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Jean-Baptiste Racine
A tragédia Hipólito é recriada
modernamente por Jean-Baptiste Racine, dramaturgo francês do século XVIII que,
no processo de reelaboração do mito, retira a intervenção dos deuses e, com
isso, confere maior verossimilhança ao enredo. Racine, ao falar de sua obra,
afirma:
Eis aqui novamente uma tragédia cujo tema foi tirado de Eurípedes.
Apesar de eu haver seguido uma rota um pouco diferente da percorrida por aquele
autor para o desenrolar da ação, não me abstive de enriquecer minha peça com
tudo que me pareceu mais notável na dele. Ainda que eu lhe devesse apenas a
idéia da personagem de Fedra, poderia lhe dizer que lhe devo o que talvez eu
tenha posto de mais razoável no teatro. (RACINE apud EURÍPEDES, 1991, p.
86)
Racine dota a sua Fedra de mais
tensão psicológica, pois, segundo ele, na peça, a protagonista assume todas as
características necessárias para a conformação aos pressupostos aristotélicos
do herói trágico e à demonstração do processo catártico. No prefácio de sua versão,
afirma que “Fedra não é nem totalmente culpada, nem totalmente inocente. Ela se
envolveu pela cólera dos deuses, em uma paixão ilegítima, de que ela é a
primeira a horrorizar-se” (RACINE apud EURÍPEDES, 1991, p.86).
Roland Barthes, crítico francês,
aponta no conjunto da obra raciniana dois tipos de Amor: “o primeiro nasce
entre os amantes de uma comunhão que vem de longa data, eles foram criados
juntos, amam-se [...] o outro Amor, ao contrário, é o amor imediato, nasce bruscamente”
(BARTHES, 1987, p. 14). Fedra é acometida por esse segundo amor que aparece de
forma abrasadora e torna-se absoluto. É ele que direciona suas ações durante
toda a narrativa e marca, em Racine, a tênue linha que separa o amor do ódio.
Denominado por Barthes de Eros imediato, esse amor torna-se destrutivo e o
herói é nele aprisionado e inevitavelmente conduzido a um desfecho trágico.
Com Fedra, Racine alcança,
segundo muitos críticos de sua obra e, dentre eles, Barthes, a culminância do
realismo psicológico e da análise da mulher. Centrando toda a ação em Fedra,
personagem densa, ele a mostra como uma figura de fundo clássico euripidiano e,
ao mesmo tempo, a torna complexa pelos entrechoques com a consciência cristã,
muito influente no processo de sua formação pessoal. A sabedoria de Racine
reside, dessa forma, na decomposição psicológica do mito de Fedra, dotando-a de
uma dimensão mais tipicamente humana, como veremos mais adiante.
Um exemplo muito claro de que a
Fedra construída por Racine é marcada pela complexidade de seus conflitos
íntimos são revelações que são dadas ao leitor por meio de diálogos com a ama,
pois, nos entrechos da fala, a protagonista revela oscilação entre o amor que
sente por Hipólito e o arrependimento por tramar uma vingança pelo amor não correspondido.
Em contraponto com Eurípedes, Racine coloca Fedra em primeiro plano e, “ao escolher
para sua tragédia o título de Fedra e não de Hipólito, Racine já revelou o
propósito de aprofundar-se na psicologia da heroína, que passa
indiscutivelmente ao primeiro plano” (MAGALDI, 1989, p. 21).
Barthes considera Fedra a mais
profunda das tragédias criadas pelo dramaturgo francês. Segundo ele, Racine
constrói sua peça fundamentando-se na dicotomia silêncio/palavra e essa dicotomia
é a responsável pela sólida tessitura da trama. “O risco trágico é aqui muito
menos o sentido da palavra que seu aparecimento, muito menos o amor de Fedra
que sua confissão” (BARTHES, 1987, p. 111). A esposa de Teseu é a responsável pela
demarcação dos episódios mais importantes da trama, pois seu diálogo com as personagens,
ao mesmo tempo, determina os contornos dos fatos e delineia a iminência de um desfecho
trágico. As confissões de Fedra desenham os destinos dos personagens. Enquanto ela
está em silêncio, sua posição é intermediária entre a vida e a morte. A
palavra, nesse caso, é o que resolve a situação de impotência, tirando-a de sua
imobilidade e dando movimento à trama.
Em Fedra Racine destaca o poder
da palavra, aquilo que a torna tão terrível, e o leva ao teatro. A palavra, na
peça, é irreversível, não pode ser retomada. Uma vez liberta, torna-se definitiva.
A quebra do silêncio da protagonista é o que determina as três grandes rupturas
existentes. “Essas três rupturas têm uma gravidade crescente; de uma a outra
Fedra se aproxima de um estado sempre mais puro da palavra” (BARTHES, 1987, p.
111).
A primeira confissão de Fedra
dada à ama Enone acontece no âmbito narcisístico, uma espécie de desabafo na
tentativa de tirar dos próprios ombros o fardo pesado do amor avassalador pelo
enteado e também um pedido de ajuda diante do sofrimento insuportável. A segunda
confissão é marcada pela busca do amor de Hipólito. Confessando-se ao amado, Fedra
liga-se a ele definitivamente e debruça-se na esperança de possuir seu amor.
