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O gabinete de Camilo
Eu já citei algures estas palavras de
Alexandre Dumas pai: “Há sempre nos móveis que vos cercam alguma cousa de vós
mesmos”.
Tão profunda verdade, se carecesse de
demonstração, encontrá-la-ia no gabinete de Camilo Castelo Branco.
É aquele um templo consagrado unicamente à
Arte. Ali tem altar a pintura, a arqueologia, a história natural, e a
literatura. Pressente-se que se está no gabinete de um grande romancista porque
se adivinha a história de cada quadro, a novela de cada móvel, a epopeia do
tinteiro de metal amarelo de onde há pouco mais de vinte anos tem nascido para
glória das letras portuguesas cerca de cem livros. Tudo ali
fala. Há idílios de saudade suavíssima a murmurar ao de cima dos silenciosos
companheiros da mocidade; há marcos miliários que rememoram sucessivas fases da
vida do escritor. Os verdadeiros amigos de Camilo são aqueles. Só eles guardam
o segredo de íntimas comoções, que parecem vibrar ainda em novelas escritas há
doze anos, e que primeiro lhe arrancaram lágrimas a ele do que a nós. O talento
de Camilo é nosso: estamos há longo tempo familiarizados com ele; tanto o
estimamos, que o vamos procurar mal que se anuncia um livro novo. Nós lemos o
livro já enroupado em galas de estremada linguagem; mas o seu gabinete lê o
esboço da novela tal como lhe saiu do coração. Nós vemos a estátua; o seu
gabinete vê Pigmalião. Quando as lágrimas nos chegam a nós já as sentimos
dulcificadas pela amenidade da frase. Não as vemos; conhecemos-lhes apenas os
vestígios. Mas o seu gabinete viu-as. O mesmo é pelo que respeita a
personagens. Nós conhecemos o retrato; o gabinete conheceu o modelo. Camilo tem
feito a história de muito homem; só o seu gabinete poderia fazer a história de
Camilo. Nós temos o romancista; o gabinete tem o homem. Ainda mais. Se os móveis
quisessem falar, revelariam o romance de muito escritor português, que eles têm
conhecido e ouvido em íntimas práticas, ora contando os seus desalentos, as
suas mágoas, os seus queixumes, ora arroubando-se em enganosos sonhos, em
esperanças quase sempre mentidas, em aspirações poucas vezes realizadas...
Todavia o leitor denuncia-se impaciente de
entrar ao gabinete de Camilo.
Entremos pois.
Corrido um reposteiro, estamos numa alegre e
clara sala à-rez-de-chaussée. Logo nos fascina o
pitoresco do ensemble. Não é o gabinete de Lúculo; é
o escritório de Horácio. Não há iriados reflexos de cristais e mármores.
Encontramos apenas o atelier do
artista.
Dizem para a rua duas largas janelas;
transparentes amarelos modificam a claridade exterior.
No desvão da janela da direita casa-se com o ângulo
da parede uma pequena mesa triangular coberta de pano amarelo; o desvão da
janela da esquerda é ocupado por uma gaiola, prisão de um viúva, ave cujo nome procede de se
vestir de negro duas vezes ao ano.
É a viúva o primeiro cuidado de Camilo
quando entra ao seu escritório; vai vê-la, falar-lhe, examinar se lhe faltam as
regalias indispensáveis para tornar suave a carceragem.
À parede interposta às duas janelas fica
encostado o fogão sempre chamejante de intenso brasido; sobranceiras ao fogão
pendem uma gravura representando Lacordaire, e um quadro com o retrato de
Vieira de Castro. Vizinha do fogão está a priguiceira de palha, onde o
romancista, ora com os pés no fender, ora resguardados no couvre-pied de
feltro, procura repousar-se para o trabalho, intercortado de pequenas pausas,
lendo os jornais do dia e atiçando o fogo.
Entre a janela da direita e a porta, encimada
por um
quadro a óleo que representa as armas da casa de Cadaval, há uma banca com
tinteiro de prata e uma cesta de palha cogulada de cartões de visita, que a meu
ver são o verdadeiro bosquejo histórico da literatura portuguesa. O erudito
padre Cardoso, se tivesse conhecimento desta cesta, poderia aumentar
considerevelmente a sua sinopse com os nomes de notabilíssimos escritores
portugueses desde Garret a esta parte.
Este lanço de parede está adornado com os
retratos da família de Camilo e com um quadro a óleo reputado de Murilo por
pessoas sobremodo competentes em assuntos de pintura.
Na continuação desta parede encontramos uma etagére de
pau preto com romances franceses e ingleses; sobrepostos à etagére os
retratos da família Ouguela, uma paisagem inglesa a óleo, o colar da academia
real das ciências que pertencera a Vieira de Castro, e uma valiosa placa de
prata que apresenta em relevo a imagem de Santo Antônio.
