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Que
o regime presidencial foi uma surpresa e um logro
O regime presidencial não foi
instituído no Brasil depois de uma propaganda que tivesse mostrado suas
vantagens e desvantagens. Ele foi uma surpresa e um logro.
Às vezes, de entre várias
soluções ao mesmo problema, que estão simultaneamente em debate, há uma que
consegue impor-se inesperadamente. Uma maioria ocasional determina escolhas,
que assombram a maioria real; mas essas escolhas recaem sobre uma das soluções
em discussão e sabe-se bem do que se trata.
Não foi nem mesmo isso o que
aconteceu. O regime presidencial não suscitou nunca nenhum debate geral. Ele
apareceu, um dia, em um projeto de constituição decretado pelo Governo
Provisório. Ninguém o discutiu. Foi aceito, por assim dizer, em silêncio.
A propaganda republicana se tinha
feito sobre uma base, que se pode chamar “negativa”. O que se queria era
destruir o regime monarquista.
Essa é aliás a regra em todas as
propagandas revolucionárias; o acordo se faz apenas acerca de um ponto: a
necessidade de suprimir o que há. Quanto ao que convém pôr no lugar, as
opiniões divergem. O caso é corrente mesmo em medicina, em que é muito mais
fácil que todos se entendem sobre a natureza da moléstia do que sobre os
processos de cura.
A moléstia que os republicanos
queriam eliminar era a instituição do poder pessoal nas mãos da princesa D.
Isabel. Todos sabiam que o imperador descurara a educação da filha: ela não
tinha a compreensão das altas questões sociais, que devia resolver. Era um
espírito estreito, fanático, que só se preocupava deveras com a religião e a
música.
É certo que assinara a lei de 13
de Maio, decretando a Abolição. Mas todos haviam visto que o Imperador se
afastara propositalmente a fim de lhe dar ensejo a que fizesse esse ato, para o
qual ela não concorrera de modo eficaz, embora talvez o aplaudisse
sinceramente, porque era uma questão, em que o lado sentimental dominava tudo.
O que mostraria o talento de um
estadista seria organizar as cousas, de modo que a Abolição não causasse nenhum
abalo econômico. Disso a Princesa jamais cuidou.
Citavam-se fatos que mostravam a
orientação do seu espírito. Certo dia, por exemplo, tivera a estranha idéia de,
como cumprimento de uma “promessa”, ir varrer uma igreja de Petrópolis. Via-se
bem que ela tinha a mentalidade de uma burguesinha de classe média, boa,
honesta, virtuosa, mas sem nenhuma elevação.
Por outro lado, havia o Conde
d’Eu. É uma figura estranha a desse príncipe, que talvez tenha sido um caso
único: o príncipe que perdeu três coroas!
Quando a Bélgica andou à procura
de um rei, foi no Duque de Nemours, pai do Conde d’Eu, que pensou. A Inglaterra
opôs a isso o seu veto. Luiz Filipe viu que a aceitação dessa candidatura seria
a guerra e não permitiu que o irmão a adotasse.
Mais tarde, na Grécia, houve a
mesma idéia. Também essa nação quis um rei, também por lá não faltou quem
pensasse no Duque de Nemours. De novo, o veto da Inglaterra impediu que o ato
se consumasse.
Afinal, o Conde d’Eu ia ao menos
ser príncipe consorte, imperador não-reinante. Mesmo isso, porém, o destino não
lhe permitiu.
O que o fazia antipático aos
brasileiros era o espírito de lucro — espírito bem francês, de economia, de
atenção ao dinheiro. Espírito absolutamente contrário à nossa índole
perdulária. O fato, que foi contestado mas que se tinha como certo, de ter ele
empregado grandes somas na aquisição de habitações de gente pobre, habitações
sem conforto nem higiene, mas muito rendosas — os cortiços — prejudicara-o
muito no espírito popular. Contava-se de pessoas pobres que iam ao paço receber
esmolas da imperatriz e com essas esmolas pagavam os quartos dos “cortiços”
alugados pelo Conde d’Eu!
De mais, ele sempre conservara o
sotaque estrangeiro.
Este pequeno pormenor, que parece
insignificante e que, de fato, nada prova, é um dos que causam sempre
detestável impressão. Impressão involuntária, injusta, mas profunda. Para o
destino de Maria Antonieta, para o modo brutal pelo qual foi tratada a mulher
de Paulo I, da Rússia, quando esse imperador foi assassinado, para muitos
outros acontecimentos históricos, contribuiu essa particularidade. Talvez não
fosse descabido lembrar que isso também influiu para a instalação da república
portuguesa, por causa de uma certa antipatia contra a rainha D. Amélia, e mesmo
contra D. Manuel, que, educado pela mãe e por professores franceses, tinha o
sotaque desses professores.
