que na prática moderna o ensaio perde a atitude da modéstia e o sentimento de espontaneidade, características do ensaio clássico. Ligado ao subgênero ensaio, também o artigo que se apresenta em número menor e que é um subgênero da modernidade; geralmente sua prática está associada à descrição de usos e costumes de uma dada corrente estética.

É importante destacar também o subgênero discurso, que consiste em uma:

Serie de las palabras y frases empleadas para manifestar lo que se piensa y siente. Oración, obra de elocuencia pronunciada en público. Escrito de no mucha extensión, ó tratado, que contiene varias reflexiones ordenadas sobre uma matéria, dirigidas á enseñar ó persuadir. Disertación oral ó escrita, pronunciada de memoria... (ESPASA- CALPE 1924: 1480) 

O discurso indica a idéia de discorrer, pensar acerca de, dissertar ou tratar uma matéria determinada, sendo que o uso da voz é o essencial para pregar os ideais. Tratando-se de transmissão oral, esta pode apresentar-se como uma literatura primitiva e simples e também como uma crença culta e elaborada. O discurso tem caráter político e é muito aplicado nos âmbitos filosóficos, sociais e literários. Há uma relação entre a função de certos hábitos estabelecidos e o ouvinte, de forma a consubstanciar o que se deseja persuadir. O discurso é outro subgênero que não se diferencia de uma realidade extratextual, pois em ambos a apresentação de figuras de linguagem e pensamento. Assim:

O discurso é um gênero em que predomina o esforço para adquirir este direito de expressão, com crença total na probabilidade de que as coisas possam ser expressas de outra forma. E o emprego de tropos é, pois, a alma do discurso, o mecanismo sem o qual não pode fazer o seu trabalho ou alcançar o seu objetivo. (WHITE 1994: 15)

Deve-se deixar claro o que se entende por tropos; trata-se de uma singularidade do discurso construída por meio da figuratividade. Com o entendimento da palavra tropos é possível esclarecer a noção de discurso como uma possibilidade de expressão, não havendo assim uma única maneira para expressar um fato.

Outro subgênero que merece destaque é o sermão, um discurso pronunciado em uma igreja aos fiéis reunidos para instruções das verdades da religião e que trata das práticas das virtudes cristãs, ou seja, é o sermão que expõe os dogmas cristãos e as preleções da moral evangélica, havendo também alguns sermões que só têm o objetivo de explicar os textos litúrgicos. O sermão está centrado no âmbito do discurso, só que com temática religiosa-moral. O sermão, dito por um clérigo, serve para expor um ponto de vista eclesiástico, a verdade absoluta.

Ressalte-se, também como subgênero dos gêneros didático- ensaísticos, o dicionário que primou pela tendência cultural totalizadora. Importante destacar, primordialmente, o conceito de tratado, outro subgênero e objeto de estudo nesta tese. É uma exposição didática, que se separa da forma dialogada e da conversação como as empregadas em livros puramente literários e poéticos:

La verdad científica puede ser expuesta empleando los diversos recursos literarios que la Preceptiva y la Estética señalan. La idealización poética de la verdad puede penetrar desde la forma externa hasta el fondo mismo de la materia escogida. Cuando el autor atiende exclusivamente, ó casi exclusivamente, á los fines utilitarios e prácticos de la ensenânza y el elemento poético queda reducido á su mínimum, la obra redactada en esta forma cosntituye un tratado. (ESPASA-CALPE 1924: 1536) 

O tratado aparece na história da didática quando o pensamento e os métodos chegam a sua maturidade. Explora-se o domínio do conhecimento primeiramente pela fantasia e pelos sentidos, depois pela inteligência e pela razão. O homem chega então à convicção de que encontrou a verdade e busca um meio de conservá-la e defendê-la de seus eternos inimigos. Nascem, então, as disciplinas científicas e os tratados. Os conhecimentos postos formam um sistema de verdades solidamente organizado, que constituem o que se chama de ciência.

