14/08/2014

Santa Catarina: a ilha, de Virgílio Várzea

 Santa Catarina:  a ilha, de Virgílio Várzea gratis em pdf
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Santa Catarina Antiga: os habitantes

O povo catarinense, conforme se viu, descende em sua quase a totalidade de ilhéus açorianos e madeirenses, principalmente dos primeiros, de quem herdou o caráter humilde e bom, as excelentes qualidades morais, a índole trabalhadora e paciente, de uma rara tenacidade, afazendo-se facilmente às dificuldades, às privações e agruras do meio, conformando-se com tudo, pacífica e resignadamente.

Acostumado desde séculos à luta com o solo onde se desenvolveu, a princípio sobressaltado e em terror pelas perspectivas dantescas que de repente se lhe deparavam, em um cenário que, como o de uma mágica colossal, mudava às vezes subitamente, soterrando em horas montanhas e povoações, ou elevando vales e planos, sob as ondas de chamas dos terremotos e explosões imensas, como se deu em Porto Martins e Praia da Vitória (Ilha Terceira) em maio de 1614, abril de 1761, junho de 1800, janeiro de 1801 e junho de 1841, o último há quase sessenta anos — o açoriano ganhou uma têmpera heroica de lutador, uma impassibilidade diante do perigo e uma afoiteza para encará-lo e arrostá-lo que poucos povos possuem.

Como a Terceira, as outras ilhas dos Açores, com as suas aldeias e cidades têm sido igualmente, em várias épocas, vitimadas pelo fogo interior que as gerou, e que seguidamente se manifesta ainda em pequenos tremores de terra e maremotos assustadores, como o de 1 de junho de 1867 na Serreta, precedido cinco meses de medonhos abalos e detonações, e que durou muitos dias, fervendo o mar em cachões de espuma e sacudindo ao ar colunas d'água gigantescas.

Ora, foi justamente, e em maior parte, com colonos desse arquipélago que Santa Catarina se povoou, especialmente com gente da Terceira, São Jorge, São Miguel e Pico, a última destas ilhas a mais ígnea de todas, pois tem em si o vulcão mais considerável do grupo, célebre pelas passadas erupções e pelo penacho perenal de lava, que é, à noite, para os mareantes que sulcam essas paragens, como um estranho e altíssimo farol a iluminar o oceano.

Daí o caráter tenaz e temerário, por vezes, do catarinense, sobretudo na sua grande aptidão para a vida do mar, que é ainda uma herança do povo açoriano e de toda a raça portuguesa, que foi e é essencialmente marinheira, embora Portugal conte hoje uma pequeníssima marinha.

Do açoriano recebeu também o barriga-verde a estrutura física musculosa e ossuda, admiravelmente resistente às intempéries e doenças, posto que um tanto modificada pelo clima tropical, que dá ao habitante dos campos e planícies litorais da Ilha e do continente (principalmente nos terrenos baixos e alagados, onde a intermitente é endêmica) um aspecto destingido e pálido, agravado frequentemente pelas moléstias hepáticas.

Naturalmente inteligente, como seus antepassados, de cujo seio têm saído para Portugal homens eminentes, quer na política, quer nas ciências e letras, como Hintze Ribeiro, Manoel de Arriaga, Antero de Quental (um dos maiores pensadores e poetas portugueses deste tempo) e Teófilo Braga — o catarinense é de uma certa vivacidade mental, pouco criadora talvez, mas original e brilhante por vezes. De uma doce tendência poética, devida ao seu temperamento impressionista e amoroso, comum de resto a todo o povo brasileiro, o roceiro, como o marítimo catarinense, tem uma alma cantadeira. Alegre e de certo modo feliz, embora em geral na indigência, o canto aflora-lhe espontâneo aos lábios, gerado não só do velho atavismo céltico que vagamente lhe gira nas veias, como dos encantos desta nossa natureza. Desde manhã até a noite, pode dizer-se, ele vive a cantar, quer seja inverno ou verão, a frente do carro carregado de lenha, capinando ou semeando nas planícies e morros, fazendo coivaras, abrindo picadas, derrubando madeira para construir a casa ou o engenho, escavando um tronco para uma canoa ou um cocho, mudando ou conduzindo o gado ao potreiro, domando o cavalo xucro, laçando o boi bravio, tecendo ou deitando as redes, junto ao portal da rua, ou sobre a borda da canoa, no meio do mar revolto, sob a fúria do pampeiro. E é assim que embala a sua vida, no rude trato das roças e no lidar arriscado das redes.

Nisto, como no falar constante que o anima, particularmente na vida das praias, o barriga-verde se parece com os algarvios, de quem igualmente tem o sangue, pois os açorianos provêm em parte deles, que colonizaram também as suas ilhas. E assenta perfeitamente nos habitantes das costas catarinenses o que a respeito do caráter do algarvio diz Oliveira Martins, à pag. 42, quarta edição, da História de Portugal: "No Algarve não há silêncio e impassibilidade: há o constante movimento, o falar, o cantar de uma população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados nos seus navios de cabotagem, ora ocupados nos seus campos que são jardins”.

