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O sério e o cômico em O
Que Fazem Mulheres
Como explicamos na
Introdução, O Que Fazem Mulheres (1858) é um romance de classificação controversa, sendo ora definido
pela crítica como passional, ora como satírico. A nosso ver, essa imprecisão decorre
do fato de o sério e o cômico ocuparem o mesmo espaço na economia do romance,
não havendo a preponderância de um ou de outro, como ocorre em Amor de
Perdição (no qual, apesar de haver momentos cômicos, impera o tom sério) e Coração,
Cabeça e Estômago (no qual, apesar de haver momentos sérios, impera o tom cômico). Talvez possamos considerar O Que Fazem
Mulheres uma síntese dessas duas tendências, o que o tornaria mais complexo
do que aparenta.
O romance
conta a história de Ludovina, moça bela, de procedência genealógica fidalga, porém
sem dote – “tu sabes que vivemos do ordenado de teu pai: temos podido manter a
decência e o luxo até dos teus caprichos de formosa; porém, nada mais podemos” (QFM,
p. 1245). Era cortejada por Ricardo de Sá, que a considerava uma mulher “abaixo
dos meus cálculos. Lisonjeia um amante, mas não pode satisfazer as complicadas necessidades dum marido” (QFM, p. 1249). Desmascarado
por Angélica, mãe da moça, Ricardo
resolve deixá-la; com isso, Ludovina, instada pelo pai, Melchior Pimenta, e convencida por sua mãe, resolve deixar-se casar com João
José Dias, um brasileiro de torna-viagem rico, porém velho, feio e
excessivamente gordo.
No decorrer da trama, João
José Dias – que acaba por virar Comendador, e depois barão de Celorico de Basto – começa a ter
acessos de ciúmes, até que encontra um charuto no quintal de sua casa, o que para
ele fica sendo a prova final do adultério, e tenta matar o homem que julgava
ser o amante de sua esposa. António de Almeida, no entanto, era amante de Angélica,
e depois descobrimos ser o verdadeiro pai de Ludovina. A moça, contudo, resolve assumir a culpa pela sua mãe, apesar de o brasileiro
ter descoberto a verdade, tendo enlouquecido de remorsos por julgar ter assassinado um homem injustamente.
Almeida, porém, não havia morrido, e, a pedido de Ludovina, abandona a sua mãe.
A moça cuida do marido até o seu restabelecimento, e depois resolve acompanhar
a sua mãe ao convento – para a opinião pública, no entanto, era Angélica que estava
acompanhando a filha adúltera. No capítulo final, denominado “Suplemento”, o
narrador heterodiegético encontra Marcos Leite, o amigo que lhe contara a
história. O rapaz conta como encontrou Ludovina no convento e se apaixonou por ela,
tendo sido ignorado nas suas investidas. No final, Marcos Leite fica indignado
pelo fato de a moça, após a morte de sua mãe, ter voltado aos “braços
asquerosos” do marido.
Nesse romance,
como apontou Cleonice Berardinelli, a presença do narrador é “avassaladora” (1994,
p. 234), uma vez que insere comentários sobre a diegese a todo o momento. A
história, aliás, só começa depois de dois prefácios e um “Capítulo Avulso. Para
ser colocado onde o leitor quiser”, que serão discutidos por nós no próximo capítulo,
exemplos de comicidade em meio a uma história de temática séria, sobre a infelicidade
causada por casamentos de interesse, apontados na ficção camiliana por Óscar
Lopes como “o conflito passional básico que se desenha à medida do avanço da burguesia
na sociedade portuguesa”: o “debate das heroínas amantes numa rede de relações que
as transforma em mercadoria” (1994, p. 46).
