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O diálogo camiliano com o Realismo
francês e português
Como mencionamos
anteriormente, entre os séculos XVIII e XIX, muitos acreditavam que seria possível
estabelecer padrões morais que não estivessem vinculados à religiosidade. Na
literatura, essa convicção intensificou-se com o advento da estética realista-naturalista.
Para que possamos entender com maior precisão os conceitos desse movimento, é necessário
retornar às suas bases fundadoras. Como se sabe, “a escola realista, que tem
seu período literário claramente localizado na segunda metade do século XIX,
teve como centro irradiador a cultura francesa” (Cf. MARTINS, 1997, p.21). Com o
intuito de resgatar as concepções desse movimento literário, Cândido Martins,
no ensaio intitulado “Afirmação da estética realista-naturalista e a recepção
crítico-parodística de Camilo” - por meio de romancistas franceses, tais como Stendhal,
Flaubert e Zola- esquematiza as tendências que o nortearam, a saber: restrição do
fantástico, neutralidade do ponto de vista, personagens verídicas, paisagens
reais e fascínio pelo detalhe descritivo, época contemporânea, linguagem
cotidiana, análise experimental. Então, assim como Cândido, recorreremos a obras
de Zola, a fim de entender como os conceitos citados anteriormente foram
empregados na literatura do período. As obras "Senso do real" e Romance
experimental parecem-nos instrumentos propícios para concretizarmos essa
tarefa. No primeiro deles, o autor de Rougon-Macquart (Cf, 1995, p.23) afirma
que todo o romancista que está inserido em um determinado momento histórico e
literário tem uma característica mestra. Sabe-se que, na estética romântica, tal
característica diz respeito à imaginação; no entanto, com o surgimento da literatura
realista-naturalista, os textos que não apresentam necessariamente compromisso
com a realidade perdem a prioridade. Portanto, espera-se que o escritor dê vida
a personagens reais num meio real, oferecendo ao leitor um fragmento da
existência humana:
[...] Insisto nesse declínio
da imaginação porque vejo nisso a própria característica do romance moderno.
Enquanto o romance foi uma recreação do espírito, um divertimento ao qual não se
pedia senão graça e verve, compreende-se que a grande qualidade era antes de
tudo mostrar nele uma invenção abundante (...) Com o romance naturalista, o
romance de observação e de análise, as condições mudam imediatamente (...) o
grande negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos
leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível. Todos os esforços
do escritor tendem a ocultar o imaginário sob o real" (ZOLA, 1995, p.24)
Percebe-se que, para Zola, o
processo de criação de uma obra literária deve basear-se na representação da natureza.
Todavia, a definição desse termo não se restringe ao meio físico, visto que seu
significado torna-se mais amplo na medida em que é empregado para determinar o
meio social. Daí que o recinto familiar, profissional e os demais espaços por
onde os personagens circulam e as pessoas com quem convivem são fundamentais
para a construção do romance. Com efeito, se um romancista naturalista pretende
escrever acerca do mundo do teatro, precisa, em primeiro lugar, reunir todas as
informações a respeito desse tema. Posteriormente, far-se-á necessário visitar e
observar detalhadamente o círculo social e os indivíduos que deseja retratar.
Em suma, ao final do processo, ele estará envolvido pelo ambiente e, consequentemente,
o romance se estabelecerá por si mesmo. Embora não empregue a imaginação na
criação da narrativa, o escritor realista-naturalista não é um ser passivo no
processo de produção literária. De acordo com o autor de Germinal (Cf. 1982,
p.34), cabe ao romancista estimular mudanças por meio de sua observação. De um
modo geral, “o escritor de ficção apresenta-se como o pintor ou fotógrafo, o
cronista ou secretário da sociedade, da qual pretende traçar um inventário,
estudando e retratando a sociedade e o homem contemporâneos em grandes cenas ou
painéis” (MARTINS, 2003,p.19).
Desse modo, no método
experimental desenvolvido pelo Realismo de escola, o romancista
observador-experimentador dirige os seres ficcionais, vinculando-os à natureza.
Consequentemente, a descrição do meio torna-se peça fundamental nesse processo,
na medida em que determina e submete a personagem:
[...] Isso significa dizer que
já não descrevemos por descrever, por um capricho e um prazer de retóricos.