Por fim, a confissão da inocência de Hipólito a Teseu marca o final do processo
purificador da palavra destacado por Barthes. Trata-se do momento catártico do
drama, onde, ao recuperar a honra do herói, Fedra fecha o ciclo do enredo
trágico. Essa terceira confissão é que demarca a distinção entre a peça de
Racine e a de Eurípedes, visto que, para o grego, a ruptura final da trama se
dá mediante a intervenção divina.
Por meio das confissões de Fedra
presenciamos a definição de herói trágico em Racine: trata-se do ser
aprisionado, aquele que não pode sair para a ação sem que isso acarrete sua
própria morte, ou seja: é a libertação/liberação da palavra - a expressão
enunciada - que, no teatro raciniano, ao mesmo tempo em que desenrola os fios
da trama, conduz a um destino catastrófico e purificador.
Outro dado diferencial que
podemos demarcar na obra de Racine em relação à de Eurípides é o surgimento de
Arícia, a noiva de Hipólito. Autran Dourado, ao falar sobre essa diferença que
marca as duas obras, afirma que Racine cria uma noiva para o casto Hipólito “para
evitar a forte sugestão de homossexualismo do herói grego” [...], uma vez que o
dramaturgo francês “escrevia para a corte de Luís XIV, que o protegia,
hipocritamente moralista” (DOURADO, 1992, p. 6). Tal liberdade que, segundo
Dourado, Racine toma na releitura do mito é, também, retomada por ele mesmo, o
autor brasileiro, na tessitura de Os Sinos da Agonia ao dividir a figura de
Hipólito em duas: Gaspar e Januário - como se verá na sequência deste trabalho.
Barthes (1987, p. 113) considera
Arícia como “o homólogo de Hipólito”. Assim como em Eurípedes, o Hipólito
raciniano detém o amor pela castidade, odeia a carne e, por isso mesmo, foge do
Eros Imediato confessado pela esposa de seu pai. Arícia é, para Hipólito, a figura
que contrasta com a de Fedra, pois retrata a pureza almejada pelo herói e, por
isso, é nela que ele encontra a efetivação de sua vocação à castidade.
Racine, ainda em comparação com o
dramaturgo grego, alterna a ocorrência das mortes. Em Eurípedes, Fedra
suicida-se e acusa o enteado de desonra; por outro lado, preserva os ideais de
virtude do herói trágico (nesse caso, a castidade), tendo a honra salva pela intervenção
da deusa Ártemis. Em Racine, Fedra suicida-se no momento em que sabe da morte
do enteado e, em agonia, revela a verdade a Teseu, confessando a própria culpa
e preservando a honra de Hipólito.
Aqui, em Fedra, vemos presente o
surgimento da ideia de consciência. No momento da morte, a protagonista mesma
recupera a honra de Hipólito, numa atitude de reparação do mal causado por seus
próprios atos. Atribuindo essa atitude a Fedra, Racine também resgata a necessidade
de retorno ao equilíbrio, muito presente nas tragédias gregas. Em Fedra, os sentimentos
de paixão doentia e vingança são colocados em contraposição aos de culpa, remorso
e remissão, fortemente marcados pelos ideais cristãos da época em que a obra raciniana
está inserida.
As considerações acima nos
permitem concluir que a obra do dramaturgo francês encontra-se em posição
intermediária entre o clássico e o moderno. Alvo das várias tentativas de
análise crítico-literárias realizadas na França nos últimos anos, a atualidade
da obra de Racine é bastante focalizada, sendo ele considerado, de acordo com
Barthes, um dos únicos escritores que conseguiu fazer convergir para si todas
as linguagens novas do século.
Paradoxalmente, o dramaturgo tem
sua imagem fortemente ligada ao ideal de uma transparência clássica.
A transparência em Racine assume
um caráter ambíguo, pois ao mesmo tempo em que parece nada apresentar de novo,
já que é transparente uma releitura de Eurípedes, a peça abre um leque
diversificado de sentidos. É essa ambígua transparência que faz de Racine uma unanimidade
da literatura francesa, “uma espécie de grau zero do objeto crítico, um lugar vazio,
mas eternamente aberto à significação” (BARTHES, 1987, p. 5).
Lembremos que Roland Barthes
analisa a literatura como essencialmente marcada pelo sentido posto e sentido
deposto. Em sua obra O prazer do texto, o sentido posto é o que ele chama de “texto
legível”, que reduz a parte produtiva do leitor, o seu “dizer‟ sobre a obra; já
o sentido deposto é o “texto escrevível‟, onde o autor, ao negligenciar
informações importantes ao leitor, o recoloca no jogo do texto, devolvendo-lhe
o seu “dizer‟ que culmina num processo de produtividade.
Analisando a obra de Racine pelo
viés desses possíveis sentidos, Barthes chega à conclusão de que o dramaturgo francês
é, sem dúvida, o maior escritor francês e que sua arte - não igualada -
justifica que ele mantenha prestígio sob qualquer linguagem crítica. Em nosso trabalho
o estudo da obra de Racine serviu-nos de contraponto quando analisamos a peça Fedra,
confrontando-a, por um lado, com a tragédia clássica Hipólito e, por outro, com
o romance contemporâneo Os sinos da agonia.
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Fonte:
Fonte:
Marcio da Silva Oliveira: “As
influências do trágico nos romances contemporâneos Ópera dos Mortos e os Sinos
da Agonia, de Autran Dourado”. (Dissertação apresentada à Universidade Estadual
de Maringá, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Letras, área de concentração: Estudos Literários Orientador: Prof. Dr. Aécio
Flávio de Carvalho). Maringá – PR, 2011.
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