O tratado pode ser usado para divulgar uma disciplina ou problema científico e então deve moldar-se à capacidade intelectual das pessoas a que são destinadas. Quando utilizado para fins de formação científica ou profissional pode adotar uma das três formas seguintes:

elemental ó primaria, simple bosquejo que sirve de iniciación técnica; fundamental ó secundatia, que es ya una visión completa pero sin pleno desarrollo de una disciplina, y superior ó magistral, destinado á una especialización científica. Cada uno de estos tratados requiere condiciones de exposición distintas, determinadas, tanto por el grado de preparación de los que han de seguir una enseñanza como por la índole de la materia que se expone. (ESPASA- CALPE 1924: 1536) 

O tratado é, portanto, um subgênero histórico e teórico muito flexível, podendo-se apresentar em prosa ficcional e do tipo científico e didático. Segundo García Berrio e Huerta Calvo, o tratado deve ser progressivo e com muitos cuidados estilísticos. Destaca-se nesse subgênero a glosa doutrinal que serviu, no século XVI, para a apresentação dos assuntos místicos.

Quanto aos gêneros didático-ensaísticos de expressão subjetiva, deve-se ressaltar que começaram a surgir quando a sociedade burguesa, no Ocidente, adquire uma convicção histórica de sua existência, pois antes da ideia de indivíduo não era possível falar em autobiografia.

Distinguir os subgêneros de expressão subjetiva (autobiografias, memórias, confissões e diários, que se apresentam em primeira pessoa) torna-se bastante difícil. As memórias são os textos que mais se reconhecem como literária, pela liberdade imaginativa que a elas está vinculada. Elas constituem um subgênero moderno, próprio das sociedades avançadas, que necessitam recuperar seu passado. também as memórias de caráter introspectivo que são as confissões. Verifica-se que o diálogo, algo entre os gêneros didático-ensaísticos e o discurso literário, é uma prática que se mantém através dos séculos, impulsionada por motivos historicamente diversos.

A apresentação dos gêneros didático-ensaísticos indica a necessidade de entender o que é uma atividade intelectual. Para que se possa entender como a atividade intelectual se processa, é necessário verificar que a realidade social não para de se transformar. O historiador não cessa de registrar, a vida está em constante movimento. Como a própria vida, a história é movediça, feita de problemas misturados e que pode encaminhar-se para diversos aspectos e, às vezes, até mesmo contraditórios. Como abordar essa vida tão complexa?

A vida, a história do mundo, as histórias particulares são eventos que marcam os pensamentos de todos os indivíduos. E como deixar esses eventos concretizados na história? As realidades sociais são representadas através da literatura, assim, para não ficar somente com o que os historiadores registraram do passado, é preciso ter o conhecimento das manifestações sociais para compreender como os homens agiam. O certo é que esses homens tiveram influência de séculos anteriores, e neste âmbito a pesquisa ou a leitura de obras nunca lidas ou pouco lidas e arquivadas, como é o caso da obra que será analisada nesta tese, se faz necessário.

O que se torna importante para efetivar a compreensão das manifestações sociais é o não rompimento com os aspectos históricos, geográficos, sociológicos, filosóficos e literários. Segundo Candido (1985), há uma correlação entre literatura e sociedade. Os aspectos sociais e sua presença nas obras importam para uma compreensão do momento em que a obra foi escrita. O social importa para o autor como elemento que desempenha um papel importante na estrutura, tornando- se interno.

Verifica-se uma união entre literatura e as manifestações sociais, e são estes aspectos que procurarei demonstrar através da obra Tratado de Direito Natural (1768) de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), as manifestações sociais do período em que Gonzaga a escreveu, os anos de 1763 a 1768. O escritor de um texto pode, muitas vezes, privilegiar certos conhecimentos, valorizando uns, desvalorizando outros, dependendo de sua intenção no momento da escrita. Essa intenção poderá ser esclarecida no capítulo sobre sua vida e obra, em que se busca delinear a visão de Gonzaga sobre a Universidade de Coimbra.