Achamos que o homem não pode ser separado de seu meio, que ele é completado por
sua roupa, por sua casa, por sua cidade, por sua província; e, dessa forma, não
notaremos um único fenômeno de seu cérebro ou de seu coração sem procurar as causas
ou a consequência no meio. Daí o que se chama nossas eternas descrições "(...)
Num romance, num estudo humano, censuro absolutamente toda descrição que não é um
estado do meio que determina e completa o homem." (ZOLA, 1995, p. 43).
Em suma, a literatura que
prioriza a descrição como simples representação do estado de alma concede lugar
à outra que emprega a descrição como meio de determinação social. Essa nova proposta,
no entanto, nos leva a formular algumas indagações: por que associar literatura
à ciência? Qual a vantagem de seguir um caminho nunca antes trilhado na história
das estéticas literárias? A resposta para tal questão encontra-se no ânimo dos
eufóricos e esperançosos que viam na ciência experimental um instrumento eficaz
para reconstruir uma sociedade livre de problemas, gerados supostamente pela
imoralidade. Nas palavras de Zola (1982, p.48):
[...] Somos, em uma palavra,
moralistas experimentadores, mostrando, pela experiência, de que modo uma
paixão se comporta num meio social. No dia em que detivermos o mecanismo desta
paixão, poderemos tratá-la e reduzi-la ou pelo menos torná-la a mais inofensiva
possível. Eis onde se encontram a utilidade prática e a elevada moral de nossas
obras naturalistas, que fazem experiências com o homem, que desmontam e tornam a
montar peça por peça a máquina humana, para fazê-la funcionar sob a influência
dos meios (...) Ser mestre do bem e do mal, regular a vida, regular a
sociedade, resolver com o tempo todos os problemas do socialismo, e, sobretudo,
trazer bases sólidas para a justiça, resolvendo pela experiência as questões de
criminalidade, não é ser os operários mais úteis e mais morais do trabalho
humano?
Partindo do excerto
precedente, podemos afirmar que os métodos aplicados nos romances naturalistas
culminam num objetivo comum: decifrar o comportamento humano, para assim poder
moralizá-lo. Por conseguinte, promover-se-iam meios para as transformações
política, religiosa, econômica e moral da sociedade. Daí que a literatura teria
então a função morigeradora, já que sua finalidade didática e reformista seria o
melhor instrumento de moralização social (Cf. MARTINS, 1997, p 49).
Ora, se partimos do
pressuposto de que a Europa oitocentista pode ser, como observa Moretti (Cf.
2003, p.184), dividida em partes cujos extremos são ocupados por França e
Grã-Bretanha, países estes que difundem sua literatura para outros sempre na periferia,
parece-nos previsível que a teoria positivista, a princípio francesa, posteriormente
tenha alcançado notoriedade entre os escritores portugueses. Todavia, seria um
lapso pensar que eles a incorporaram incondicionalmente, pois, se por um lado alguns
defendiam a literatura de cariz científico; outros acreditavam, tal como Antero
de Quental, que “o anelo de absoluto intuído pela alma humana, se já não se
satisfazia com as explicações transcendentes e antropomórficas da religião,
também não se sentia preenchido pela mera generalização dos resultados das
ciências a que se reduzia o positivismo” (CATROGA, 1993, p. 572). Para o segundo
grupo, o positivismo não poderia tornar-se a filosofia do futuro, ao menos que
se ampliasse a ponto de abranger a metafísica.
Mas, apesar das divergências,
era consenso entre esses intelectuais que “o escritor tinha por missão semear a
seara nova, a fim de educar os educadores e de elevar a cultura a instrumento
reformador da sociedade” (CATROGA, 1993, p.569). Daí que os poetas e romancistas
portugueses, sobretudo aqueles da “geração de 70”, vislumbraram a possibilidade
de promover mudanças sociais, políticas e econômicas, por meio da literatura.
Vejamos o que diz a esse respeito o já mencionado Cândido Martins (2003, p.9):
A partir de novas matrizes filosóficas
e científicas (do idealismo hegeliano às doutrinas republicanas e socialistas, até
o ideário positivista), os novos intelectuais contrariam violentamente a estagnação
reinante. Impunha-se lhes a necessidade de acompanhar o Progresso; era preciso
derrubar velhos ídolos; destruir anacrônicas convenções, integrantes de uma
sociedade velha e decadente. Numa palavra, era urgente “ligar Portugal com o
movimento moderno”, isto é, europeizar Portugal, articulando-o com o progresso
irradiado por Paris, Londres ou Berlim.
