30/01/2016

Sermão de Quarta-feira de Cinza, de Padre Antônio Vieira


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O ritual Missa no século XVII: o palco vieirense

No fim da tarde, o sol se esconde, o horizonte amarelado reverbera modestamente os raios de luz nas águas espelhadas e nas janelas da casa sagrada de Santo Antonio, enquanto as ilustres famílias da fidalguia ludovicense dirigem-se com seus trajes dominicais, trajes especiais, trajes usados como indumentária sagrada, como um manto que permite a entrada nos portais da santa Igreja de Santo Antonio.

Às suas cabeças o céu, paraíso, morada divina, de onde a iluminação sagrada emana, a abóbada do santo templo abria os portais para visões angelicais, que ao olho nu os simples fiéis não podem olhar. Mais à frente o santo padre, de costas para os fiéis, com longas roupas brancas, com um grande cachecol, que varia segundo o calendário litúrgico, podendo ser verde, roxo, branco e vermelho. As cores são classificações do sagrado: o vermelho o sangue de Cristo e o corpus Christie; o roxo, a morte e a quaresma; o verde, o nascimento do Senhor e a esperança por uma nova vida; o branco, a paz e a limpidez da luz divina.

Em uma espécie de cabina estariam os fiéis a se arrependerem, a confessarem suas impurezas, a se libertarem destas para que possam comungar do corpo santo do Senhor. Cercados por símbolos da perfeição do solo sagrado de Santo Antonio, o santo padre do púlpito emitia palavras mágicas, muitas delas em Latim, a língua dos anjos, a língua do Espírito Santo. E em nome do Pai, do Filho e Espírito Santo se inicia, evangelho, rito penitencial, ofertório, comunhão e bênção final: em nome do Pai, Filho e Espírito Santo...

Assim mergulhamos em um imaginário possível de um ritual ocidental cristão chamado missa, que por sua vez possui todo um emaranhado de simbolismos, relações sagrado-profano, hierarquias, proibições, prescrições e momentos de purificação da alma. Estamos diante de um universo cosmológico ritualizado. Segundo Durkheim (1996), este universo cosmológico seria a crença religiosa, e a ação prática seria o rito religioso.

Na análise acima, fiz uso de símbolos do imaginário cristão católico, com o intuito de proporcionar ao leitor uma maior visualização dos conceitos sociológicos que estamos utilizando. Dessa maneira, o ritual religioso da missa estava prescrito na consciência coletiva dos fiéis, pois estes adquiriram na sociedade cristã portuguesa cosmovisões referentes à crença religiosa.

Toda a descrição acima revela uma possível trajetória de atos humanos racionalizados em função de uma crença religiosa, que, por sua vez, leva os fiéis a dirigirem-se em “tardes dominicais ao santo templo sagrado de Santo Antonio com seus trajes especiais”. Percebamos que o ritual religioso da missa, mesmo sem estar materializado em seu calor da hora, em sua ação ritualística, prescreve atos anteriores, como: vestir-se adequadamente e ir ao templo em horário estabelecido. Assim Durkheim (1996) define:

Ora as maneiras de agir que a sociedade tem o maior interesse em impor a seus membros estão marcadas, por isso mesmo, com o sinal distintivo que provoca o respeito. Como elas são elaboradas em comum, a vivacidade com que são pensadas por cada espírito particular repercute em todos os outros e reciprocamente. As representações que as exprimem em cada um de nós têm, portanto, uma intensidade que os estados de consciência puramente privados não poderiam atingir, pois elas têm a força das inumeráveis representações individuais que serviram para formar cada uma delas. (1996, p.213)

Os trajes especiais dos fiéis representam que estão penetrando em um momento social também especial, ou seja: em um ritual sagrado. Com isso, não podem entrar em contato com este universo sagrado sem que obedeçam às prescrições básicas. É a partir desta discussão sobre prescrições que podemos iniciar a discussão sobre as atitudes rituais negativas e as atitudes rituais positivas (Durkheim, 1996).

Conforme Durkheim (1996), existem duas formas fundamentais dos rituais religiosos, que apesar de interligadas, possuem naturezas simbólicas diferentes: o culto negativo e o culto positivo. O culto negativo refere-se ao universo dos tabus, às proibições e restrições que se deve seguir para impedir que as barreiras entre o sagrado e o profano sejam violadas. Com isso, os cultos negativos têm como intuito impor prescrições e proibições, que, se seguidas, tornar-se-ão as portas para o contato com o sagrado.

No caso da missa, podemos distinguir alguns elementos rituais que se referem ao culto negativo. Na descrição acima, o ato de se confessar nas “pequenas cabinas”, o vestir roupas adequadas, em certos casos até mesmo especiais (casamentos, primeira comunhão, crisma, batismo etc.), estão no universo das atitudes negativas, pois todos estes exemplos referem-se a proibições que irão dar acesso ao sagrado. Mas como falar em proibições que dão acesso ao sagrado? Observe que, para um fiel entrar no templo sagrado da missa, não poderá ir de roupas inadequadas (do mundo profano) e, caso não tenha se arrependido dos pecados e os confessado ao padre, não poderá participar da comunhão.

