28/05/2016

Inocência, Visconde de Taunay


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A obra Inocência e o nacionalismo: há afinidade entre eles?

O romance romântico fundamentou-se na descrição e na análise das relações humanas na sociedade. Alguns aspectos tomados da realidade, como lugares, personagens-padrão, tipos sociais, convenções, usos e costumes foram princípios norteadores para os escritores os transformarem segundo uma norma, “um ponto de vista, uma posição, uma doutrina (política, artística, moral) mediante a qual o autor opera sobre a realidade, selecionando e agrupando os seus vários aspectos segundo uma diretriz”. (CANDIDO, 1981, p. 111).

O nacionalismo consistiu na cor local enquanto o romance foi além. Preocupou-se com a descrição dos elementos da realidade, estabelecendo uma ligação entre os romances. Para Antônio Candido (1981), as produções mais características dos escritores românticos elaboraram a realidade graças ao ponto de vista, à posição intelectual e afetiva que norteou todo o nosso Romantismo, a saber, o nacionalismo literário.

O nacionalismo romântico propiciou a descrição de costumes, paisagens, fatos que possibilitassem a libertação dos modelos da literatura clássica e universal que imperava desde então, cedendo lugar para o individual, o particular, o característico.

Quanto à matéria, o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes pela descrição dos tipos humanos e formas de vida social nas cidades e campos. O apelo ao espaço foi preponderante, sobrepondo-se até as personagens, a forma de vida e os tipos: “o que se vai formando e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social”. (CANDIDO, 1981, p. 114). Dessa forma, os romances se expandiram para as províncias do norte, do sul, do interior.

Os temas românticos que o nacionalismo exigia privilegiavam o exotismo para o deleite do homem da cidade e se ajustava ao romancista e o homem rústico do interior ou com alguma aproximação com a civilização. O regionalismo serviu para confirmar a autonomia literária, apesar de haver alguns problemas de estilização: “quando se fala na irrealidade ou convencionalismo dos romancistas românticos, é preciso notar que os bons, dentre eles, não foram irreais na descrição da realidade social, mas apenas nas situações narrativas”. (CANDIDO, 1981, p. 116).

Os românticos Bernardo Guimarães, Alencar, Taunay e Távora tinham em comum a região, o lugar de acontecimentos, atos, sentimentos e aspectos humanos que tomaram relevo em suas obras, situado em um quadro natural e social, em que as personagens existiam independentemente das peculiaridades regionais.

A obra Inocência constituía aproximação da autenticidade dos modelos românticos regionais, inserindo personagens, costumes, a natureza, a hospitalidade do sertanejo, observados durante as viagens do autor. As datas que iniciam e finalizam a narrativa, pela fidelidade a esses elementos, reforçam o caráter documental da ficção. Entretanto, a obra não se dá somente dessa forma, há a invenção e a deformação como componentes da elaboração narrativa que transfigura a realidade para a ficção. Comenta Antônio Candido (1981):

O entrecho e o quadro sertanejo serviram para delimitar e informar a sua experiência pessoal, que, ao projetar-se desta maneira na forma artística, pôde satisfazer anseios menos conscientes de expressão afetiva. Aí talvez esteja o segredo deste romance que supera de tão alto as produções e transposições da realidade, entre as quais ele o incluía com orgulho. (CANDIDO, 1981, p. 313).

Seguindo a linha de buscar a originalidade do representante brasileiro para alguns românticos, o indígena já não cumpria essa função. E também não será o negro consagrado numa religiosidade cristã que representará a personagem romântica. A opção é o homem branco, do interior, pois ele se encontrava pouco afetado pelas influências externas, ou seja, pela civilização, e especificamente pelos ideais de inspiração européia. Assim, o sentimento do nacionalismo, tão apregoado no indianismo ainda vigorava e também se constituiria um dos pilares para a formação da temática sertaneja, que, segundo José Maurício Gomes Almeida (1999, p. 38), “são as razões que poderíamos encontrar para o surgimento da temática sertanista, mas todas têm raiz no mesmo sentimento de orgulho nacionalista que inspirava o indianismo”.