O que se nota é que ao lado das manifestações sociais nasceu uma história das representações. Esta assumiu diferentes formas como:

história das concepções globais da sociedade ou história das ideologias; história das estruturas mentais comuns a uma categoria social, a uma sociedade, a uma época, ou história das mentalidades; história das produções do espírito ligadas não ao texto, à palavra, ao gesto, mas à imagem, ou história do imaginário, que permite tratar os documentos literário e artístico como plenamente históricos, sob condição de ser respeitada sua especificidade; história das condutas, das práticas, dos rituais, que remete a uma realidade oculta, subjacente, ou histórica do simbólico, que talvez um dia conduza a uma história psicanalítica, cujas provas de estatuto científico não parecem ainda reunidas. Enfim, a própria ciência histórica é colocada numa perspectiva histórica com o desenvolvimento da historiografia, ou história da história. (LE GOFF 2003: 11-12) 

Nesse sentido, com as manifestações sociais sendo apresentadas de diferentes formas através dos diversos gêneros didático-ensaísticos, verifica-se que a história não se apresenta totalmente verdadeira pelos escritores, pois cada um a concretiza de forma particular, segundo o seu ponto de vista. Não como separar as manifestações sociais do período em que a obra foi escrita, sem essa ligação a obra enterra-se no abismo da Antiguidade. É preciso, pois, sair da caverna, do mundo obscuro à procura da luz, da claridade do dia, do conhecimento total como estabeleceu Platão em sua obra A República.


TRATADO
DE DIREITO NATURAL COMO MANIFESTAÇÃO SOCIAL 

O Tratado de Direito Natural foi oferecido ao Sr. Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal e inicia-se com uma dedicatória bastante requintada:

Oferecido ao Ilmo e Exmo. Sr. Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima e seu Ministro de Estado, alcaide-mor de Lamego, senhor donatário das vilas de Oeiras, Pombal, Carvalho e Cercosa e dos Reguengos e direitos reais de Oeiras, comendador de Santa Maria da Mata de Lôbos e de

S. Miguel das Três Minas, na Ordem de Cristo etc, por Tomás Antônio Gonzaga, Opositor às cadeiras na Faculdade de Leis, na Universidade de Coimbra. (GONZAGA 1957: 9) 

Gonzaga chama Pombal de o homem que estimulou aos estudos dos Direitos Naturais e Públicos e comenta: “E sendo eu um dos que me quis aproveitar das utilíssimas instruções de V. Ex., fora ingratidão abominável o não lhe retribuir ao menos com os frutos delas” (GONZAGA 1957: 11). Gonzaga suplica para que Pombal aceite o presente livro e eleva Pombal como um homem especial, considerando- se um criado seu: 

Suplico pois a V. Ex.ª se digne de aceitar o presente livro, e quando não seja porque assim o mereça o meu pequeno trabalho e o meu grande desejo, seja ao menos porque nisso interessa a pública utilidade, de quem V. Ex.ª se mostra o mais amante e o mais zeloso. Quem haverá que, depois de ver que V. Ex.ª se agrada do mal sazonado fruto da minha aplicação, se não lance, invejoso da minha fortuna, a compor outros de muito maior merecimento? Eu creio que ainda os inimigos das ciências e os menos ambiciosos de nome se esforçarão, só para mostrarem que pode neles mais o desejo de agradarem a V. Ex.ª do que os estímulos da própria natureza. Eu me alegrarei de ser a causa de uma tão louvável emulação, e sempre pedirei a Deus que conserve a V. Ex.ª dilatados anos, não só porque assim o pede a minha obrigação, mas porque assim também o deseja o afecto com que a razão e o discurso me incita a venerar as pessoas da utilidade de V. Exª

Beija (I) as mãos de V. Exª O seu mais humilde criado
TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA
(GONZAGA 1957:12). 