Além disso, as práticas sacramentais também podem ser vistas como prescrições negativas, pois o fiel só poderá ter acesso a determinados eventos do ritual caso tenha sido ungido por seus respectivos sacramentos. Como exemplo podemos citar a seguinte ordem ritual-sacramental: para ter acesso à primeira comunhão, o fiel terá que ter sido batizado e, por sua vez, para cada comunhão terá que confessar os pecados ao padre; caso não tenha recebido o sacramento da Crisma, não poderá sacramentar o casamento, e caso não case frente ao sagrado, o casal não poderá comungar na missa, até que regularize a situação frente ao sagrado, casando-se no matrimônio sagrado.

Por outro lado, o ritual positivo seria baseado na participação comunal em determinados atos sagrados; esta atitude, se ligaria com a comunhão e o sacrifício. Partindo desse pressuposto, Durkheim (1996) afirma que o culto negativo – seguir as prescrições - tem como função abrir as portas para o contato com o culto positivo – comunhão de fiéis. No parágrafo anterior falei sobre rituais sacramentais como cultos negativos, pois prescrevem proibições, mas que possibilitam a entrada na comunhão cristã - o banquete da eucaristia.

Fazendo uma síntese, descrevi analiticamente nuances do mundo sagrado de uma missa, assim abordando os cultos positivos e negativos, no intuito de revelar ao leitor o ambiente simbólico-sagrado de uma missa. Desse modo, a missa, no contexto do século XVII em São Luís do Maranhão, além de ser um ritual sagrado, era o principal evento social, que servia, inclusive, como espaço de debate e de discussão sobre a realidade local.

O ritual acima descrito era o local onde as hierarquias sagrada e social se materializavam: no púlpito, o padre teria um poder moral de aconselhar, acusar e condenar; do outro lado os fiéis deveriam seguir as prescrições religiosas e as palavras sagradas do santo padre. A hierarquia divina encontrava-se estampada no templo religioso, onde a sagrada família ornava o púlpito, ao centro o corpo de Cristo (sacrário), acima o Cristo sacrificado (crucificado), mais abaixo São José, Maria e o menino Jesus (a sagrada família), na abóbada as luzes e a pomba do Espírito Santo. Dessa maneira, a hierarquia sagrada apresenta-se harmonicamente estabelecida aos olhos dos fiéis: a perfeição divina materializava-se no templo.

Seguir os preceitos religiosos interpretados pelo padre e estampados na arquitetura dos templos, não seria apenas atos de admiração ou simples obediência àquele representante e à beleza do templo, assim Durkheim (1996) define:

Quando obedecemos a uma pessoa em razão da autoridade moral que lhe reconhecemos, seguimos seus conselhos não porque nos pareçam sensatos, mas porque é imanente a idéia que fazemos dessa pessoa uma energia psíquica de um certo tipo, que dobra nossa vontade e a inclina no sentido indicado. O respeito é a emoção que experimentamos quando sentimos essa pressão interior e inteiramente espiritual produzir-se em nós. O que nos determina, então, não são as vantagens ou os inconvenientes da atitude que nos é prescrita ou recomendada, mas a maneira pela qual nos representamos aquele que nos recomenda ou prescreve tal atitude. (1996, p.212)

Os sermões de padre Vieira representam um momento específico do ritual religioso da missa: a homilia. O padre encontra-se imbuído da autoridade moral e religiosa, e o sermão materializa-se como as manifestações do sagrado por meio de palavras, em si divinas. O respeito, discutido acima, estava presente tanto no ritual, como na figura do sacerdote; no entanto, não era um simples respeito individual, mas uma pressão psicossocial, de caráter representacional (Durkheim, 1996). As crenças religiosas ganham ação no ritual e reproduzem nos fiéis sentimentos e emoções que restringem certas atitudes (respeito) e pensamentos.

Podemos adentrar na discussão sobre os dois mundos que eram delineados nos Sermões de Vieira sobre o Maranhão. Sem muito esforço, o leitor de Vieira percebe que o barroco vieirense constrói duas imagens possíveis do Maranhão: uma, parafraseando Bakthin (1999), baseada no riso sarcástico, outra na seriedade civilizacional. Na próxima sessão adentrarei nas reflexões sobre processos de inversão social e transmutação sagrado-profano.


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Fonte:

Cosme Oliveira Moura Junior (Faculdades Pitágoras – MA e-mail: cosmepolita@hotmail.com):  “A luta entre a seriedade e a risada em Padre Vieira: história, mitologias e crença religiosa”. Revista “Outros Tempos” - Volume 5, número 6, dezembro de 2008 - Dossiê Religião e Religiosidade. Disponível em: www.outrostempos.uema.br

Nota:
A imagem inicial inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.

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