20/11/2014

Fedra (Teatro), de Jean Racine

 FedraFedra, de Jean Racine
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Jean-Baptiste Racine

A tragédia Hipólito é recriada modernamente por Jean-Baptiste Racine, dramaturgo francês do século XVIII que, no processo de reelaboração do mito, retira a intervenção dos deuses e, com isso, confere maior verossimilhança ao enredo. Racine, ao falar de sua obra, afirma:

Eis aqui novamente uma tragédia cujo tema foi tirado de Eurípedes. Apesar de eu haver seguido uma rota um pouco diferente da percorrida por aquele autor para o desenrolar da ação, não me abstive de enriquecer minha peça com tudo que me pareceu mais notável na dele. Ainda que eu lhe devesse apenas a idéia da personagem de Fedra, poderia lhe dizer que lhe devo o que talvez eu tenha posto de mais razoável no teatro. (RACINE apud EURÍPEDES, 1991, p. 86)

Racine dota a sua Fedra de mais tensão psicológica, pois, segundo ele, na peça, a protagonista assume todas as características necessárias para a conformação aos pressupostos aristotélicos do herói trágico e à demonstração do processo catártico. No prefácio de sua versão, afirma que “Fedra não é nem totalmente culpada, nem totalmente inocente. Ela se envolveu pela cólera dos deuses, em uma paixão ilegítima, de que ela é a primeira a horrorizar-se” (RACINE apud EURÍPEDES, 1991, p.86).

Roland Barthes, crítico francês, aponta no conjunto da obra raciniana dois tipos de Amor: “o primeiro nasce entre os amantes de uma comunhão que vem de longa data, eles foram criados juntos, amam-se [...] o outro Amor, ao contrário, é o amor imediato, nasce bruscamente” (BARTHES, 1987, p. 14). Fedra é acometida por esse segundo amor que aparece de forma abrasadora e torna-se absoluto. É ele que direciona suas ações durante toda a narrativa e marca, em Racine, a tênue linha que separa o amor do ódio. Denominado por Barthes de Eros imediato, esse amor torna-se destrutivo e o herói é nele aprisionado e inevitavelmente conduzido a um desfecho trágico.

Com Fedra, Racine alcança, segundo muitos críticos de sua obra e, dentre eles, Barthes, a culminância do realismo psicológico e da análise da mulher. Centrando toda a ação em Fedra, personagem densa, ele a mostra como uma figura de fundo clássico euripidiano e, ao mesmo tempo, a torna complexa pelos entrechoques com a consciência cristã, muito influente no processo de sua formação pessoal. A sabedoria de Racine reside, dessa forma, na decomposição psicológica do mito de Fedra, dotando-a de uma dimensão mais tipicamente humana, como veremos mais adiante.

Um exemplo muito claro de que a Fedra construída por Racine é marcada pela complexidade de seus conflitos íntimos são revelações que são dadas ao leitor por meio de diálogos com a ama, pois, nos entrechos da fala, a protagonista revela oscilação entre o amor que sente por Hipólito e o arrependimento por tramar uma vingança pelo amor não correspondido. Em contraponto com Eurípedes, Racine coloca Fedra em primeiro plano e, “ao escolher para sua tragédia o título de Fedra e não de Hipólito, Racine já revelou o propósito de aprofundar-se na psicologia da heroína, que passa indiscutivelmente ao primeiro plano” (MAGALDI, 1989, p. 21).

Barthes considera Fedra a mais profunda das tragédias criadas pelo dramaturgo francês. Segundo ele, Racine constrói sua peça fundamentando-se na dicotomia silêncio/palavra e essa dicotomia é a responsável pela sólida tessitura da trama. “O risco trágico é aqui muito menos o sentido da palavra que seu aparecimento, muito menos o amor de Fedra que sua confissão” (BARTHES, 1987, p. 111). A esposa de Teseu é a responsável pela demarcação dos episódios mais importantes da trama, pois seu diálogo com as personagens, ao mesmo tempo, determina os contornos dos fatos e delineia a iminência de um desfecho trágico. As confissões de Fedra desenham os destinos dos personagens. Enquanto ela está em silêncio, sua posição é intermediária entre a vida e a morte. A palavra, nesse caso, é o que resolve a situação de impotência, tirando-a de sua imobilidade e dando movimento à trama.

Em Fedra Racine destaca o poder da palavra, aquilo que a torna tão terrível, e o leva ao teatro. A palavra, na peça, é irreversível, não pode ser retomada. Uma vez liberta, torna-se definitiva. A quebra do silêncio da protagonista é o que determina as três grandes rupturas existentes. “Essas três rupturas têm uma gravidade crescente; de uma a outra Fedra se aproxima de um estado sempre mais puro da palavra” (BARTHES, 1987, p. 111).

A primeira confissão de Fedra dada à ama Enone acontece no âmbito narcisístico, uma espécie de desabafo na tentativa de tirar dos próprios ombros o fardo pesado do amor avassalador pelo enteado e também um pedido de ajuda diante do sofrimento insuportável. A segunda confissão é marcada pela busca do amor de Hipólito. Confessando-se ao amado, Fedra liga-se a ele definitivamente e debruça-se na esperança de possuir seu amor. Por fim, a confissão da inocência de Hipólito a Teseu marca o final do processo purificador da palavra destacado por Barthes. Trata-se do momento catártico do drama, onde, ao recuperar a honra do herói, Fedra fecha o ciclo do enredo trágico. Essa terceira confissão é que demarca a distinção entre a peça de Racine e a de Eurípedes, visto que, para o grego, a ruptura final da trama se dá mediante a intervenção divina.