Trata-se de um livro em que se firmam as disposições do Direito Natural e Civil e uma coleção das doutrinas mais úteis, na concepção de Gonzaga. Escreve este livro por dois motivos: o primeiro porque não havia então na nossa língua um tratado desta matéria. O segundo por ser uma obra que poderia ser lida por principiantes para que não se cometessem erros sobre como agir corretamente na sociedade.

Gonzaga expõe que Deus criou o mundo e precisava de um homem inteligente para poder valorizar a si e a Deus, e ter a glória eterna. Infundiu, então, nos homens as leis pelas quais se devia guiar. Deu-lhes liberdade para conformar ou não com elas as suas ações. Fez de tudo para que o homem se sentisse merecedor da glória eterna ou de um castigo.

A coleção dessas leis infundidas no homem chama-se Direito Natural ou Lei da Natureza. Elas são intimadas em nós pelo discurso e pela razão. Mas o homem perdeu a justiça e a inocência. O remédio seria que, se estimulasse os bons e atemorizasse aos maus, haveria concílio entre todos – união e paz.

Gonzaga procurou expor que a natureza não deu a uns o poder de mandarem nem pôs mais a obrigação de obedecerem. Deus teria dado aos imperantes todo o poder. A coleção das leis é o Direito Civil, que regula a vida da sociedade. Gonzaga expõe que os homens vivem sujeitos às leis de um superior, logo não podem fazer todas as ações que seriam concedidas no estado de Natureza, devendo ensinar como se pode e deve cumprir. O Tratado de Direito Natural é uma obra que trata de todas as instituições sociais, do governo de um Estado e de como se deve agir perante as situações da vida, daquele período.

Para o aluno de Letras, essa qualidade da reflexão acerca das situações da vida e sua crítica ocorre geralmente no romance. Entretanto, no século XVIII, o romance ainda tem uma condição de pouca importância; somente com a filosofia clássica alemã é que se iniciam as primeiras tentativas de criação de uma teoria estética do romance. Na segunda metade do século XIX, o romance confirmará sua ampliação e expressa a consciência burguesa na literatura. Com características estéticas gerais da épica, mas com modificações trazidas pela época burguesa, o romance deixa de ser inferior. O que se percebe é que há a construção de um gênero que se põe entre o caráter poético do mundo antigo e o caráter prosaico da civilização burguesa. Assim, é possível perceber que por meio da obra de arte literária revelam-se as peculiaridades essenciais de uma dada sociedade por meio da representação dos indivíduos, de suas ações e de seus sofrimentos individualizados. A literatura torna-se então uma manifestação das ações sociais. O romance apresentou a vida privada de uma época com toda a clareza, expondo a realidade quotidiana e as grandes contradições motoras do desenvolvimento histórico-social na medida em que se manifesta de maneira concreta na realidade.

A partir disso, reitera-se que o século XVIII foi o período de alteração das bases estabelecidas, um período de transição, um dos séculos mais importantes para a transformação da humanidade. Mas, ao mesmo tempo em que se percebe esta transformação, observa-se nas palavras de Gonzaga o ideal de permanecer fiel a uma só pessoa, ao poder monárquico, o que comprova uma particularidade sua, frente às manifestações sociais que se apresentavam no cotidiano; essa circunstância faz perceber que o tratado tem a qualidade necessária para que se possa ver nele o que se verá depois no romance.