O enredo de Inocência, diante desse nacionalismo, não significava muita coisa quanto à representatividade nacionalista, com exceção do primeiro capítulo, que se distingue do resto da obra e podemos considerá-lo à parte do romance, servindo de informação, crendo na possibilidade do desconhecimento do leitor sobre as paisagens e a rotina do viajante pelo sertão.

As descrições contidas seguem a fidelidade da observação de uma região do país, o que representa uma das características românticas. E também configuram o nacionalismo quanto à exposição da natureza. Esta parte diferencia-se do enredo sendo, que no romance, acreditamos não haver o predomínio dos elementos nacionalistas, e sim, a representação das rememorações e lembranças do autor. O nacionalismo também ficou marcado quanto ao pensamento e à atitude do autor. Taunay participou da Guerra do Paraguai, oportunidade marcante para sua carreira política e também literária e que contribuiu para o autor formular um olhar diferenciado do nacionalismo, que, até então, não tinha o mesmo vigor.

A guerra traria uma perspectiva de atrair as atenções para o interior, configurando uma nação que não só contemple os centros urbanos e políticos do país para ir “além ou aquém dos limites litorâneos tradicionais” (MARETTI, 2006, p. 70). Segundo Maria Lídia L. Maretti (2006), nas obras de Taunay, existem argumentos que contrariam a idéia de nação maquiada, ou seja, a unidade nacional tão apregoada fora construída a partir dos poucos conhecimentos que se tinha sobre o tema, pois ninguém da corte as conhecia ou mal conhecia. Essa questão norteará quase todas as produções do escritor e político Taunay do segundo reinado5. Assim, as suas produções fundaram-se nas viagens missionárias, passando a conhecer muito o interior do Brasil, experiência esta que freqüentemente era discutida por alguns escritores românticos.

As grandes cidades litorâneas se modernizavam em grande velocidade; as interioranas estavam em completo abandono, apontando a contradição dessa modernização pela metade. Por outro, para alguns escritores esse abandono contribuiria para a preservação do homem primitivo ou sertanejo, permanecendo inalterado o seu estado original. Contudo, esse estado primitivo gera conflito quando se comparam os costumes modernos e os sertanejos que já tinham algum contato com a civilização. Encontramos esses indícios no romance Inocência: o narrador interfere na narrativa para expor a sua posição quanto ao modo de pensar do sertanejo em relação às mulheres. Ele discorda da forma injuriosa que Pereira, pai de Inocência, refere-se a ela, em que o seu tom discursivo demonstra um pensamento moderno, contrapondo-se ao atraso da civilização no campo.

Relata José Maurício Gomes Almeida (1999) que, na década 1870, momento de transição estética e política, o romantismo dava os primeiros sinais de enfraquecimento, devido às novas tendências filosóficas e estéticas que se impunham no Brasil, disposições estas com o início da implantação de um pensamento moderno. Segundo essa tendência à modernidade, a valorização dos elementos nacionais, a obra Inocência, de Taunay, encaixou-se dentro da concepção da realidade sertaneja, integrando esse ser ao movimento moderno. Apesar da sua obra ainda conter essência romântica, há algumas nuances à observação da realidade tão defendida pelo escritor Franklin Távora. Conforme Antônio Candido (2006), desde o início a ficção brasileira teve inclinação pelo documentário, e durante o século XIX foi promovendo uma espécie de grande exploração da vida na cidade e no campo, em todas as áreas, em todas as classes revelando o país aos seus habitantes, como se a intenção fosse elaborar o seu retrato completo e significativo. Por isso ainda permanece viva a realidade que apresenta seja no romance do tempo do Romantismo. (CANDIDO, 2006, p. 208).

Podemos dividir a obra Inocência, de Taunay, em duas partes distintas entre as quais, aparentemente, não concebemos nenhum vínculo. A primeira parte constitui-se do capítulo inicial e retrata o sertanejo e o ambiente a partir de um descritivismo que atende à concepção nacionalista romântica em que homem e natureza estão em harmonia e traça aspectos que correspondem ao exotismo, ao telúrico, apresentando, dessa forma, o que há de primitivo e simbólico no país, conforme o comentário de Olga Maria Castrillon Mendes (2005):

A sensação que se tem é a de que, ladeada pelo homem sertanejo, a natureza compõe o quadro que é, ao mesmo tempo, moldura e conteúdo, pois ambos participam de um conjunto harmônico onde um não se sobrepõe ao outro, mas compõem a cena e traçam os pictogramas resultantes do exercício do olhar. Natureza e homem simbioticamente unidos parecem construir o sentido que se pretende simbolizar. (MENDES, 2005, p. 1).

