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O
fulcro da Novela Camiliana
Um dos aspectos que singulariza Camilo
Castelo Branco é o cabedal da sua obra. Além de ter publicado abundantemente,
ele atuou em diversos gêneros de escrita. Foi ao mesmo tempo poeta, teatrólogo,
romancista, crítico, editor e tradutor. A sua extensa produção supera uma
centena de títulos. Desde os primeiros versos – Pundonores Desagravados (1845) – até Nas Trevas (1890), uma das suas últimas
publicações, nunca parou de escrever. À guisa de ilustração,
entre os anos de 1863 e 1865 Camilo publica doze romances, oito volumes de memórias,
críticas e narrativas, dois volumes de poesia e uma comédia. Paulo Franchetti
explica que
Camilo
foi o primeiro escritor português a viver apenas do oficio. Numa sociedade que
não dispunha de um número expressivo de leitores, nem tempo em que os direitos
autorais estavam começando a ser reconhecidos (a lei dos direitos de autor,
proposta por Garrett, é de 1851), Camilo teve de escrever muito (2003, p. 09).
Apesar da acentuada variedade e extensão, o
legado camiliano tem sido sistematizado sem que esses traços sejam efetivamente
levados em conta. Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, em sua História da Literatura Portuguesa, traçam
um quadro evolutivo em que a ficção camiliana aparece dividia em três estágios.
O primeiro, que vigorou até meados de 1850, seria marcado por uma obra ainda
pouco distinta em relação às tendências de ficção em prosa vigentes em
Portugal. Nesse momento, Camilo teria escrito, sob a influência de Alexandre Herculano,
alguns folhetins de cunho histórico e moralista; dos escritores românticos
franceses, obras em que predominava o tom idealista; e dos pré-românticos
ingleses, o romance negro de aventuras e o melodrama.
O segundo estágio se dá a partir de meados de
1850, momento em que Camilo teria atingido a maturidade literária. Nesse período,
teriam sido fixadas as novelas passional e satírica. O romance Onde Está a Felicidade? (1856), considerado por muitos críticos como um
marco na prosa ficcional portuguesa, também é dessa época. O último estágio é singularizado,
segundo Lopes e Saraiva (1996), por uma evolução acentuada da ficção camiliana em direção ao Realismo/Naturalismo.
Essa fase seria assinalada pelas Novelas
do Minho (1875-77), por Eusébio Macário
(1879) e A Corja (1880).
Malgrado esse modelo de sistematização, o
mais corrente é dividir a ficção camiliana em apenas duas categorias basilares:
a novela passional e a novela satírica. António José Saraiva e Óscar Lopes,
embora tenham estabelecido as três fases anteriormente aludidas, demonstram
predileção pela divisão bipolar. Eles assinaram uma das mais conhecidas descrições
desse último modelo. De acordo com Franchetti (2003, p. 10)
Não erraremos muito se afirmarmos que a “novela
camiliana” é, no vocabulário crítico atual, um termo que recobre, na interpretação
canônica de António José Saraiva e Óscar Lopes, a produção do autor dividida em
duas linhas cristalizadas [...], que funcionam como pólos de tensão entre os quais
oscila o restante da sua obra romanesca.
Nas palavras desses críticos “[...] estas
duas tendências alternativas, que o novelista raro conseguiu resolver numa síntese,
ficando assim ao nível da oposição idealismo-materialismo, culminam,
respectivamente, em Amor de Perdição (1862),
e A Queda de um Anjo (1866)” (SARAIVA; LOPES, 1996, p. 783). A novela passional,
conforme essa descrição, é caracterizada pela preeminência do idealismo
amoroso, em que o sentimento homônimo é promovido à categoria do incomensurável,
assumindo o estatuto de religião, de maneira tal que as tentativas de consumação
do amor são acompanhadas pela lembrança do pecado, como se as mais profundas
relações afetivas entre homem e mulher nunca devessem sair do plano super-real
do sagrado, do inatingível, e a mulher amorosa tivesse necessariamente de ser vítima
angélica ou uma aniquiladora “mulher fatal” (1996, p. 784).