Segue-se uma mesa sustentando uma estantezinha
entre cujos livros notaremos as obras de Filinto Elísio; sobre a estantezinha
há um relógio; superior um quadro anônimo a óleo, figurando o Éden; aos lados duas gravuras
francesas, uma assinada por Desjardins — L'aprés dinée—, outra assinada por
Paul Girardin— La Benediction paternelle, e a
fotografia de José Barbosa e Silva, deputado que foi da nação, e autor do
romance Viver para sofrer.
Avultam no ângulo duas etagéres com
livros e bustos.
Cobrem a parede do fundo duas estantes
envidraçadas, sobranceadas por quadros a óleo, bustos de escritores
estrangeiros, rumas de livros, e pela caixa que guarda o chapéu do uniforme de
sócio da academia pertencente a Vieira de Castro.
Encostada à parede fronteira à porta de entrada
há uma estante, e pendentes várias gravuras, retratos, e pinturas.
Uma das gravuras assinada por Granville
representa o lance do Medecin
malgré lui em que Sganarelle diz a Géronte: Voilá justement ce qui fait que votre fille est muette;
há ainda duas gravuras, copias de Horácio Vernet, denominadas lhe dernier morceau de pain e lhe dernier ami, que o romancista possui
desde os vinte anos.
Ressaltam também deste pano dois quadros a
óleo, um relógio de parede, uma copia da Virgem da Cadeira, o espadim de Vieira
de Castro, e os retratos de Tomaz Ribeiro, Vieira de Castro, José Júlio de Oliveira
Pinto, Francisco Martins, e morgado de Pereira, atualmente em África, senhor da
honra e solar de Esmeriz, antigo solar dos Pereira Forjazes, de Riba de Ave.
Por estes sinceros amigos de outros tempos,
Vieira de Castro, José Barbosa e Silva, José Júlio de Oliveira Pinto, hoje
cadáveres, sente ainda o coração de Camilo pungentíssima saudade. Não há aí
encontrar memória mais tenaz em recordar desgraças alheias, e alma mais
devotada a carpir as angústias desses notáveis homens que pereceram deixando
imorredouro nome à história portuguesa mais deslembrada do que eles valiam do
que o amigo que os pranteia ainda no remanço meditativo do seu gabinete.
Em seguida à estante deparamos uma jardineira
com candeeiro, álbuns, e uma urna de prata oferecida pelos portugueses de
Hong-kong, como consta da inscrição gravada na mesma urna:
AO IL.mo E
EX.mo SR.
CAMILO CASTELO BRANCO
O.
OS SÓCIOS DA
BIBLIOTECA PORTUGUESA
DE HONG-KONG
1869.
CAMILO CASTELO BRANCO
O.
OS SÓCIOS DA
BIBLIOTECA PORTUGUESA
DE HONG-KONG
1869.
Imediatamente à jardineira ficam o sofá e as
poltronas destofo vermelho com ramagens cinzentas. As demais cadeiras são de
pau preto com molduras douradas.
Entre o sofá e a janela da esquerda está colocado
um contador sobre o qual assentam rumas de livros e outro candeeiro.
Resta-nos falar de uma estante de música, que
serve de banca a Camilo, quando por incômodo de saúde não pode ler sentado,
para chegarmos à mesa onde habitualmente escreve, posta à esquerda da porta de entrada.
São únicos adornos da sua banca um tinteiro
circular de metal amarelo, um cinzeiro de louça, uma cabeça de metal onde
arquiva as cartas recentemente recebidas, livros depositados a um e outro lado,
e tiras de papel que Camilo Castelo Branco infatigavelmente enche todos os
dias.
Da banca para o fogão facilmente se desliza ao
longo do tapete que cobre todo o pavimento.
Sigamos este breve trajeto para nos
repotrearmos na priguiceira de palha em que provavelmente se reclinou o imperador
do Brasil, que Camilo Castelo Branco presenteou com um quadro dos reis de
Portugal até D. João IV.
Relanceemos ainda um olhar a este mudo
conjunto de coisas inanimadas que o romancista estima como partes integrantes
de sua família. Parece-nos porém ouvir passos no corredor. É decerto Camilo que
vem retomar o seu posto de todos os dias. Soou a hora de trabalhar. Antes de
sentar-se, festejará a ave da gaiola, aquecerá ao fogão as mãos enregeladas, e
abancará depois para escrever um dos últimos capítulos do romance Herança de Londres ou
para traduzir primorosamente algumas páginas do Dicionário de educação, de Campagne.
Antes que o artista entre ao seu atelier e
retome a pena que descansa sobre o tinteiro desde o alvorecer da manhã, saiamos
nós, os que não temos direito a surpreender o escritor na doce quietação da sua
vida íntima.
Entre o romancista que está escrevendo a
novela cujo entrecho será amanhã conhecido das classes menos abastadas da
sociedade portuguesa e das mais remotas províncias, interpõe-se hoje o
reposteiro que separa o escritor do homem.
[Trecho do livro]
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