A história começa com Angélica
tentando convencer sua filha a se casar com o homem que seu pai lhe designara, o
brasileiro João José Dias. Nesse momento, Ludovina ainda está apaixonada por Ricardo de Sá, e
defende sua vontade de casar com um homem que ama, ainda que não tenha dinheiro:
“Mas se eu fosse feliz com o meu vestido de chita, e o homem do meu coração?” (QFM p. 1245). Sua mãe, no entanto,
apresenta uma explicação realista
da forma como se estrutura a sociedade, onde o que importa é a opinião pública,
para a qual a felicidade é ter dinheiro: “Isso é romance, menina. Nunca é feliz
com um vestido de chita a mulher que tem amigas com vestidos de seda. Hoje
reina a opinião pública, Ludovina, não é a consciência de cada um. O agente principal
do espírito duma mulher é a modista” (QFM,
p. 1245). A opinião de Melchior Pimenta, por sua vez, é semelhante à de sua
mulher:
“Esse homem
não será só teu marido, será um protetor de todos os teus, e fará a tua independência
numa sociedade onde a formosura se estima, como um meio de alcançar ‘fortuna’, e a ‘fortuna’ como um meio de se alcançar tudo”
(QFM, p. 1261).
O capítulo
em que se dá o casamento de Ludovina com João José Dias inicia-se com um comentário
cômico do narrador, no qual ele expõe uma longa discussão sobre a propriedade
do termo “lua-de-mel”: “Os irracionais têm uma lua; essa entende-se, sabe-se o que
é. Mas o aluarem-se, à força, os casados, é uma idéia ingrata à decência, feia
e desonesta” (QFM, p. 1264). E
prossegue, apontando que muitas “luas” são bem mais amargas do que o qualificativo
“de mel” sugeriria, desconstruindo a imagem poética do termo:
Se querem que haja por força uma lua para os que casam, façamos
umas
poucas
de luas:
Lua-de-mel;
Lua
de cicuta;
Lua
de láudano;
Lua
de tártaro emético;
Lua
de mostarda inglesa;
Lua de óleo de
rícino;
Lua
de fel da terra;
Lua
de salsaparrilha;
Lua
de raspa de veado;
Lua
de jalapa;
Luas tônicas,
luas antiflogísticas, luas irritantes, luas vomitas, luas drásticas, etc.
Convém, de
seguida, observar, que a lua não influi por igual nos dois noivos.
Cada um deve
ter a sua, nos casos excetuados de casamento por paixão recíproca.
Tal marido
é aluado em ovos moles, e sua mulher em jalapa.
Tal noiva saboreia-se
nos dulcíssimos favos da colméia lunar, e o homem enjoa um cozimento salobre de raspa de
veado, animal que muitas vezes lhe lembra, por
causa das virtudes medicinais, e outras causas. (QFM, p. 1264-1265).
A partir dessa passagem cômica,
o narrador trata de um tema sério, que é o casamento forçado, o qual, apesar de trazer dinheiro, é incapaz de
trazer felicidade. Por fim, ele ironicamente deixa que o narratário, seu
hipotético leitor, conclua o seu raciocínio: “Qual dessas luas influiria em João
José Dias, e qual em D. Ludovina da Glória? Eu não decido, porque sou
supinamente ignorante em astrologia judiciária. Conto os fatos, e deixo as duas
ao arbítrio do leitor.” (QFM, p. 1265). Sua opinião negativa sobre tal
tipo de casamento é mais tarde exposta, num comentário que, apesar de ter um tom
cômico, demonstra a perspectiva realista e até
mesmo cética, perante a vida:
Riquezas amontoadas
pelo acaso, pelo trabalho, pela economia, pelo latrocínio, pelo talismã do buril, pelo fornecimento dos açougues
humanos na América, essas riquezas, vejo-as, entendo-as, explico-as; porém,
mulheres como Ludovina, corpos e almas de tanta perfeição, criaturas que privam
com os anjos, assim
sacrificadas a um Baal repulsivo de sandice e gordura, isto faz-me materialista,
incrédulo, e ateu; ou remontado em assomos de espiritualismo, confesso a Providência, mas tão sublime, tão
ao longe das pequenezas deste ponto do mundo, que não cura de saber se o
zoupeiro João José casa ou
não casa com a silfídica Ludovina.
Não vou de
encontro às crenças de ninguém; Deus me livre. Todavia, raciocinemos, enquanto a razão, de si apoucada,
não contender com os dogmas indisputáveis da
fé. (QFM, p.
1332-1333).