Além disso, podemos depreender que esse capítulo serve de introdução a um mundo desconhecido ou pouco conhecido para a maioria dos habitantes da província e se presta a informar o público leitor desse universo, aproximá-lo e esclarecer-lhe o que existia realmente no interior do país, expectativa essa escrita por Taunay, quando se preparava para viajar com a expedição:

Ao chegar na cidade de Santos, Taunay cria expectativas quanto o que vai encontrar no interior do país, entusiasmado pelas cidades e pessoas que vai conhecer que segundo ele”percorrer grandes extensões e varar até sertões imperfeitamente conhecidos e mal explorados. (TAUNAY, 2005, p. 146).

E a segunda parte representa o enredo propriamente, a história do amor impossível entre os amantes. Entendemos que as duas partes distintas se complementam não prejudicando andamento da história, sem prejuízos para o desenvolvimento da mesma.

A fidelidade à realidade observável em Inocência se apresenta nitidamente no primeiro capítulo, Sertão e o Sertanejo, em que descreve a natureza do sertão, sob o olhar do narrador viajante, e a relação do homem viajante com esse lugar, no intuito de familiarizar o leitor com o meio natural, descrevendo-o em detalhes que julga necessário para que o leitor faça parte dessa viagem e compartilhe com ele essa experiência do desconhecido.

José Maurício Gomes Almeida (1999) explica que esse capítulo do romance introduz uma visão turística na possibilidade de apresentar ao leitor um lugar supostamente desconhecido e poucas vezes fazendo parte do senso comum, uma fotografia verbal de um lugar longínquo, em que a natureza predomina diante do homem, freqüentada por viajantes, acostumado ao ambiente, de acesso difícil para o leitor comum.

A análise documental defendida pelos contemporâneos de Taunay resume-se, segundo alguns críticos literários, a este capítulo, dada a valorização e a descrição da natureza, informando e situando o leitor sobre esse sertão desconhecido, não encontrável em outras obras, o que faz de Taunay e Inocência singulares à época.

A guerra do Paraguai trouxe outra conseqüência para literatura nacional: iniciou a desconstrução do nacionalismo romântico no que se refere à natureza e ao índio brasileiro. Cria-se outro nacionalismo, uma coesão entre os indivíduos a partir da guerra e da crise que se instaurava, depreendendo e despertando um sentimento comum entre as populações das províncias. Há um vínculo crescente entre os indivíduos, uma luta em comum para constituir unidade entre eles em que a pátria estaria seriamente ameaçada pela instabilidade política, social e também filosófica.

Por volta de 1860, novas tendências filosóficas e estéticas promoveram e reforçaram a recusa ao idealismo romântico, origem de grandes debates de escritores, como Franklin Távora contra Alencar, que apregoavam novos conceitos que foram absorvidos e serviram de bandeira por Távora. A observação da realidade, a grande bandeira dessa tendência, desmorona a visão anterior do herói mítico-simbólico explorado por Alencar. Toda essa busca cria resistência aos escassos anseios do nacionalismo consolidado, empregando meios de substituição do elemento indígena. Contudo, não se poderia dizer a mesma coisa de Taunay, pois, à sua maneira, a nacionalidade seria a partir da política e pelo orgulho de se comprometer com a pátria. O autor era mais ativo, quando da sua participação na guerra, não explorada em Inocência.

O sertanejo trazia vantagens que o afirmavam como elemento principal atendendo os anseios dos escritores: é um mestiço tipicamente oriundo das terras brasileiras, resultando da união do branco e do índio. Assim, poderia ser valorizado por não ter nenhuma relação direta com o negro, que, sob a visão da sociedade, não serviria para ser o símbolo nacional.

Outra concepção que dignifica o sertanejo é pertencer a regiões remotas, quase não havendo nenhuma aproximação com as cidades litorâneas e, por isso, a sua cultura seria mais legítima, no sentido de preservar ainda “costumes, hábitos, tradição e a linguagem a natureza no seu estado original, típico do luar”. (ALMEIDA, 1999, p. 39).