Um príncipe que fala a língua do
país que dirige com a pronúncia de outro, lembra a cada instante a sua origem
estrangeira e isso parece uma humilhação para os seus súditos.
Dir-se-á que afinal esse
inconveniente não era considerável. Mas é preciso ter sempre em vista o fato
das multidões não raciocinarem com a serenidade e a lógica dos indivíduos, que
meditam calma o sensatamente.
O Conde d’Eu tinha ainda o
inconveniente de ser surdo. A surdez, alheando os indivíduos do meio em que
estão, lhes dá, às vezes, a imputação de orgulhosos, porque não lhes permite
tomar parte na conversa com a cordialidade, que todos desejariam.
Os hábitos da corte, tais como D.
Pedro II os instituíra, tinham sido sempre de uma familiaridade bonacheirona.
Nunca ocorreria a nenhum soberano dar audiências populares, como as de D.
Pedro, na Quinta de S. Cristóvão, todos os sábados: num corredor, de pé,
aceitando indistintamente todos os que queriam entrar. O seu ideal parecia ser
o do “bon petit roi d’Yvetot”:
Joyeux,
simple et croyant le bien
Pour toute garde, il riavait rien
Qu'un chien....
Isso provava um bom coração, uma
grande amabilidade; mas era incontestavelmente destituído de decoro. O Conde
d’Eu educado à francesa, não se ajeitava inteiramente com esse sistema e os
seus modos de agir, conquanto não fossem grosseiros nem orgulhosos, o punham
num destaque antipático.
Evidentemente uma revolução não
se faz unicamente por esses pequenos móveis, embora a soma de tais
imponderáveis chegue, às vezes, a totais espantosos. Há sempre, no fundo, os
grandes motivos sérios de descontentamento e mal-estar.
Já se tem dito que nunca se fez
revolução alguma sem graves razões de ordem econômica. Talvez isso seja uma
fórmula muito absoluta, sobretudo para nações com a constituição étnica da
nossa, em que as questões de sentimento primam muitas vezes as de interesses
reais. Mas nem mesmo esses motivos econômicos faltavam em 1889, porque desde
que começara a propaganda abolicionista, o trabalho agrícola se desorganizara.
E o trabalho agrícola era então a nossa única fonte de riqueza. Por outro lado,
a excessiva centralização contrariava as províncias, sobretudo as que mais
produziam.
De tudo isso se fazia culpado o
regime imperial, o poder pessoal do Imperador e mesmo o parlamento. Acontecia
que com a desorganização do trabalho causada pela propaganda republicana
ninguém se preocupava com a do presidencialismo norte-americano, ninguém
tratava disso, ninguém sabia o que era.
Seria vão procurar se, nalgum
livro, nalgum perdido artigo, se encontravam alusões a ele. A verdade é que no
forte da propaganda, nos artigos de sensação, nos comícios populares não se
falava em tal cousa. Praticamente, o que todos queriam era, em vez da Princesa,
um Presidente de República! E mais nada.
De repente, no projeto de
Constituição apresentado pelo Governo Provisório surgiu o regime presidencial.
O momento não comportava muitas discussões teóricas. Não havia tempo para
estudar uma questão cuja gravidade ninguém aprendia bem.
Os que julgam os fatos daquela
época precisam lembrar-se que era um período de legislação a jacto contínuo. O
Governo Provisório concentrava todos os poderes e desenvolvia uma atividade
extraordinária em todos os domínios da administração e do direito, sob todas as
suas formas. Os decretos se sucediam. Era um frenesi legislativo.
Não vai nisto censura. Nessas
épocas não se pode agir com a calma e a prudência dos tempos normais. Mas é
preciso bem evocar esse estado de espírito — o que não é muito fácil — para
compreender porque o projeto de Constituição não teve discussão na imprensa.
Hoje isso parece estupendo. Na
ocasião, era normal. Havia uma infinidade de outras preocupações que absorviam
a atenção pública — preocupações urgentes, imediatas — que a desviavam de
cogitar em cousas, que pareciam mais teóricas, mais remotas. Além disso é bom
não esquecer que se estava em plena ditadura, havia quase um ano. Um regime
legal qualquer, mesmo o presidencial, parecia liberal diante da ditadura franca,
completa, absoluta.
Seja, porém, como for,
justificada ou injustificadamente, o fato é incontestável: o projeto da
Constituição do Governo Provisório não foi discutido. Apareceu; todos os
jornais o inseriram; no dia seguinte, ninguém falava mais nisso.