Nesse trecho, encontramos uma
crítica à sociedade materialista, à busca do dinheiro a qualquer custo – até mesmo “pelo fornecimento dos
açougues humanos na América”, uma clara
referência ao tráfico de escravos –, que, como sabemos, é a causa desses casamentos, se podemos dizer, bizarros,
como o de Ludovina e João José Dias. Duvidando da ação da providência divina – que
por ser “tão sublime, tão ao longe das pequenezas deste ponto do mundo”, nada
irá fazer para mudar a ordem das coisas –, o narrador camiliano nos mostra o aporismo da realidade social.
Esse mesmo
tipo de crítica é feito através da trajetória da mãe de Ludovina, personagem
que melhor discutiremos no próximo capítulo, que, apesar de convencer sua filha
a realizar um casamento de interesse, tinha sido ela mesma vítima de tal
situação. Para contar a história de sua vida, o narrador afirma ter consultado
uma amiga sua de infância, que conta que Angélica, “filha segunda dum fidalgo
pobre do Minho”, fora forçada pelo pai a se casar com Melchior Pimenta, “que se dizia rico” (QFM, p.
1303), apesar de amar a outro homem e ter feito o que podia para impedir a realização do casamento: “a
indiscreta menina escreveu ao pai de António de Almeida, pedindo-lhe que a
pedisse ao pai para casar com seu filho. Que inocência! Escreveu ao marido que lhe
destinavam, confessando que não podia dar-lhe o coração”
(QFM, p. 1304). Como nada surtiu efeito, Angélica disse ao pai que “a
história de muitas mulheres
desgraçadas começa como a minha”, “e pôs a cabeça no altar do sacrifício” (QFM, p. 1304), sentença proferida pelo narrador
como forma de reforçar a sua crítica social.
Angélica, no
entanto, não desiste de Almeida, e toma-o como amante: “faço à prepotência de meu
pai o sacrifício da minha dignidade, e castigo um homem que me comprou” (QFM, p. 1304). Sua amiga conta que recebia
cartas dela, contendo “lágrimas, queixumes vagos contra a sua sorte, chagas de consciência que só a
morte podia cicatrizar” (QFM, p. 1304).
Mas não a condenava: “fiz o que faz, ou o que raras vezes faz uma amiga: consolei-a na queda, como a aconselhara à beira
do abismo. Disse-lhe que mandasse a consciência ao pai, e que ficasse ela com o
coração” (QFM, p. 1304-1305). E arremata, mais uma vez expressando a
distância que o olhar camiliano percebe entre o divino e a vida real: “Não lhe falei em Deus, nem na Virgem, porque no infortúnio
de Angélica, não havia que ver com coisas sobre-humanas” (QFM, p. 1305).
No final
do capítulo, antecipando a conclusão do romance, que traz Ludovina e sua mãe encerradas
no convento, após a sentença “D. Angélica está julgada, e punida”, seguida de reticências,
o narrador reproduz a parábola bíblica da mulher adúltera, na qual Jesus impede
que esta seja apedrejada, dizendo: “O que dentre vós está sem pecado seja o primeiro
a apedrejá-la” (QFM, p. 1306). Nessa passagem, o narrador camiliano critica
a hipocrisia de sua sociedade, que, ao contrário dos apedrejadores da parábola,
não reconhece os seus “pecados”, julgando e punindo Angélica, através da
injusta punição à sua filha, como se todos fossem puros. Tal sociedade, no entanto,
é a verdadeira criminosa por fazer do dinheiro seu motor principal, sendo
culpada ela mesma dos crimes que julga. Como Cleonice Berardinelli notou, “num
romance em que a tônica é o humor, calcado na ironia [...], esta é uma passagem séria” (1994, p. 231).
Também digna
de análise é a figura de João José Dias, uma representação do grotesco, uma “mistura
de trágico e cômico”, como assim definiu Maria Saraiva de Jesus (1995, p. 110).