Importa observar que, no século XVIII, os escritores eram políticos, diplomatas, advogados, teólogos, cientistas, médicos, cirurgiões, atores, poetas e escritores, havendo uma heterogeneidade. Os homens uniam-se para trocar opiniões, formar ideologias e criar concepções para a nova sociedade. A partir disso, defende-se a tese de verificar qual era a ideologia de Gonzaga tanto frente às manifestações sociais expostas pela Universidade de Coimbra, quanto às leituras feitas pelos seus estudantes. A obra por ser um tratado não impede de ser lida como um revelador das atitudes realizadas no século XVIII, pela comunidade em geral, logo pode e deve ser considerado um gênero literário, uma vez que expõe através de um texto, ou melhor, de um tratado, que é considerado não ficcional, as idéias de um escritor, sobre um determinado período e sobre as manifestações sociais que esse período estava vivendo. A preocupação é com a leitura do texto, sempre buscando a fonte, o próprio texto, pois a literatura é um registro das práticas individuais e sociais.

 
O CÂNONE LITERÁRIO 

A historiografia literária tende a consolidar modelos de interpretação segundo interesses e critérios estabelecidos pelos críticos e historiadores literários. Toda interpretação que postule algo diverso do cânone, como o de uma minoria étnica, de uma periferia, de uma classe social não-dominante, tende a ser excluída, por ser desclassificada quanto à capacidade de formular conteúdos científicos. Por isso, é interessante considerando o aspecto de relativo pouco interesse sobre essa obra de Gonzaga – perceber como algumas histórias literárias apresentaram a obra Tratado de Direito Natural de Gonzaga.

No cânone literário somente são privilegiados os considerados clássicos, pois a literatura ignora os que não se enquadram em sua época. Verifica-se que a história literária está diretamente ligada a um valor estético e a uma relação das obras com o contexto histórico-social e cultural. A sociedade conservadora ou preservadora estabelece a autenticidade da obra e a mais jovem dificilmente consegue substituí-la, pois o cânone é selecionado a partir de um corpus maior, por críticos que detêm a autoridade da seleção.

As histórias literárias selecionadas foram História da Literatura Portuguesa de Teófilo Braga (1909-1918), História da Literatura Portuguesa de Hernani Cidade (1929), História Literária de Portugal (séculos XII –XX) de Fidelino de Figueiredo (1944) e História da Literatura Portuguesa de Oscar Lopes e Antônio José Saraiva (1955).

Entre as histórias literárias, somente a de Teófilo Braga menciona a obra Tratado de Direito Natural, dando o enfoque de que se tratava de uma obra escrita por Gonzaga enquanto era aluno da Universidade de Coimbra e que nela havia a sustentação das doutrinas do regalismo, que dedicou ao onipotente Ministro, Marquês de Pombal. Porém, a menção é bastante rápida, dando maior importância a obra Marília de Dirceu (1799), obra que ficou considerada o marco central de Gonzaga, assim como também Cartas Chilenas (1783-1788).

Nos demais autores como: Hernani Cidade, Fidelino de Figueiredo, Oscar Lopes e Antônio José Saraiva, Gonzaga é mencionado, mas ressaltando-se somente a obra lírica Marília de Dirceu e a sátira Cartas Chilenas. O escrito feito em Portugal enquanto fora aluno da Universidade de Coimbra não se tornou importante para menção, segundo esses historiadores portugueses.

No Brasil, a apresentação não se fez diferente e é interessante que Gonzaga sempre é mencionado por sua Marília de Dirceu; foram consultadas as seguintes obras: Ensaio sobre a Literatura no Brasil de Domingos José Gonçalves de Magalhães, Bosquejo da história da poesia brasileira de Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1841), Da nacionalidade da Literatura Brasileira de Santiago Nunes Ribeiro (1843), Histoire de la litterature bresiliene de Ferdinand Wolf (1863), Resumo da história literária de Fernandes Pinheiro, (1872), História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero (1888), História da Literatura Brasileira de José Veríssimo (1916), Pequena História da literatura de Ronald de Carvalho (1919), História da Literatura Brasileira de Arthur Motta (1930), Noções de história da Literatura Brasileira de Afrânio Peixoto (1931), História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos de Nelson Werneck Sodré (1938); A Literatura no Brasil de Afrânio Coutinho (1955), História da Literatura Brasileira de  Antônio Soares Amora (1955), Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido (1959), História Concisa da Literatura Brasileira de Alfredo Bosi (1970) e História da Literatura Brasileira de Luciana Stegagno Picchio (1997).