Uma parte importante que compõe o sertanismo destaca-se pela caracterização do ambiente. O sertão insere o homem, a paisagem que constitui aspecto relevante coligado com a linguagem que colabora para unificá-los e serem constituintes de uma obra sertaneja:

é no âmago da terra que se conservam as grandes tradições morais, sociais e lingüísticos, e que se elaboram as inovações necessárias, nascidas menos do capricho da moda como nos autores cosmopolitas ou civilizados do que uma exigência da própria vida. (TELES, Gilberto Mendonça; LIMA, Alceu Amoroso, 1980, p. 515).

Assim, o sertanismo é uma das correntes mais preciosas pela representação de um povo rústico por inserir o meio e sua ligação com a vida universal.

Essa conservação da cultura sertaneja pouco foi modificada pela própria distância geográfica entre os lugares, bastante acidentada, propícia para o seu isolamento, e a própria comunicação era feita, quando possível, através de viajantes que levavam consigo as correspondências, promovendo, assim, uma comunicação rara, lenta com a civilização.

Em Inocência, essa aproximação já se torna evidente, pois Pereira sabia dos acontecimentos na corte, tinha acesso a informações pela proximidade com a vila, apesar de pequena, havia movimentação de pessoas e viajantes.

Nos romances sertanejos há o destaque da oposição entre campo e cidade, natureza e cultura, o que também se verifica em Inocência. Nesta obra, o campo representa um lugar intocável, mantêm-se inalterados os costumes, o patriarcalismo, a palavra jurada, a honra familiar, a submissão da filha ao pai. A cidade, que podemos representá-la pela presença de Cirino e Meyer, forasteiros que trazem a civilização e também a modernidade a lugares quase ermos, cria conflitos na medida em que há alteração na casa de Pereira quanto aos seus preceitos, que, inicialmente, encontravam-se inabaláveis.

Todavia, quando interferem, opinando sobre a posição da mulher naquele mundo arcaico, algo dever ser feito para que não se modifiquem os padrões já instituídos, tentando-se reparar aquilo que poderia ser mudado. Cirino, ao penetrar no quarto de Inocência sem a presença do pai, invade um lugar sagrado e intransponível para estranhos; os elogios incessantes de Meyer à moça marcam diretamente o posicionamento de ambos e convergem para o confronto da mentalidade do campo e da cidade.

Vimos, anteriormente, que Cirino é pessoa estudada e também saiu da região onde foi criado, percorrendo algumas localidades e estabelecendo-se no sertão, à procura do seu sustento com curas. O campo simboliza a possibilidade de riqueza e também o seu fim, pois é nesse lugar que encontra a morte, a degradação e a transformação. O sertão é um lugar estranho, forte, estático, implacável, majestoso, de adversidades marcantes e perigoso para quem o desconhece. Isso é sabido também por Taunay, que descreve: “em geral violências e assassinatos nas estradas se davam por dívidas de jogo e questões de mulheres. Aí sim, com facilidade e depressa ‘nasciam as cruzes à beira do caminho’, conforme o prolóquio popular”. (TAUNAY, 2005, p. 349).

O sertão torna-se seu lugar eterno, pois é palco da morte que o abrigará eternamente. Interessante notar que este espaço ermo será o lugar de sobrevivência, de alegria e morte da personagem.

A natureza, o sertão, o homem do interior e seus modos, são componentes que encontramos em Inocência, servindo de rememoração das impressões de Taunay, que viu e conviveu de perto com a realidade rústica, preocupado em não deixar de escrever nenhum detalhe que lhe serviu de modelo. Dessa forma, consideramos que não há a preocupação do autor em destacar elementos de caráter nacionalista ou fundar um nacionalismo literário, mas, sim, conforme Antônio Candido (1981) explicita, duas palavras poderiam sintetizar-lhe a obra: impressão e lembrança, pois o que há nela de melhor é fruto das impressões de mocidade, e da lembrança em que as conservou. Uso tais palavras intencionalmente, em vez por exemplo, de memória e emoção, para assinalar o cunho pouco profundo da criação literária de Taunay. A sua recordação não vai àqueles poços de introspecção, donde sai refeita em nível simbólico; nem equivalem as suas impressões ao discernimento agudo, que descobre novas regiões da sensibilidade. São dois traços modestos, que delimitam um gráfico plano e linear. (CANDIDO, 1981, p. 308-309).