Demarcando esse gênero em termos menos idealísticos,
Massaud Moisés (1987, p. 89) assim o define:
[...] [envolve] sempre personagens de um
mundo de espectros, por assim dizer, tal clima carregado de obsessões, idéias
fixas, a conduzir para desenlaces trágicos ou dramáticos através de atos
extremistas baseados na paixão desenvolvida ao grau mais elevado. Criaturas
impulsionadas por uma espécie de fatalismo do sentimento, entregam-se ao amor,
que é paixão e não desejo de elevar-se pela contemplação do outro, - guiadas
por instintos, por imperiosas necessidades físicas. A exacerbação dos
sentimentos arrasta-as a negar qualquer força coercitiva, social ou moral, de
que sobrevêm; orientarem-se por códigos individualistas ou de base
exclusivamente sentimental. Está-se em pleno clima romântico, onde o ato mais
absurdo se explica pelas razões do coração.
Avessa ao idealismo passional, a novela satírica
desenharia um quadro social no qual a vida estaria dirigida pela ganância
pecuniária, pelos prazeres mais imediatos e vulgares, e pela ânsia de prestígio
e/ou ascensão social, em que “[...] o autor ergue de quando em quando um véu de
considerações moralistas” (1996, p. 785). Esse tipo de novela identificar-se-ia
com uma aproximação de Camilo com o Realismo/Naturalismo.
Como exposto no item 1.2, determinados
setores da crítica costumam lançar mão da biografia para compreender a produção
literária camiliana. É oportuno acrescentar que, além de ser adotada como índice exegético, a
vida de Camilo também serve de base para se justificar a divisão da sua obra em
duas categorias básicas. Alexandre Cabral (1961) sugere que a novela passional
originou-se a partir da apropriação do clima emocional da época, que teria sido
marcado por uma atmosfera saturada de paixões e lágrimas, de grandezas e misérias.
Conseqüentemente, as personagens mover-se-iam na ficção, tal como o seu
criador. A novela satírica, por sua vez, seria uma conseqüência do ressentimento
de Camilo com a sociedade. O autor do Dicionário
de Camilo Castelo Branco justifica a suposta inconformidade camiliana da
seguinte forma:
Pondo de lado os sofismas, a verdade é apenas
esta: as almas eleitas consideravam-se espoliadas na repartição dos benefícios
e honrarias da sociedade. Realmente, os gênios, os talentos, os indivíduos
inteligentes vegetavam, viam-se na subalterna e vexatória situação de
arrebanhar as migalhas que caíssem das mesas opulentas. Por isso, eles se
vingam dos nababos, ridicularizando-os na gazeta e no livro [...] (1961,
p.10-11).
Confrontando os argumentos de Cabral com a
trajetória de Camilo, é possível identificar uma contradição na explicação
biografista que o crítico oferece para a polarização passional/satírica. Como é
possível sustentar a tese do idealista ressentido, se Camilo não se singularizou
em relação ao caráter dos oportunistas e devassos que criou na sua ficção? Como
se sabe, o escritor de São Miguel de Ceide manteve relacionamentos
extraconjugais; envolveu-se em negociatas e raptos; mendigou títulos nobiliárquicos
comprados com dinheiro ou com influência de poderosos; mudou seguidamente de
posição e partido político, desdizendo o que prometera ou jurara. Sendo assim,
essa elucidação da polarização e os argumentos que lhes servem de base são
questionáveis. Essa forma de ler a ficção camiliana parece ser demasiadamente
simplificadora, pois impede uma investigação mais ampla que considere,
sobretudo, questões elementares dessa obra, tais como a análise do estilo notadamente
polifônico e dialógico do narrador camiliano, o qual se compraz em evidenciar que
a ficção é uma esfera situada nos termos da linguagem, no discurso. Enquanto
chave de leitura, esse pressuposto mostra-se inoperante para promover o contato
do público moderno e contemporâneo com a obra de Camilo.