Dentre as obras apresentadas, somente Antonio Soares Amora e Luciana Stegagno Picchio mencionam a obra Tratado de Direito Natural. Da mesma forma que as histórias literárias portuguesas, as brasileiras também se referem principalmente às obras Marília de Dirceu e Cartas Chilenas.

Antônio Soares Amora na obra História da Literatura Brasileira (Séculos XVI XX), menciona rapidamente as obras de Gonzaga, entre elas Tratado de Direito Natural, dizendo que foi publicada pela primeira vez, em São Paulo, em 1942, porém o destaca pelo lirismo. Stegagno- Picchio diz que a obra de Gonzaga acerca do Direito Natural tem “sabor iluminista” com dedicatória a Pombal.

Em qualquer história literária, o que prevalece como obra de destaque de Gonzaga é Marília de Dirceu e raramente é mencionada a obra que será analisada nesta tese. O ideal de Gonzaga registrado no início de sua carreira é deixado de lado, pouco analisado e simplesmente excluído das histórias literárias portuguesas e brasileiras. A produção escrita de Gonzaga que concretizava os momentos críticos das manifestações sociais não ficaram registrados, mas sim uma produção dentro da tradição de literatura como algo imaginado, no caso, Marília de Dirceu.

Sobre Gonzaga, ressalta-se que este foi jurista e poeta. No jurista está o defensor da existência de Deus, da fidelidade absoluta ao rei, da indissolubilidade do casamento, mas também o homem preocupado com direitos superiores a qualquer sistema positivo, o defensor da diferença entre si e privilégio, da utilidade pública, da liberdade do Estado de Direito contra as turbulências dos chefes militares e policiais. No poeta, está o imitador da forma arcádica europeia e uma elaboração da experiência do seu tempo e meio.

Diante dos dois caminhos seguidos por Gonzaga, verifica-se, então, que a obra que persiste no cânone e em todas as historiografias literárias, como foi Marília de Dirceu, é aquela que interessa aos ideais de uma época literária, com características do momento. Fora desse contexto, a obra não tem existência. Se um autor serve às necessidades do sistema, aos critérios estabelecidos, ele é escolhido; senão, não. Toda a interpretação que não está no cânone tende a ser ignorada, excluída. Infelizmente poucos são os deslocamentos para uma revisão do cânone, a não ser as pesquisas que buscam revisitações, como é o caso da linha de pesquisa estabelecida no Programa que estou inserida: Cânones, Idéias e Lugares, que se preocupa com o estudo de problemas de canonização literária, estudo das figurações de espaço e identidades, estudo das práticas comunitárias registradas na literatura, enquanto manifestações estético-sociais. Impossível não pensar que para cada momento histórico um ou mais gêneros foram criados para exprimir as manifestações sociais pelas quais os homens passaram e passam. Por outro lado, é importante salientar que não encontrar os gêneros públicos nos livros de histórias literárias deve-se especialmente ao fato de que as publicações das primeiras histórias literárias começaram no século XIX, desconsiderando geralmente os gêneros ensaístico-argumentativos. Nada obstante, parece- me necessário visitar com detalhe e cuidado o tratado de Gonzaga, como sinalizador também de manifestações sociais da sociedade portuguesa da segunda metade do século XVIII.


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Fonte:
SANDRA APARECIDA PIRES FRANCO: “O IDEÁRIO GONZAGUIANO NA OBRA TRATADO DE DIREITO NATURAL” (Tese apresentada ao curso de Pós- graduação em Letras da Universidade Estadual de Londrina). Londrina, setembro de 2008.


Notas
:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio Público

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