Por meio das confissões de Fedra presenciamos a definição de herói trágico em Racine: trata-se do ser aprisionado, aquele que não pode sair para a ação sem que isso acarrete sua própria morte, ou seja: é a libertação/liberação da palavra - a expressão enunciada - que, no teatro raciniano, ao mesmo tempo em que desenrola os fios da trama, conduz a um destino catastrófico e purificador.

Outro dado diferencial que podemos demarcar na obra de Racine em relação à de Eurípides é o surgimento de Arícia, a noiva de Hipólito. Autran Dourado, ao falar sobre essa diferença que marca as duas obras, afirma que Racine cria uma noiva para o casto Hipólito “para evitar a forte sugestão de homossexualismo do herói grego” [...], uma vez que o dramaturgo francês “escrevia para a corte de Luís XIV, que o protegia, hipocritamente moralista” (DOURADO, 1992, p. 6). Tal liberdade que, segundo Dourado, Racine toma na releitura do mito é, também, retomada por ele mesmo, o autor brasileiro, na tessitura de Os Sinos da Agonia ao dividir a figura de Hipólito em duas: Gaspar e Januário - como se verá na sequência deste trabalho.

Barthes (1987, p. 113) considera Arícia como “o homólogo de Hipólito”. Assim como em Eurípedes, o Hipólito raciniano detém o amor pela castidade, odeia a carne e, por isso mesmo, foge do Eros Imediato confessado pela esposa de seu pai. Arícia é, para Hipólito, a figura que contrasta com a de Fedra, pois retrata a pureza almejada pelo herói e, por isso, é nela que ele encontra a efetivação de sua vocação à castidade.

Racine, ainda em comparação com o dramaturgo grego, alterna a ocorrência das mortes. Em Eurípedes, Fedra suicida-se e acusa o enteado de desonra; por outro lado, preserva os ideais de virtude do herói trágico (nesse caso, a castidade), tendo a honra salva pela intervenção da deusa Ártemis. Em Racine, Fedra suicida-se no momento em que sabe da morte do enteado e, em agonia, revela a verdade a Teseu, confessando a própria culpa e preservando a honra de Hipólito.

Aqui, em Fedra, vemos presente o surgimento da ideia de consciência. No momento da morte, a protagonista mesma recupera a honra de Hipólito, numa atitude de reparação do mal causado por seus próprios atos. Atribuindo essa atitude a Fedra, Racine também resgata a necessidade de retorno ao equilíbrio, muito presente nas tragédias gregas. Em Fedra, os sentimentos de paixão doentia e vingança são colocados em contraposição aos de culpa, remorso e remissão, fortemente marcados pelos ideais cristãos da época em que a obra raciniana está inserida.

As considerações acima nos permitem concluir que a obra do dramaturgo francês encontra-se em posição intermediária entre o clássico e o moderno. Alvo das várias tentativas de análise crítico-literárias realizadas na França nos últimos anos, a atualidade da obra de Racine é bastante focalizada, sendo ele considerado, de acordo com Barthes, um dos únicos escritores que conseguiu fazer convergir para si todas as linguagens novas do século.

Paradoxalmente, o dramaturgo tem sua imagem fortemente ligada ao ideal de uma transparência clássica.

A transparência em Racine assume um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo em que parece nada apresentar de novo, já que é transparente uma releitura de Eurípedes, a peça abre um leque diversificado de sentidos. É essa ambígua transparência que faz de Racine uma unanimidade da literatura francesa, “uma espécie de grau zero do objeto crítico, um lugar vazio, mas eternamente aberto à significação” (BARTHES, 1987, p. 5).

Lembremos que Roland Barthes analisa a literatura como essencialmente marcada pelo sentido posto e sentido deposto. Em sua obra O prazer do texto, o sentido posto é o que ele chama de “texto legível”, que reduz a parte produtiva do leitor, o seu “dizer‟ sobre a obra; já o sentido deposto é o “texto escrevível‟, onde o autor, ao negligenciar informações importantes ao leitor, o recoloca no jogo do texto, devolvendo-lhe o seu “dizer‟ que culmina num processo de produtividade.

Analisando a obra de Racine pelo viés desses possíveis sentidos, Barthes chega à conclusão de que o dramaturgo francês é, sem dúvida, o maior escritor francês e que sua arte - não igualada - justifica que ele mantenha prestígio sob qualquer linguagem crítica. Em nosso trabalho o estudo da obra de Racine serviu-nos de contraponto quando analisamos a peça Fedra, confrontando-a, por um lado, com a tragédia clássica Hipólito e, por outro, com o romance contemporâneo Os sinos da agonia.


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Fonte:

Marcio da Silva Oliveira: “As influências do trágico nos romances contemporâneos Ópera dos Mortos e os Sinos da Agonia, de Autran Dourado”. (Dissertação apresentada à Universidade Estadual de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras, área de concentração: Estudos Literários Orientador: Prof. Dr. Aécio Flávio de Carvalho). Maringá – PR, 2011.

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