Para baixar este livro gratuitamente em formato PDF, acessar o
site do “Projeto Livro Livre”: http://www.projetolivrolivre.com/
(Download)
↓
(Download)
↓
Os livros estão em ordem alfabética: AUTOR/TÍTULO (coluna à
esquerda) e TÍTULO/AUTOR (coluna à direita).
Santa Catarina Antiga: os
habitantes
O povo catarinense, conforme se
viu, descende em sua quase a totalidade de ilhéus açorianos e madeirenses,
principalmente dos primeiros, de quem herdou o caráter humilde e bom, as
excelentes qualidades morais, a índole trabalhadora e paciente, de uma rara
tenacidade, afazendo-se facilmente às dificuldades, às privações e agruras do
meio, conformando-se com tudo, pacífica e resignadamente.
Acostumado desde séculos à luta
com o solo onde se desenvolveu, a princípio sobressaltado e em terror pelas
perspectivas dantescas que de repente se lhe deparavam, em um cenário que, como
o de uma mágica colossal, mudava às vezes subitamente, soterrando em horas
montanhas e povoações, ou elevando vales e planos, sob as ondas de chamas dos
terremotos e explosões imensas, como se deu em Porto Martins e Praia da Vitória
(Ilha Terceira) em maio de 1614, abril de 1761, junho de 1800, janeiro de 1801
e junho de 1841, o último há quase sessenta anos — o
açoriano ganhou uma têmpera heroica de lutador, uma impassibilidade diante do perigo e uma afoiteza
para encará-lo e arrostá-lo que poucos povos possuem.
Como a Terceira, as outras ilhas
dos Açores, com as suas aldeias e cidades têm sido igualmente, em várias
épocas, vitimadas pelo fogo interior que as gerou, e que seguidamente se
manifesta ainda em pequenos tremores de terra e maremotos assustadores, como o
de 1 de junho de 1867 na Serreta, precedido cinco meses
de medonhos abalos e detonações, e que durou muitos dias, fervendo o mar em
cachões de espuma e sacudindo ao ar colunas d'água gigantescas.
Ora, foi justamente, e em maior
parte, com colonos desse arquipélago que Santa Catarina se povoou,
especialmente com gente da Terceira, São Jorge, São Miguel e Pico, a última
destas ilhas a mais ígnea de todas, pois tem em si o vulcão mais considerável
do grupo, célebre pelas passadas erupções e pelo penacho perenal de lava, que
é, à noite, para os mareantes que sulcam essas paragens, como um estranho e
altíssimo farol a iluminar o oceano.
Daí o caráter tenaz e temerário,
por vezes, do catarinense, sobretudo na sua grande aptidão para a vida do mar,
que é ainda uma herança do povo açoriano e de toda a raça portuguesa, que foi e
é essencialmente marinheira, embora Portugal conte hoje uma pequeníssima
marinha.
Do açoriano recebeu também o
barriga-verde a estrutura física musculosa e ossuda,
admiravelmente resistente às intempéries e doenças, posto que um tanto
modificada pelo clima tropical, que dá ao habitante dos campos e planícies
litorais da Ilha e do continente (principalmente nos terrenos baixos e
alagados, onde a intermitente é endêmica) um aspecto destingido e pálido,
agravado frequentemente pelas moléstias hepáticas.
Naturalmente inteligente, como
seus antepassados, de cujo seio têm saído para Portugal homens eminentes, quer
na política, quer nas ciências e letras, como Hintze Ribeiro, Manoel de
Arriaga, Antero de Quental (um dos maiores pensadores e poetas portugueses
deste tempo) e Teófilo Braga — o catarinense é de uma certa vivacidade
mental, pouco
criadora talvez, mas original e brilhante por vezes. De uma doce tendência
poética, devida ao seu temperamento impressionista e amoroso, comum de resto a
todo o povo brasileiro, o roceiro, como o marítimo catarinense, tem uma alma
cantadeira. Alegre e de certo modo feliz, embora em geral na indigência, o
canto aflora-lhe espontâneo aos lábios, gerado não só do velho atavismo céltico
que vagamente lhe gira nas veias, como dos encantos desta nossa natureza. Desde
manhã até a noite, pode dizer-se, ele vive a cantar, quer seja inverno ou
verão, a frente do carro carregado de lenha, capinando ou semeando nas
planícies e morros, fazendo coivaras, abrindo picadas, derrubando madeira para
construir a casa ou o engenho, escavando um tronco para uma canoa ou um cocho,
mudando ou conduzindo o gado ao potreiro, domando o cavalo xucro, laçando o boi
bravio, tecendo ou deitando as redes, junto ao portal da rua, ou sobre a borda
da canoa, no meio do mar revolto, sob a fúria do pampeiro. E é assim que embala
a sua vida, no rude trato das roças e no lidar arriscado das redes.