Embora divida o legado do romancista em duas
tendências, a crítica considera a novela passional o ponto alto da produção
literária camiliana, o seu produto mais genuíno e bem acabado. Massaud Moisés
(1967) classifica-a como o fulcro dessa obra. Saraiva e Lopes (1996, p. 784)
defendem que “[...] a novela camiliana típica é [...] a novela dos grandes penitentes
do amor”. Jacinto do Prado Coelho (1946, p. 499), por sua vez, afirma: “[...]
dois amantes em lutas com uma sociedade injusta – eis, em síntese, a novela
camiliana. Os preconceitos, os ódios, as ambições tendem a separá-los; mas o
seu amor resiste a tudo isso”. Em razão disso, a novela satírica acaba sendo
vista como secundária e de menor importância estética.
Tem sido praxe imputar a Camilo, senão a
paternidade, pelo menos a responsabilidade pela difusão e a fixação da novela
passional. A respeito dessa questão, Fidelino de Figueiredo emite
entusiasticamente este juízo:
[Camilo] depurou o gênero sentimental, porque
eliminou tudo que lhe era estranho, divagações, peripécias, elementos cômicos.
Na história dos gêneros literários, o autor que cria é na maior parte dos casos
um depurador e um condensador; depura o gênero que lhe é estranho e condensa
nele tudo que legitimamente lhe pertence. O romance camiliano é a quinta essência
do lirismo passional. (1918, p. 283).
Concorre para essa inculcação, o inabalável
prestígio do romancista em questão como o escritor mais nomeado do Romantismo
português. Levando em consideração o emprego de determinados expedientes românticos
pela novela passional, em particular, a exarcebação amorosa-sentimental, tanto
o referido prestígio quanto essa imputação se enrobustecem num reforço mútuo.
Eduardo Lourenço aponta a vocação sentimental
do povo lustitano como uma das possíveis causas do florescimento passional no
texto camiliano. Il est assez étrange de penser que notre imaginaire de peuple à
vocation sentimentale, passionnée et passionnelle, depuis des siècles voué aux élans
et dérives de l’amour le plus « derramado », le plus flamboyant, ait eu besoin,
en plein XIXe siècle, d’être réinventé. Et toutefois c’est exactement cela que Camilo
signifie. […] Au tournant du siècle, au moment où la seconde révolution
industrielle arrive aux plages lusitaniennes, Camilo propose à ses concitoyens
un ailleurs convaincant, des
histoires d’amour et de mort, de sacrifices et de repentirs, de vengeance et de
remords, des histoires bien à nous […].(1985, p. 29, grifo do autor).
Embora acrescente um dado novo – a pretensa
vocação sentimental do povo português, passível de questionamento
(sublinhe-se), posto que se baseia numa visão estereotipada e desconsidera a
vigorosa tradição satítica lusitana, na qual o próprio Camilo se inclui – a
explicação de Eduardo Lourenço embasa-se no clima espiritual romântico para justificar os traços e determinantes da obra
em questão.
João Camilo dos Santos (1991) hesita em
aceitar o modo como a novela passional está cirscunscrita no âmbito da ficção
camiliana, bem como a sua descrição mais habitual. Ele alerta que o mote da
relação amorosa irrompe em Camilo sob a coerção dos poderes econômico e social.
[...] o amor não podia [aparecer-lhe] como
inseparável das outras relações sociais nem das formas de estruturação do poder
familiar e social, cujas bases econômicas eram flagrantemente evidentes e
poderososas. Ao «estudar » o amor, Camilo denuncia os mecanismos de
funcionamento das relações pessoais em sociedade; e explica a lógica a que
obedecem, a ordem a que têm de submeter-se às relações particularmente intensas
que são as relações amorosas. O matrimônio e o patrimônio confundem-se,
interferem constantemente um com o outro (1991, p. 63)19.
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Fonte:
Fonte:
Moizeis Sobreira de Sousa: “A ficção
camiliana: a escrita em cena”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da
Motta de Oliveira). São Paulo, 2009.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br
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