Viajante e partícipe da guerra, para ele o sertão é aquilo que é bruto, forte invencível diante do homem, o qual deve subjugar e submeter à natureza. O sertão é o lugar quase inabitável em que hábitos e culturas antigos, em que a morte, a violência do sertanejo fazem parte dessa realidade rústica; em defesa da honra e da palavra dada, é empregada a violência como forma de limpar a honra familiar e masculina.

Parece-nos que, indiferentemente de alguns preceitos românticos ainda prevalecerem, Taunay em nenhum momento considera a sua obra uma representação do nacionalismo ufanista ou sertanejo. A obra representa recordações de acontecimentos presenciados no sertão do Mato Grosso que o marcaram bastante, apresentando ficcionalmente as pessoas, a natureza, os costumes desse povo do interior, conforme as suas palavras: “Aliás, nesse sertão, próximo já de vila de Sant’Ana do Paranaíba, colhi os tipos mais salientes daquele livro, escrito uns bons cinco anos depois de lá ter transitado”. (TAUNAY, 2005, p. 363).

As estratégias que o autor utiliza para reinventar a realidade, transportando sua visão de mundo ao leitor e fazendo dela uma ilusão, reportam-se à realidade. Beth Brait (1987) destaca na poética de Aristóteles o trabalho de seleção efetuado pelo poeta diante da realidade e os modos que encontra para entrelaçar possibilidade, verossimilhança e necessidade. Não cabe à narrativa poética reproduzir o que existe, mas compor suas possibilidades. Parece razoável estender essas concepções ao conceito de personagem: ente composto pelo autor a partir de uma seleção do que a realidade lhe oferece cuja natureza e unidade só podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para criação.

Os elementos inseridos na narrativa a partir da realidade revelam uma perspectiva nova, o desconhecido que não interfere na continuidade do enredo, dando-lhe uma feição singular que o distingue das demais obras, pois “a introdução na obra literária de um material extraliterário, isto é, de temas que tem uma significação real fora do desenho artístico, é facilmente compreendida sob o ângulo da motivação realista de construção da obra”. (TOMACHEVSKI, 1978, p. 189).

O procedimento de integrar ao romance elementos exteriores à obra deve justificar-se pela sua contribuição, dando-lhe um caráter particular, evitando que a interferência prejudique os demais constituintes da obra. Segundo Benedito Nunes (2000, p. 74), a “ficção combina o imaginário como distanciamento do real imediato, com o poético que altera, modifica, reorganiza, sob nova perspectiva as representações da realidade. O nível ficcional do texto, fundado na elaboração poética da linguagem corresponde a uma variação possível do mundo real. Em vez de demitir o mundo, a ficção o reconfigura”.

Interessante uma passagem sobre a mímesis, em que é retomada a teoria de Freud sobre a identificação desconsiderando a relação do eu com o objeto copiado pela vontade ou possibilidade de transferir para a mesma situação em que se encontra o copiado. A semelhança do copiado e do modelo se dá pela interpretação e não pela coincidência visível. Mesmo porque essa coincidência não tem importância pois “não é seu caráter de cópia o traço substantivo, mas sim o processo de transformação que se opera”. (LIMA, 1984, p. 64).

Quando Taunay (2005), em suas Memórias, faz questão de retomar alguns trechos que serviram como fonte para sua obra prima, percebemos a sua preocupação em não deixar no esquecimento acontecimentos que o marcaram durante a sua viagem e informar aqueles que não puderam estar lá Taunay foi soldado militar do exército brasileiro, o que lhe deu oportunidade de observar os lugares, pessoas, costumes, e a guerra, que lhe serviu de inspiração para escrever. A sua participação constante, direta ou indiretamente, nas campanhas militares contribuíram para iniciá-lo nas escritas, obtendo muitos assuntos para escrever.

Comenta Maria Lídia L. Maretti (2006) que os seus escritos apresentam técnicas aprimoradas de descrição, tanto reproduzido a partir do seu dia-a-dia como de suas lembranças.