Podemos rir do personagem, mas também sentimos pena dele: só não sentimos raiva,
uma vez que ele também é vítima das engrenagens dessa sociedade de aparências. Comecemos
pelo riso, despertado pela descrição de sua forma física grotesca, numa longa passagem
da qual destacaremos aqui alguns excertos, a fim de ilustrar esse momento de comicidade do romance:
Era de estatura
menos que meã, adiposa, sem proeminências angulares, essencialmente pançuda, porque
João José tinha uma série descendente de panças, desde a papeira cor-de-rosa até às buchas das canelas
ventrudas. Nas faldas duma testa
estreita, chata, e rugosa, como um élitro da concha dum cágado, luziam os olhos pequenos
[...]. As pálpebras, túmidas e pilosas como a casca da fava, enviesavam-se para dentro [...]. O nariz, sem
base, nem ossos, nem
cartilagens [...]: rompiam-lhe de entre os olhos as ventas já formadas, com a ponta arregaçada, e as asas
convexas, dilatando-se até às alturas
dos ossos malares, entupidos nas bochechas gordurentas. [...]
João José não tinha pescoço:
as espáduas ladeavam-lhe os bócios da garganta, alteando-se ao nível das orelhas escarlates, com bolbos
da mesma cor, e não sei que excrescências no lóbulo, simulando pingentes de
coral. [...] As pernas de João José eram dois cepos, postos em peanha a uma
esfera armilar. Tão curtas eram elas, e tão desmesurados os pés, que me não
seria dificultoso convencer-vos de que a natureza, em hora de travessura, fez
da porção de matéria, destinada para perna e pé, duas partes iguais, juntou-as,
e o ponto de junção denominou-o calcanhar.
As botas
de João José tinham incríveis expansões de couro: eram um oceano de bezerro cortado de ilhas. Os joanetes do
pé direito formavam um arquipélago. No remanescente das milhas despovoadas, o
pé era raso e chão como uma loisa de merceeiro. (QFM,
p. 1254-1255).
A respeito
dessa descrição, Saraiva de Jesus aponta o excesso do grotesco, que resulta
numa figura “desumanizada pela deformação implicada nas hipérboles, comparações
e metáforas retiradas do mundo animal, vegetal e mineral” (1995, p. 113).
Também faz parte dessa caracterização cômica a exposição da falta de cultura de
João José Dias, expressa em sua dificuldade de articular as idéias, em
pensamento, mas principalmente na escrita. Numa das discussões com Ludovina, na
qual ela reclamou ao barão o direito de voltar a ir aos bailes, visitas e
teatros, não mais freqüentados por causa do seu ciúme, o narrador ridiculariza
o fato de João José ficar “atônito na mais
palerma imobilidade” (QFM, p. 1280) e não ter respostas para as inquirições da esposa, afirmando
em determinado momento que o marido “andou às aranhas muito tempo antes que
traduzisse para vulgar o estilo sentencioso da filha e discípula de D. Angélica”
(QFM, p. 1278), a qual, por sua vez, havia espertamente aconselhado a
filha a falar-lhe “como deve falar uma
senhora, e confundi-lo-ás” (QFM, p. 1278).
O narrador
ironicamente conta que o conteúdo da carta que o barão escreveu a sua esposa,
no momento de sua loucura, “era o disparate lastimoso duma cabeça febril,
apavorada de visões sangrentas, que o forçavam a estropiar a sintaxe dum modo lastimável,
e a desbancar o método do imaginoso Castilho no invento da ortografia” (QFM,
p. 1334). Sobre a carta que escreve antes de deixá-la – repleta de pontos de
exclamação, “da qual carta se dá o texto
viciado com as imperdoáveis infidelidades da correção ortográfica” (QFM,
p. 1318) –, o narrador, ao mesmo tempo em que ri de sua falta de cultura,
também apresenta outra face do personagem, mais humana e digna de piedade:
Afora a
sobejidão de pontos admirativos, que são talvez sinais simbólicos da dor indizível do barão de Celorico de
Basto, o que se nos depara nessa carta é a simplicidade, a mudez, a frase chã
duma verdadeira angústia. Em lance idêntico, um marido letrado, e concedo até que romancista, não escreveria
coisa mais patética e pungitiva. (QFM,
p. 1319).
