01/08/2015

A Organização Nacional, de Alberto Torres

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Alberto Torres e a organização nacional: críticas ao modelo republicano brasileiro (1914)

Por: Priscila Maddalozzo Pivatto (Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo – USP).

Pensar as relações entre idéias, intelectuais e instituições nos primeiros anos da República brasileira implica analisar livros publicados durante esse período que se debruçam justamente sobre o problema da instauração do novo regime político e jurídico do país. Esse é um dos temas centrais para os pensadores do início do século XX, já que são as inquietações com os destinos do país que estimulavam as interpretações teóricas e práticas da conjuntura brasileira. Nesse contexto é importante apontar duas características da produção intelectual. Por um lado destaca-se a independência de grande parte dos escritores, que produziam de forma isolada, sem estarem inseridos em âmbitos acadêmicos bem definidos. Embora de forma retrospectiva seja possível identificar linhagens de pensamentos e tradições teóricas, em geral os intelectuais formulavam suas narrativas de modo individual (BRANDÃO, 2005). Por outro lado, percebe-se que em sua maioria os intelectuais desse momento exerciam funções dentro do aparato estatal republicano. Isso significa dizer que seus estudos e conclusões são frutos também da vivência e da experiência relacionada à dinâmica interna dos arranjos dos poderes estatais. Esses autores não são, portanto, somente observadores das questões nacionais, mas também atores institucionais. Nesse sentido é que os pontos de contato entre história e direito se multiplicam. Num país onde a cultura dos bacharéis vivia um momento de esplendor, é nas obras dos publicistas e doutrinadores do direito, geralmente membros do poder público, que podem ser encontradas representações da realidade brasileira da primeira República.

Para os fins desse estudo, optou-se pela análise de um dos livros escritos por Alberto Torres, intitulado “A organização nacional”, cuja publicação original foi realizada em 1914. As duas características dos intelectuais anteriormente mencionadas podem ser percebidas em Torres, tendo em vista que era um escritor autônomo cujas criações teóricas eram essencialmente baseadas no exercício de atividades nas esferas dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, já que ocupou cargos de Ministro de Estado, Deputado Federal, Governador do Estado do Rio de Janeiro e Ministro do Supremo Tribunal Federal. O próprio autor explicitou que sua crítica ao modelo liberal republicano foi em grande parte resultado de sua frustração com a prática estatal, veja-se:

“Ao passar, em 31 de dezembro de 1900, o governo da terra fluminense a meu sucessor, o General Quintino Bocayuva, já não podia ser tão firme – desiludida, como fora, pelos fatos – a minha confiança no regime que havíamos adotado; e quando no decurso de alguns anos de magistratura vim a fazer trato mais íntimo com a Constituição da República, fixou-se em meu espírito a convicção de sua absoluta impraticabilidade. [...] a lei máxima da República não é senão uma roupagem de empréstimo, vestido instituições prematuras.” (TORRES, 1933: 9-10).

Em linhas gerais, “A organização nacional” sustenta a tese de que as dificuldades do progresso do Brasil são devidas a desarticulação e fragmentação do país. A tradição liberal, importada de países estrangeiros e descolada das condições reais do Brasil, acabou minimizando o papel do Estado, deixando o país à mercê dos poderes locais oligárquicos. O problema do modelo de Estado liberal e republicano aqui implementado seria, na perspectiva de Alberto Torres, de não corresponder a um produto da sociedade civil. Tratava-se, pois, de um modelo transportado para um país carente de uma sociedade liberal. Assim, a desorganização da sociedade exigiria um Estado forte e centralizado para articular o país. Mais do que uma opção propriamente ideológica, a centralização do poder era, no seu entender, um imperativo dos fatos. Um país carente de organicidade só poderia ser reorganizado a partir de uma instituição artificial, o Estado. Deste modo, a nação seria criada a partir do Estado, no qual noções de interesses coletivos viriam suplantar interesses individualistas. Alguns desses traços podem ser percebidos, por exemplo, no seguinte trecho:

“O espírito liberal enganou-se, reduzindo a ação dos governos: a autoridade, isto é, o império, a majestade, o arbítrio, devem ser combatidos; mas o governo, forte em seu papel de apoiar e desenvolver o indivíduo e de coordenar a sociedade, num regime de inteira e ilimitada publicidade e de ampla e inequívoca discussão, deve ser revigorado com outras atribuições. A política precisa reconquistar sua força e seu prestígio, fazendo reconhecer-se como órgão central de todas as funções sociais, destinado a coordená-las e harmonizá-las – a regê-las – estendendo a sua ação sobre todas as esferas da atividade, como instrumento de proteção, de apoio, de equilíbrio e de cultura.” (TORRES, 1933: 251-252).

A representação do Brasil feita por Alberto Torres revela um país cuja apreciação de seus estadistas pelas tradições européias e norte-americana acabou sufocando a construção de um regime político coadunado com as peculiaridades locais. A proclamação da República foi, com base na sua interpretação, mais um dos fenômenos transplantados prematuramente para o Brasil. Nesse sentido, sua proposta é abandonar a supervalorização de teorias estrangeiras e realizar uma análise empírica, real, primária e naturalista das condições fáticas do país. A partir de dados concretos, fossem eles históricos, geográficos, sociológicos, seria possível construir instituições públicas mais sólidas, porque harmonizadas às necessidades e anseios da sociedade civil brasileira. Sugere Torres um movimento da prática para a teoria e não na direção contrária, como estava ocorrendo.

À aplicação direta das lições dos filósofos e doutrinadores devem-se os maiores desastres da política contemporânea. Os homens de governo ganharam em preparo teórico, mas os fatos cresceram em variedade e complexidade; e o conflito entre fatos e teorias assumiu proporções gigantescas, porque as doutrinas não têm relação com a natureza dos fatos. Em nosso país esse desencontro manifesta-se em documentos flagrantes.[...] A independência, a abolição e a República foram frutos desta natureza; todas as nossas reformas trazem, assim, o cunho de concepções doutrinárias, sem o fluido vital de uma inspiração prática, filha do lugar e da ocasião, e sem desenvolvimento ou trabalho de aplicação. O tempo corre; as instituições não se realizam; a sociedade desfaz-se; e vai assim desaparecendo, à falta de sistema vascular e de matéria agregantes – que só a organização social pode suprir e não se gera, em países novos, senão por ação política.” (TORRES, 1933: 30 e 35).

Portanto, Alberto Torres é um intelectual que faz parte de uma tradição de pensadores brasileiros críticos do liberalismo, cujos argumentos são especialmente naturalistas. De modo específico, cabe ressaltar a análise desenvolvida por Torres acerca da Constituição Federal de 1891. Tal como a abolição da escravatura e a proclamação da República, a Constituição seria também uma cópia mal sucedida de arquétipos estrangeiros. “A nossa lei fundamental não é uma 'constituição'; é um estatuto doutrinário, composto de transplantações alheias” (TORRES, 1933: 88). É nessa separação entre prática e teoria que se realiza o dualismo entre o chamado país real e o país legal.

Os ideais constitucionais inseridos no país dentro do arcabouço liberal republicano importado principalmente dos Estados Unidos foram, segundo Torres, um dos elementos responsáveis pela frustração do desenvolvimento e progresso do país. A Constituição figurava como mera lei teórica, deslocada da realidade que não era capaz de regular. Contudo, a crítica não se encerra num vazio legislativo que tal documento normativo implicaria. A Constituição seria em grande parte responsável pelas distorções institucionais do país. A forma como seus enunciados foram elaborados permitiram, de acordo com Torres, retrocessos no regime representativo, desvirtuamento no sistema federativo, permitindo um poder demasiadamente grande aos estados em detrimento da União e o atraso geral do desenvolvimento da sociedade civil brasileira. Nesse sentido, afirmou o autor:

“Como obra de estética e de ideal político, [a Constituição] é talvez o mais notável documento da cultura jurídica contemporânea; não sei que haja outra onde as definições e classificações, o rigor e cuidado no distribuir e no desenvolver regras e funções, tenham atingido a tanta perfeição; nenhuma levou tão longe o empenho de proclamar as mais avançadas conquistas da liberdade humana e da democracia. Desde que se sai, entretanto, do terreno puramente abstrato e da contemplação da forma, começam a surgir as lacunas, as imperfeições e incoerências do sistema. Não tendo por fim regular fatos da vida pública do povo e do país, atender às suas necessidades positivas, faltou ao legislador o critério prático, próprio de um trabalho legislativo assentado sobre o terreno da observação e da experiência, único que pode das às leis uma feição inteligível, porque reflete as formas da vida real. [...] mas será preciso dizer que a nossa Constituição é uma coletânea de normas espúrias, onde se encontram idéias antagônicas, com relação aos pontos vitais mais importantes; que não tem existência real, na vida do país; que, em matéria de regime representativo, retrocedemos para muito aquém da aparência da representação, dos tempos da monarquia; e que o nosso federalismo é justamente o oposto da federação, não tendo fundado a autonomia dos representantes dos poderes estaduais e municipais senão para nos opor à autonomia dos povos, nos municípios e nos Estado, e à vida nacional, na política, do país?” (TORRES, 1933: 88-89 e 232).

Diante de todas as constatações relacionadas às vicissitudes institucionais do Brasil, realizadas nas seções I – A terra e a gente do Brasil e II – O governo e a política, da obra “A organização nacional”, Alberto Torres apresenta na terceira e última parte do livro uma proposta de revisão constitucional para o país. Apesar de fazer a ressalva de que o país precisava de mais do que uma reorganização com rótulo jurídico, o autor entende que alterações significativas no texto constitucional permitiriam que as instituições republicanas do país se rearranjassem em torno de um projeto verdadeiramente nacional.

“A revisão da Constituição da República é a pedra angular dessa política. A Constituição vigente não é uma lei nossa e para nós; carta de princípios exóticos, só tem servido para alhear os espíritos da idéia de que a lei não é uma forma, nem um aparelho de compressão, imposto ao país, para moldar-lhe os movimentos, mas o espelho, a tradução, a própria intervenção de seu organismo: lei funcional e bússola de sua atividade, para lhe servir de guia e coordenar-lhe os interesses.”(TORRES: 1933, 316).

Usando um estilo argumentativo bastante direto, com poucas referências a outros autores, Torres desenvolveu uma narrativa interpretativa consistente sobre o Brasil, consignando em texto suas impressões sobre as estruturas institucionais do país cuja influência tanto no nível prático quanto teórico pôde ser mais tarde verificada. As idéias impressas em um livro não são estanques, não se encerram na escrita de seu autor. Ao contrário, essas idéias circulam por diferentes meios, nos quais são apropriadas e reinterpretadas pelos leitores. Não por acaso novas edições desse livro foram lançadas na década de 30, período no qual a recuperação de autores críticos do liberalismo e favoráveis a um modelo de governo forte e centralizado era essencial para o sucesso das novas configurações institucionais que a revolução de 30 fez surgir.


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Referências bibliográficas:
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BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. Dados. v. 48, n. 2, 2005.
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LIMA SOBRINHO, Barbosa. Presença de Alberto Torres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
 MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista em Alberto Torres. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1979.
MENNUCCI, Sud. O pensamento de Alberto Torres. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1940.
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TAVARES, José Lino. Autoritarismo e dependência Oliveira Viana e Alberto Torres. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979.
TORRES, Alberto. A organização nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933.
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Disponível em: http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S24.1288.pdf

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