A Constituinte foi uma assembléia
de calouros. A maioria dos seus membros entrava por aí na vida pública. Um
grande número deles vinha dos quartéis: eram oficiais moços, que quase todos se
consideravam solidários com Benjamin Constant. Só havia nessa assembléia um
grupo realmente ativo, coerente, sabendo mais ou menos o que queria: o grupo
positivista. Embora pequeno, pesou muito — e nefastamente — sobre a
Constituinte. A ele aderiam em regra todos os militares, que se julgavam
obrigados a concordar com o positivismo, porque era a doutrina de Benjamin
Constant. A ignorância de quase todos sobre as questões políticas mais
elementares chegava a limites estupendos!
Ora, o positivismo, tendendo
naturalmente para a ditadura, preferia o presidencialismo ao regime
parlamentar. Quando se lêem hoje os debates daquela assembléia, vê-se bem que
os próprios positivistas mais ilustrados, que mais influência tiveram,
ignoravam o mecanismo real do regime presidencial. O que eles sabiam era que
estava em antagonismo com o Regime Parlamentar detestado por Augusto Comte e
que se aproximava mais do sistema ditatorial. Era o que os decidia.
Contra isso havia na Constituinte
um pequeno número de políticos do tempo do Império, infensos ao modo de governo
que se queria implantar. Mas para o combaterem faltava-lhes autoridade, por
dois motivos. Primeiro, porque também o não conheciam. Depois, porque não se
atreviam à luta, para não parecerem suspeitos. Os positivistas faziam crer que
o parlamentarismo era quase a mesma cousa que a monarquia e os antigos
monarquistas não ousavam defendê-lo, porque pareceriam traidores à República.
Daí a timidez dos seus protestos em uma assembléia, em que a educação política
da maioria era inteiramente nula.
Nem ao menos a falta de discussão
na Constituinte podia ser suprida pela discussão na imprensa, porque, durante o
tempo em que aquela assembléia esteve reunida, o Governo Provisório continuava
a legislar. Quanto mais sentia que o seu poder ia acabar, mais usava dele.
Instrução, justiça, organização militar, tudo se reformava; códigos variados se
sucediam. Ainda depois da Constituição promulgada, decretos do Governo
Provisório antedatados apareceram!
A essas medidas, que feriam
interesses imediatos, era impossível não prestar atenção. Elas a monopolizavam
quase inteiramente. E durante esse tempo a Constituinte ia votando a
instituição de um regime, de cujo funcionamento a quase totalidade dos seus
membros não tinha a mínima notícia.
Depois, para muita gente, havia
em favor dele uma razão verbal, que pode parecer ridícula e fútil, uma razão
desarrazoada — se assim pode dizer-se. Era uma simples analogia verbal. Nós
tínhamos passado a ser os Estados Unidos do Brasil. Logo, devíamos ter as
instituições dos Estados Unidos.
Todos os que estudam a psicologia
das multidões sabem como as analogias verbais são poderosas e influentes. Não
há aliás nisso nenhuma aberração. Há uma falta de atenção, uma falta de exame
das questões. Só se deveriam dar nomes iguais a cousas iguais. Não é,
entretanto, o que sucede; mas uma infinidade de pessoas raciocinam como se
fosse essa a verdade. Havia, portanto, obscuramente na cabeça de muita gente,
este silogismo:
“Nações, que se chamam do mesmo
modo, devem ter um governo igual;
“Ora, a república norte-americana
e a brasileira chamam-se agora igualmente Estados Unidos;
“Logo, a república brasileira
deve ter um governo igual ao da norte-americana”.
Escrito, exposto em termos
claros, analisado à luz da razão, este pretenso silogismo é uma tolice
monstruosa, porque ele parte da identidade real inexistente das cousas de nome
igual; mas ele pesou muito na escolha do regime presidencial. Pesou, como tudo
o que concorreu para o seu estabelecimento, sem que ninguém o ousasse enunciar.
Porque a verdade é esta: a propaganda republicana se fez sem que a maioria
pensasse no regime presidencial; não se sabia o que era, não se falava nele. O
projeto de Constituição do Governo Provisório não teve discussão na imprensa.
Na Constituinte não a teve também com a amplitude que merecia, porque os que podiam
defender o regime parlamentar não ousavam, para não parecerem suspeitos.
Assim, a instituição do
presidencialismo entre nós se fez por surpresa. Por surpresa — e graças à
ignorância geral em que todos estavam a seu respeito. Não foi uma escolha consciente
da Nação.
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