O brasileiro,
apesar de sua cômica descrição física, é considerado pelo narrador como uma “boa alma” que “se anichou neste hediondo invólucro”
(QFM, p. 1255). Como Saraiva
de Jesus explica, “a complacência e simpatia do narrador manifesta-se
reiteradamente no sumário da ‘biografia’ da personagem [...], e também nos diálogos
e na atuação da personagem ao longo da obra” (1995, p. 113). Com isso, temos uma
visão positiva de sua trajetória de trabalho árduo no Brasil – ainda que
permeada de grotesco, comparando o seu trabalho ao de um animal, e novamente se
referindo à sua falta de cultura. O narrador conta que “os pais de João eram
uns pobres fazendeiros de Celorico de Basto, que se desfizeram do único cevado e de uma vitela para pagarem a passagem do rapaz”
(QFM, p. 1255-1256). Assim,
João foi cachopo
para o Brasil, e estreou-se numa loja de molhados, onde granjeou renome de rapaz videiro e
possante. Abraçava uma tanha de azeite de três almudes, e agüentava com ela do armazém para a loja, sem ímpar.
Levantava do sobrado para o
balcão o peso das três arrobas com os dentes. Punha a prumo meia pipa de
cachaça, e levava à boca, sem gemer, um barril de dois almudes, com o braço
testo na asa. [...]
Não
pertencem à alma estes esclarecimentos, bem o sei; mas a alma de João José formou-se
então. A probidade, a lisura, a honradez do boçal caixeiro nunca foram desmentidos pela gaveta do
patrão. (QFM, p. 1255).
Devido ao
seu trabalho e à provável simpatia que despertara em seu patrão, João José Dias
herdara uma parte do negócio; porém, acabou sendo “escandalosamente roubado o pobre
homem” (QFM, p. 1256) pelos seus sócios. Contudo, “estabeleceu-se, e
dentro de doze ou treze anos pagou as dívidas
de seus sócios, e liquidou cem contos de réis fortes, entre os quais, diz ele, e dizem todos os que o conheceram,
não havia cinco réis adquiridos desonrosamente” (QFM, p. 1256). Para
atender ao pedido que sua mãe lhe fizera à beira da morte – “dizendo-lhe que fizesse
feliz uma moça pobre, casando com ela, já que Deus lhe dera a riqueza” (QFM,
p. 1256) –, o brasileiro casa-se com Ludovina. Ao pedir a sua mão, no entanto,
João José pede-lhe que reflita muito bem sobre a sua decisão, sendo sincero, e
não procurando persuadi-la com o seu dinheiro: “Eu sou o que está vendo; a menina
é nova e linda; se vê que se há-de arrepender, diga-me a verdade do seu
coração, que eu arranjarei as coisas de modo
que seu pai se queixe de mim, e não da senhora” (QFM, p. 1262).
O grande defeito
de João José Dias era o seu ciúme excessivo, causado pela preocupação em
preservar a sua honra perante a sociedade: “eu devo dizer-lhe, que tudo o que eu
mais tenho estimado neste mundo é a minha honra [...]; e seria mais fácil eu
deixar que me tirassem a vida do que a honra. Trabalhei muito ano para a
conservar, cheguei até esta idade sem ser
ofendido” (QFM, p. 1262). Em nome da opinião pública, o barão impede sua
mulher de sair de casa,
proferindo uma sentença que o narrador ironicamente apresenta e comenta, e que vai se referir a ela, sempre de maneira irônica, ao
longo do romance:
A idéia de
João José, se fosse minha, ninguém me aturava a vaidade. Rogo aos escritores contemporâneos,
e aos futuros sábios, alinhavadores de remendos alheios, que se escreverem a
seguinte máxima: Há
maridos que não desconfiam das mulheres; mas não vão aos bailes para que os outros não desconfiem; escrevam por baixo – O Comendador JOÃO JOSÉ
DIAS.
As pessoas
que melhores idéias engendraram, não têm sido as mais felizes.
O
comendador pertence ao martirológio dos grandes pensadores. Os fados, os
estúpidos fados hão-de castigá-lo por essas poucas palavras com que ele arranjou um nicho, podre de barato, no templo da memória. (QFM,
p. 1275-1276, grifo do
autor).