Nisto, como no falar constante que
o anima, particularmente na vida das praias, o barriga-verde se parece com os
algarvios, de quem igualmente tem o sangue, pois os açorianos provêm em parte
deles, que colonizaram também as suas ilhas. E assenta perfeitamente nos
habitantes das costas catarinenses o que a respeito do caráter do algarvio diz
Oliveira Martins, à pag. 42, quarta edição, da História de Portugal:
"No Algarve não há silêncio e impassibilidade: há o constante movimento, o
falar, o cantar de uma população como a dos gregos das ilhas, ora embarcados
nos seus navios de cabotagem, ora ocupados nos seus campos que são jardins”.
É justamente o que se dá em Santa
Catarina, onde o povo da zona litoral, com raras exceções, é constitucionalmente
marítimo.
A mulher catarinense, pequena e
delgada nas cidades, franzina e anêmica, é, entretanto, no campo e nas praias
da terra fume mais alta e espadaúda, avantajando-se totalmente ao homem no
colorido das faces e no aspecto de plena saúde que revela, isto coroado por
linhas estéticas adoráveis, por uma pele veludosa, delicada e límpida, se bem
que em geral trigueira. Muito viva como o homem, é ainda
mais alegre do que ele, e tem o falar "cantado", que lhe ficou na
laringe como uma doce e saudosa sobrevivência de origem. Matuta e simples, de
uma graça toda ingênua, atrai à primeira vista, pelos olhos luminosos e negros,
pelo andar gracioso e faceiro.
O barriga-verde, pelo seu
temperamento e feição psicológica, é muito sociável e dado a festas e divertimentos,
sendo um desses tipos de povos que raramente experimentam bisonharia ou
tristeza. A tal respeito é eloquente o que diz Saint-Hilaire, falando dos
matutos de Itapocorói e outros pontos, na viagem que fez pela costa de São
Francisco ao Desterro. "À medida que nós avançávamos, diz o ilustre
viajante francês, os habitantes de todos os sítios corriam à porta para nos
verem passar. As mulheres não só não fugiam, como respondiam com polidez, e
sorrindo, às nossas saudações..." (Voyage dans l'intérieur du Brésil,
pág. 305, vol. II.)
Paulo de Brito, que habitou alguns
anos, e por duas vezes, Santa Catarina, exprime-se do seguinte modo sobre o
caráter do povo, às págs. 73-74 da sua Memória Política: "...São
muito inclinados (os habitantes) a todos os atos da nossa religião, tanto
públicos como particulares, às festividades de igreja, e às procissões, e
principalmente às festas populares, e à do Espírito Santo, o que tudo vi fazer
em Santa Catarina não só com decência, mas até com grandeza. Igualmente se fazem
ali com suntuosidade mui superior à riqueza e à civilização do país os
batizados, os casamentos... São inclinados à música, à cantoria e às danças. As
mulheres, de maneiras dóceis e meigas, são inclinadas aos divertimentos; sabem
cantar, tocar algum instrumento de corda e dançar, e não se observa nelas
aquela bisonhice que se encontra nas mulheres de outras capitanias do
Brasil".
E mais adiante acrescenta em uma
nota: "Quando em setembro de 1797 estive pela primeira vez na Ilha de
Santa Catarina, assisti a uma função que fez o governador que então era daquela
Ilha, João Alberto de Miranda Ribeiro, em obséquio ao vice-almirante Antônio
Januário do Vale, general da esquadra que naquele ano veio para o Brasil, e
então se achava ancorado no porto da sobredita Ilha. Em um baile que também deu
o dito governador pelo mesmo motivo, vi uma brilhante companhia de senhoras, de
homens, das famílias mais distintas do país, e uma numerosa orquestra, em que
havia e se tocaram todos os instrumentos de sopro e de cordas, com harmonia e
bom gosto. Cantaram várias senhoras e dançaram minuetes, contradanças e valsas,
tudo segundo os usos da Europa. Fiquei admirado de encontrar tudo isto em uma
terra tão pequena do Brasil..."
Na população catarinense (a não
ser nas colônias, com o alemão ou o italiano) não há quase cruzamento, sendo
raro encontrar, entre ela, o tipo indígena do norte do Brasil ou o traço
fisiológico do negro, que ali não prevaleceu senão insignificantemente, em
pequeno número de mestiços, porque o tráfico do africano nessas plagas apareceu
tardiamente, logo reprimido pelas nossas leis, e mais pelos ingleses, que de
acordo com o nosso governo, perseguiam os navios negreiros até às nossas
costas, aprisionando tripulações e carregamentos no próprio porto do Desterro,
como várias vezes se deu. De sorte que, pode
afirmar-se, o povo catarinense é essencialmente ariano, com particularidade nos
centros alemães ou italianos, como Joinville, Blumenau, Brusque, Nova Trento,
Orleans e Nova Veneza, cidades e vilas que foram outrora colônias, e cujas
populações hão de ser, no futuro, o fator de um novo tipo brasileiro
interessante, superior e perfeito...
Mas a característica principal do
povo catarinense e a que o assinala mais profundamente porque é constitucional,
conforme dissemos acima, e gerada por forças atávicas e étnicas altamente
favorecidas pelo meio, é a sua extraordinária aptidão para a vida do mar,
aptidão a cujo estudo consagraremos, na parte segunda desta obra, todo um
capítulo que se denominará Gênio Marítimo Catarinense.
Nenhum comentário:
Postar um comentário