Para promover a reforma
social, acreditavam ser necessário substituir a subjetividade romântica pelo
engajamento realista, dando início à querela, conhecida como Questão Coimbrã.
Como se sabe, os escritores da nova geração contestaram seus antecessores, na
medida em que difundiam a ideia de que o individualismo romântico não
contribuía para a restauração de Portugal. Esse conceito foi exposto nas Conferências
do Casino, em 1871, por vários intelectuais portugueses. De acordo com eles, o
país estava num estado de declínio moral, social e econômico. Na célebre conferência,
intitulada “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos”,
Antero de Quental atribui a decadência moral dos povos peninsulares, entre outros
aspectos, ao catolicismo subsequente ao Concílio de Trento. Segundo o autor, a igreja
de Roma organizou de forma completa, poderosa, formidável o despotismo religioso.
Quando transportado para os povos peninsulares, esse catolicismo “feriu o homem
no que há de mais íntimo, nos pontos mais essenciais da vida moral, no crer, no
sentir, no ser: envenenou a vida nas suas fontes mais secretas” (QUENTAL, 1987,
p.49). Nesse sentido, Antero de Quental julga necessário enterrar esse passado
religioso, a fim de livrar-se das influências que considera deletérias.
Perante o exposto, verificamos
que Portugal, como nação, urgia por transformações, que foram reivindicadas
pela pena de muitos escritores. Eça de Queirós ressalta a função da literatura
como um eficaz instrumento de desenvolvimento moral e social. Tais conceitos,
posteriormente, serão expressos em seus romances, seja no Primo Basílio (1878),
em que se faz um alerta às consequências funestas do adultério, seja no Crime
do padre Amaro (1875), em que se critica severamente a corrupção eclesiástica ou
nos Maias (1888), cujo principal cenário é o Portugal decadente.
Concluído o panorama realista
que predominou na literatura a partir da segunda metade do século XIX,
observamos que, em geral, tanto os romancistas franceses quanto os portugueses
nutriam grandes expectativas no que concerne às teorias positivistas. A mesma
esperança, no entanto, não é expressa na obra de Camilo Castelo Branco, haja vista
que desde suas obras iniciais, o autor, normalmente, desvale os progressos
científicos e as proposições oriundas dele.
Muito embora parte da crítica acredite
que em seus primeiros romances Camilo se entrega ao subjetivismo lírico, reproduzindo
integralmente os pressupostos da estética romântica, cremos que, mesmo em parte
dessas narrativas, o romancista já se preocupa em discutir e, frequentemente, criticar
a esperança que a maioria de seus contemporâneos depositavam no progresso
científico, constatando sua pouca eficácia no que diz respeito ao
desenvolvimento sócio moral. É notório que essas arguições se intensificam, na medida
em que o autor de São Miguel de Ceide constata o desenvolvimento da literatura
que tomou por base a ciência experimental.
Vale ressaltar que não temos a
pretensão de afirmar que a obra de Eça de Queirós é, em sua totalidade, realista,
visto que esta é apenas uma das vertentes apresentadas no conjunto de sua
produção.
Assim sendo, nas obras
analisadas nesse estudo, o narrador tece comentários contraproducentes no que tange
às expectativas de seus coevos, contudo o faz distintamente. Em O bem e o mal,
publicado num período anterior ao auge do Realismo de escola em Portugal, essa
crítica se materializa na oposição campo/cidade; ou seja, o espaço citadino é representado
como aquele que corrompe, enquanto o rural é responsável pela preservação da tradição
e dos preceitos morais. Já em Eusébio Macário e A corja, publicados no apogeu
da estética realista-naturalista portuguesa, Camilo satiriza de modo
contundente as pretensões da nova escola. De fato, o estudo detalhado das personagens,
narradores e paratextos que compõem esses romances mostra que o escritor
português assume uma posição contracorrente, já que expõe as frustrações que
podem resultar da crença exacerbada na funcionalidade da ciência aliada à
literatura.
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Fonte:
Fonte:
Tatiana de Fátima Alves
Moyses: " Camilo Castelo Branco: a moral a serviço das
conveniências". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa
do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da
Motta de Oliveira). São Paulo, 2011.
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