Nessa passagem, o narrador
ironicamente alude à questão da opinião pública, já explicada por nós, como responsável pela
infelicidade das personagens. Tanto Ludovina como João José Dias são infelizes,
pois este fica remoendo o medo de ser desonrado perante a sociedade, mesmo sua
esposa sendo inocente. Tais momentos de fúria ciumenta, por sua vez, são ridicularizados pelo narrador, como podemos ver nos
seguintes excertos:
Mas o interior de João
José? Era um incêndio para que a filosofia humana não inventou ainda bomba eficaz!
Era o inferno do moiro de Veneza chorriscando aquele humano torresmo! (QFM, p. 1281).
Fazia medo
a cara do homem. Esverdinharam-se os rôfegos da papeira; as ventas fumegavam soluçando; testa e pálpebras, tinham o
escarlate da penca do peru assanhado. (QFM, 1289).
Contudo, a
sua loucura – após ter baleado António de Almeida, e acreditado ter assassinado
o homem injustamente, pois não era amante de sua esposa – é descrita de forma cômica
e, ao mesmo tempo, digna de lástima: “O doido abaixou as armas contundentes, os
braços inteiriçados que vibravam o ar como duas mangueiras de malho. Correu
para ela, como a pedir-lhe socorro; ouviu-lhe as repreensões com o tremor do
medo, e caiu prostrado da luta sobre uma
cadeira, apegando-se à saia da baronesa” (QFM, p. 1342). Mais uma vez,
temos a crítica do narrador à
sociedade materialista, que, sem a menor piedade, torce pela morte do barão, o que
faria de Ludovina uma viúva rica e, portanto, uma pretendente desejável, causando inveja a outras mulheres:
O barão desmedrara
a olhos vistos. Do antigo João José Dias restava o arcabouço proeminente de
ângulos ósseos. A panda fisionomia, tão rúbida de nediez chorumenta,
chupara-se, entanguira-se, coisa de fazer lástima. Diziam todos que a baronesa,
um mês depois, seria uma formosa e rica viúva. Já dois dos primos, morgados empenhados,
botavam suas medidas, e porfiavam a conquista. As damas, com palavras francamente
grosseiras, iam dando os parabéns à baronesa.
(QFM, p. 1342).
Recuperado de sua loucura, o
brasileiro é abandonado por Ludovina, que acompanha sua mãe ao convento, ao que o narrador comenta, compadecendo-se
com a sua sorte: “O barão sofre resignado a
certeza de que sua mulher não sairá jamais” (QFM, p. 1347).
Segundo Saraiva de Jesus, “Nos
eventos burlescos da diegese, plenos de qüiproquós e situações de
caráter cômico, há também lugar para o dramático e o trágico,
na revelação dos ciúmes e
sofrimentos de João José Dias [...], o que não o salva, no entanto, das
angústias e ridículos da loucura” (1995, p. 114, grifo da autora). Dessa forma,
a crítica afirma, “ao sublinhar o grotesco
físico e psicológico da personagem nestas cenas patético-burlescas, o narrador mantém uma relação de
solidariedade com ela, mostrando-a mais digna de lástima do que de rejeição” (1995, p. 114, grifo da autora).
Assim sendo,
procuramos mostrar neste capítulo a ficção camiliana como uma mistura do sério
e do cômico, cuja melhor síntese, entre as obras aqui analisadas, está presente
em O Que Fazem Mulheres. O universo de
Camilo, plasmado, em especial, nesse romance, é, nas palavras de Annabela Rita, “feito de contrastes, de luz
e sombra, de riso e de lágrimas, de comicidade e de dramatismo” (2005, p. 14). Entre
o sério e o cômico, no entanto, encontramos outra característica camiliana: o diálogo
crítico com os discursos literários de seu
tempo. É a partir dele que iremos, a seguir, analisar a sua obra.
---
Fonte:
Fonte:
Luciene Marie Pavanelo: “Entre o coração
e o estômago: o olhar distanciado de Camilo Castelo Branco”. (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento
de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Motta Oliveira). São
Paulo, 2008.
Notas:
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