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O Analista dos Vícios e Paixões Humanas
Ao mesmo tempo que acabava o
curso, e já com o escritor a crescer no seu interior, começa a surgir em Fialho
o homem diletante e boémio, que passa as noites e os dias na Havaneza e no
Martinho e que definitivamente consolida a sua posição de homem de Letras em
detrimento da do estudante de Medicina (Pimpão, 1945:27). Desenvolve o vício de
frequentar o café, necessidade vital observada em qualquer outro artista
português à época, e local eleito por si para fazer troça diária dos seus amigos
e conhecidos, hábito que lhe valeu algumas inimizades e ódios de estimação (Zokner,
1974: 26-28; Malpique, 1957: 218). Na opinião de muitos, o café foi prejudicial
a Fialho, porque perdeu tempo que podia ter sido canalizado para a produção literária,
e embora Cecília Zokner defenda o mesmo pressuposto, destaca, ao mesmo tempo, a
faceta vantajosa desta peregrinação diária: o permitir a Fialho ser um
observador privilegiado do quotidiano da cidade de Lisboa, facto que veio a influenciar
determinantemente a sua obra (Zokner, 1974:28). Para além de boémio, Fialho era
também um noctívago assumido, e que por Lisboa “gostava de errar [...] noite
alta, sob a luz forte dos lampiões. Tornava-se então eloquente” (Pimpão, 1945: 158).
Costa Pimpão interpretou correctamente as emoções que a noite provocava no espírito
de Fialho, acrescentando que esta “sedu-lo também pelo seu poder de evocação,
pela possibilidade que ela lhe fornece de perscrutar o mistério da sombra e de
interpretar estados de alma na expressão anómala que as coisas tomam no halo crepuscular.
A noite liberta a fantasia, e permite ao artista deambulante tecer em volta dos
seres e dos objectos sugeridos, caprichosos rendilhados, frágeis teias de
hipóteses, idílios e dramas, sem que a luz crua venha opor ao devaneio um
desmentido formal” (Pimpão, 1945:160).
Fialho é essencialmente um homem
solitário e um escritor escravo das impressões do momento, absorvendo
instantaneamente o meio ambiente que o rodeia, não sendo por isso de estranhar
que a luz e aura da noite exerçam sobre ele tamanho fascínio, durante as suas
deambulações “neste corpo de monstro escamoso e fosforente, que é Lisboa de
noite” (Almeida, 1992b:128). O próprio autor documenta esta atracção pela noite
que liberta e que cria em Boémios e concede-lhe os créditos pelo desapertar das
amarras cerebrais:
“A noite que prepara, a noite que
sugere, a noite que realiza e dá corpo a todas as formas de exagero, a todas as
impulsividades de luxúria, a todas as estranhezas fantásticas da ilusão; ela
que calcula, ela que pensa, ela que estuda, ela que desdobra a personalidade
para além dos limites do real humano, do digesto lógico e consciente, e
telepatiza os mundos, abrindo sobres os infinitos da vida essa grande porta do
baptistério tremendo onde todas as religiões escreveram para o homem ler – não passarás!”
(Almeida, 1992p:37)
A ligação que estabelece com a
noite na cidade fá-lo sofrer muito, quando, em 1893, sai de Lisboa para casar
com uma rica herdeira de Cuba, D. Emília Augusta Garcia Pego, que acaba por
falecer no ano seguinte, deixando Fialho nomeado como seu herdeiro universal e,
mais uma vez, sozinho. Nessa altura, queixa-se a Raul Brandão:
“É horrível a minha vida na
aldeia. Se não fossem os livros já me tinha suicidado. Cada vez preciso mais de
ver gente e desta vida artificial de Lisboa. Na aldeia, em Cuba, não falo com
ninguém, não tenho ninguém com quem comunicar. (...) Ah, mas as noites!...Tenho
noites em que pego num livro e saio. Há uma estrada em volta de Cuba – e eu ali
ando à roda toda a noite a falar sozinho como um condenado!” (Almeida apud Brandão,
1998:203-204).
Fialho tornara-se, à época, um
pequeno proprietário rural, mas não deixa de passar temporadas intermitentes na
sua cidade de eleição, Lisboa. Aqueles que o julgavam silenciado para sempre,
são surpreendidos, em 1900, pelo lançamento de À Esquina. Entretanto, já sem
problemas financeiros, aproveita para viajar pelo estrangeiro, sem nunca parar
de escrever artigos ácidos sobre a República, que depois de proibidos em
Portugal, passaram a ser publicados apenas no Brasil. A ostracização a que era
votado acentua-se e falava-se do eminente <<convite>> ao escritor,
por parte do governo, para se ausentar do país, quando este falece em 1911.
Mas voltemos um pouco atrás.
Antes do casamento e, portanto, da ida para o Alentejo, encontramos um Fialho
boémio, noctívago e observador minucioso do diaa-dia lisboeta. Findo o curso de
Medicina e tendo já optado pela via das letras, tornase director literário d’ O
Interesse Público em 1886 – cargo onde não permanece durante muito tempo. Dois
anos depois, torna-se jornalista n’ O Repórter, convertendo-se, nas palavras de
Costa Pimpão “num panfletário ardente, num ácido caricaturista da vida
nacional, de onde poja, de onde em onde, o eugenista e reformador” (1945:37). A
violência da sua escrita e as vaidades que amachuca à mesa de café,
granjeiam-lhe ódios de estimação, como referimos mais acima e Fialho torna-se um
crítico temido, principalmente no meio teatral – questão central no nosso trabalho
e que aprofundaremos num capítulo mais adiante. Entre 1889 e 1894, a sua actividade
literária é intensa, quase febril, e publica, para além das numerosas crónicas
e críticas em jornais, os vários volumes d’ Os Gatos13, Pasquinadas e Lisboa Galante,
ambos publicados originalmente em 1890 e Vida Irónica, dois anos depois. Nestes
livros, Fialho “requinta as suas qualidades mestras: vigor de estilo, orquestração
de ressonâncias profundas, voos que atingem a estratosfera da sensibilidade,
visões radioscópicas que parecem alcançar o além, paroxismos de beleza
excelsos” (Malpique, 1957: 211).
Analisando a sua obra, fica bem
patente a fluência dramática, a riqueza lexical e o grande poder descritivo de
Fialho, sendo igualmente fácil descortinar quais os espaços privilegiados das
histórias fialhianas: Lisboa enquanto espaço urbano proletário e enquanto local onde
se move a classe média, com todos os seus truques e fingimentos, tentando
parecer a aristocracia; o campo (que percorre toda a sua obra, mas que
preferimos destacar em O País das Uvas, publicado pela primeira vez em 1893) e
mais tarde, já viúvo, os espaços que visitou no estrangeiro e que descreve nos artigos
compilados postumamente no volume intitulado Estâncias da Arte e da Saudade.
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Fonte:
Fonte:
Maria Inês Martins Birrento do
Nascimento Rodrigues: "Arte, Crítica e Sociedade na Obra de Fialho de
Almeida". (Dissertação de Mestrado em Estudos Artísticos, sob orientação
do Professor Doutor Amadeu Carvalho Homem, e co-orientação do Professor Doutor
Fernando Matos Oliveira, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra Coimbra, 2010, disponível em: estudogeral.sib.uc.pt
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