Ele discordava de Alencar quanto à idealização do sertanejo, que não cabia mais naquele momento, conforme ele mesmo escreve:

Fatal por muitos motivos foi às lettras brasileiras o prematuro desapparecimento de José de Alencar, apezar de alguns defeitos que tinha como escriptor, sua teimosia, o aferrado apego às formulas convencionaes, o subjectivismo contínuo de todas as suas observações e a falta sensível de exacta contemplação da natureza especial, em cujos seio se achava.

Basta dizer que transportou os pampas, vastíssimas planícies cisandinas, para a princia do Rio Grande do Sul, quando lá todo o terreno é profundamente dobrado — coxilhas, que se succedem umas às outras, cortadas, nos encontros, de arroyos e sangas. Basta lembrar todo os seus índios a fallarem a linguagem gongorica e poética que Chateaubriand, na sua por vezes intolerável idealisação, pôz na boca dos Natchez, fazendo Chactas, Utugamiz eméritos, disfarçados em selvagens do Meschacebé. (TAUNAY, [1933?], p. 54-55, grifos do autor).

Pelas viagens que contribuíram para escrever Inocência, não há inicialmente preocupação sobre o sertanismo, como Alencar, Franklin Távora e Bernardo Guimarães. Tenta-se encaixá-lo pelas manifestações romântica ou naturalista que a obra possa conter, discussão em que não adentraremos. Taunay figura mais a preocupação em descrever particularizando a natureza, o sertanejo, através da observação da realidade que tenta retratar no romance.

Inocência se destaca pelas peculiaridades. As epígrafes utilizadas na introdução dos capítulos do romance representam a presença do autor com cuja narrativa estabelece um diálogo e cria um novo efeito estético: indica as possíveis leituras do autor, sempre se remetendo à literatura clássica européia e incorporando a construção das personagens e das situações retratadas.

Além disso, as palavras grifadas, as notas de rodapé, as expressões próprias do linguajar da região situam o leitor ao momento presente da narrativa e o leva a esse mundo pouco conhecido, para estreitar as distâncias dos dois mundos diferentes, além de informar o público citadino sobre o lugar, as pessoas, os costumes desconhecido do mesmo e manter o leitor cativo a essa leitura.

A presença de notas do próprio autor referentes a alguns termos usados nas falas das personagens supõe que a linguagem do homem do sertão possa ser desconhecida ao leitor urbano e expressa a preocupação do autor em tornar acessível o entendimento dos diálogos para estes leitores.

A ironia do narrador na obra representa a crítica às personagens e situações que as envolvem. Ele intervém em alguns trechos, tornando-se uma figura quase ausente, diferenciando-se de outros romances, como os de Alencar, conforme comentário de José Maurício Gomes Almeida (1999), cujos narradores intervêm na narrativa freqüentemente para dar explicações sobre “ação das personagens, características psicológicas das mesmas, para sustentar a verossimilhança, fazer comentários” (ALMEIDA, 1999, p. 118), técnicas utilizadas nos romances europeus e importadas pelos escritores românticos.

Um estudo de Frederick Garcia (1970, apud MARETTI, 2006) sobre as diversas traduções de Inocência provoca comentários de alguns críticos sobre a mesma obra, um dos livros portugueses mais traduzidos depois dos Lusíadas. Segundo Frederick Garcia (1970, apud MARETTI, 2006), todo esse trabalho de tradução tinha o intuito de divulgar o Brasil. Isso nos lembra um dos preceitos românticos de apresentar elementos oriundos do país e, dessa forma, descobrir a originalidade, o primitivo da nação, demonstrando a preocupação ainda em apresentar os elementos espaciais, além do homem sertanejo, realmente digno do país, facilitando a conquista da consagração e sucesso internacional do romance Inocência.

A partir daí surge uma concepção contrária ao nacionalismo romântico tão apregoado durante o período de tranqüilidade, às vezes perturbada por disputas partidárias de pequenas proporções pela guerra da Prata. Essa paz aparente foi estremecida pela guerra do Paraguai por volta de 1865 a 1870, e a temática nacionalista retorna revolvendo a responsabilidade dos povos em constituir uma nação coletivamente, pois estes se encontravam em províncias isoladas e distantes entre si, ignorando-se uns aos outros, comportamento mudado pelo sentimento comum que despertara o patriotismo causado pela guerra.