É justamente o que se dá em Santa Catarina, onde o povo da zona litoral, com raras exceções, é constitucionalmente marítimo.

A mulher catarinense, pequena e delgada nas cidades, franzina e anêmica, é, entretanto, no campo e nas praias da terra fume mais alta e espadaúda, avantajando-se totalmente ao homem no colorido das faces e no aspecto de plena saúde que revela, isto coroado por linhas estéticas adoráveis, por uma pele veludosa, delicada e límpida, se bem que em geral trigueira. Muito viva como o homem, é ainda mais alegre do que ele, e tem o falar "cantado", que lhe ficou na laringe como uma doce e saudosa sobrevivência de origem. Matuta e simples, de uma graça toda ingênua, atrai à primeira vista, pelos olhos luminosos e negros, pelo andar gracioso e faceiro.

O barriga-verde, pelo seu temperamento e feição psicológica, é muito sociável e dado a festas e divertimentos, sendo um desses tipos de povos que raramente experimentam bisonharia ou tristeza. A tal respeito é eloquente o que diz Saint-Hilaire, falando dos matutos de Itapocorói e outros pontos, na viagem que fez pela costa de São Francisco ao Desterro. "À medida que nós avançávamos, diz o ilustre viajante francês, os habitantes de todos os sítios corriam à porta para nos verem passar. As mulheres não só não fugiam, como respondiam com polidez, e sorrindo, às nossas saudações..." (Voyage dans l'intérieur du Brésil, pág. 305, vol. II.)

Paulo de Brito, que habitou alguns anos, e por duas vezes, Santa Catarina, exprime-se do seguinte modo sobre o caráter do povo, às págs. 73-74 da sua Memória Política: "...São muito inclinados (os habitantes) a todos os atos da nossa religião, tanto públicos como particulares, às festividades de igreja, e às procissões, e principalmente às festas populares, e à do Espírito Santo, o que tudo vi fazer em Santa Catarina não só com decência, mas até com grandeza. Igualmente se fazem ali com suntuosidade mui superior à riqueza e à civilização do país os batizados, os casamentos... São inclinados à música, à cantoria e às danças. As mulheres, de maneiras dóceis e meigas, são inclinadas aos divertimentos; sabem cantar, tocar algum instrumento de corda e dançar, e não se observa nelas aquela bisonhice que se encontra nas mulheres de outras capitanias do Brasil".

E mais adiante acrescenta em uma nota: "Quando em setembro de 1797 estive pela primeira vez na Ilha de Santa Catarina, assisti a uma função que fez o governador que então era daquela Ilha, João Alberto de Miranda Ribeiro, em obséquio ao vice-almirante Antônio Januário do Vale, general da esquadra que naquele ano veio para o Brasil, e então se achava ancorado no porto da sobredita Ilha. Em um baile que também deu o dito governador pelo mesmo motivo, vi uma brilhante companhia de senhoras, de homens, das famílias mais distintas do país, e uma numerosa orquestra, em que havia e se tocaram todos os instrumentos de sopro e de cordas, com harmonia e bom gosto. Cantaram várias senhoras e dançaram minuetes, contradanças e valsas, tudo segundo os usos da Europa. Fiquei admirado de encontrar tudo isto em uma terra tão pequena do Brasil..."

Na população catarinense (a não ser nas colônias, com o alemão ou o italiano) não há quase cruzamento, sendo raro encontrar, entre ela, o tipo indígena do norte do Brasil ou o traço fisiológico do negro, que ali não prevaleceu senão insignificantemente, em pequeno número de mestiços, porque o tráfico do africano nessas plagas apareceu tardiamente, logo reprimido pelas nossas leis, e mais pelos ingleses, que de acordo com o nosso governo, perseguiam os navios negreiros até às nossas costas, aprisionando tripulações e carregamentos no próprio porto do Desterro, como várias vezes se deu. De sorte que, pode afirmar-se, o povo catarinense é essencialmente ariano, com particularidade nos centros alemães ou italianos, como Joinville, Blumenau, Brusque, Nova Trento, Orleans e Nova Veneza, cidades e vilas que foram outrora colônias, e cujas populações hão de ser, no futuro, o fator de um novo tipo brasileiro interessante, superior e perfeito...


Mas a característica principal do povo catarinense e a que o assinala mais profundamente porque é constitucional, conforme dissemos acima, e gerada por forças atávicas e étnicas altamente favorecidas pelo meio, é a sua extraordinária aptidão para a vida do mar, aptidão a cujo estudo consagraremos, na parte segunda desta obra, todo um capítulo que se denominará Gênio Marítimo Catarinense.

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