Esse novo acontecimento propiciou um intercâmbio entre as províncias, a união dos povos para lutar contra o inimigo comum que ameaçava a soberania nacional: o Paraguai. A população se armava com espadas e discursos inflamantes. Segundo José Veríssimo (1981, p. 220), o “amor, a morte, o desgosto da vida, os queixumes melancólicos remanescentes do romantismo cederam lugar a novos motivos de inspiração”.

Surgem novos acontecimentos que contribuíram para a discussão da posição adotada pelos críticos até então em relação ao nacionalismo romântico. A partir desse momento não caberia mais seguir com esses pressupostos românticos. Defendia-se um novo patamar para o nacionalismo, não o rejeitando, mas era legítimo e necessário. José Veríssimo (1954) faz a seguinte avaliação:

Iniciava-se, porém, a reação ao romantismo, sob o seu aspecto de nacionalismo exclusivista. Após largos anos de paz, de tranqüilidade interna, de remansosa vida pacata sob um regime liberal e bonachão, apenas abalada por mesquinhas brigas partidárias que não lograram perturbá-la, rebentou a guerra do Paraguai, que durante os últimos cinco anos do decênio de 60 devia alvoroçar o país. Pela primeira vez depois da Independência [...] sentiu o povo brasileiro praticamente a responsabilidade que aos seus membros impõem estas coletividades chamadas nações. Ele, que então vivia segregado nas suas províncias, ignorando-se mutuamente, encontra-se agora fora das estreitas preocupações bairristas do campanário, num campo propício para estreitar a confraternidade de um povo, o campo de batalha. De província a província trocam-se idéias e sentimentos; prolongam-se após a guerra as relações de acampamento. Houve enfim uma vasta comunicação interprovincial do Norte para o Sul, um intercâmbio nacional de emoções, cujos efeitos se fariam sentir na mentalidade nacional. (VERÍSSIMO, 1954, apud MARETTI, 2006, p. 262-264).

Assim, acreditamos que delegar à obra Inocência a missão de exteriorizar as peculiaridades que expressassem o espírito nacional, não competiria para tal tarefa. Na obra, o amor romântico é narrado no interior do país, especificamente no Brasil Central, relacionando a descrição minuciosa da natureza, hábitos, costumes e do cenário, elementos que proporcionam um lugar distinto dos demais romances sertanistas. O autor transformou toda a sua experiência de viajante e a deslocou para a narrativa, trazendo aspectos desconhecidos em outras obras: a descrição do ambiente, a fala do sertanejo, o seu modo de pensar e agir, que não constitui símbolo de orgulho ufanista tão valorizado pelos românticos.

A tendência sertanista manifestou através das descrições do homem do interior, estudar seus usos, costumes, vida social, ambiente natural, de onde imprimia uma vida singular, existencial. Taunay viu esta realidade de perto: o sertanejo e sertão bruto. Essa aproximação a outra realidade pouco conhecida de Inocência revelou um Brasil com sua natureza e tipos humanos ainda não explorados. Além disso, o romance segue a tendência romântica de protótipos românticos consagrados, jovens dominados pela paixão pais despóticos no exercício do pátrio poder, noivo violento, modelos sugestivos que Taunay tomou para o seu romance.

Assim, acreditamos que o seu romance representa mais do que simbolizar uma heroína romântica ou manifestar ideais nacionalistas, era traduzir um sertão visto por ele, impregnado de recordações dos lugares visitados, dos habitantes do interior, impressões que o marcaram dessa realidade pitoresca e distante no interior do sertão central.

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Fonte:
LUCIENE CARMO NONATO OLIVEIRA: "Tradição, nacionalismo, angústia: um estudo sobre a obra Inocência, de Visconde de Taunay". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras — Curso de Mestrado em Teoria Literária do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia para a obtenção do título de Mestre em Letras. Linha de pesquisa: Perspectivas Teóricas e Historiográficas no Estudo de Literatura. Orientador: Prof. Dr. Ivan Marcos Ribeiro). Uberlândia, 2009.


Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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