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O Alfageme de Santarém. Análise da peça
Concebido, segundo se afirma no
prefácio do livro, «em meados de
1839» e assinado em Benfica no 1º de
Outubro de 1841, o texto que agora
analisamos foi representado pela primeira vez «em março do anno seguinte, no theatro da rua dos Condes» (Amorim 1884: 678) e publicado na
Imprensa Nacional em 1842 com um
título duplo: O Alfageme de Santarém ou a Espada do Condestável. Curiosamente não aparece na capa o nome de Almeida
Garrett, mas uma indicação de ser escrito «pelo auctor de Catão e Auto de Gil-Vicente».
Boa parte da constituição do
teatro histórico, seja drama ou comédia, radica na escolha argumental e, em
menor medida, na recriação de personagens da época, que em muitas ocasiões são conhecidos
pelo público, factor que pode obrigar o autor a permanecer muito atento às
características transmitidas por esse referente comum e a construir uma
sequência minimamente fiel ao contado pelo discurso histórico.
No caso de O Alfageme de Santarém
temos uma obra centrada nos acontecimentos que levaram à mudança de dinastia e
à chegada ao trono português da dinastia de Avis. É sabido que este é um dos
períodos mais relevantes da história portuguesa, símbolo desde muito cedo da
independência do reino e, nomeadamente durante o século XIX, da vontade de
autonomia e soberania do povo. Por isso, não resulta estranho Almeida Garrett
afirmar no breve prefácio que acompanha a edição da obra:
Quiz-se pintar n’este quadro a
face da sociedade em um dos grandes cataclysmos por que ella tem passado em
Portugal. (Almeida Garrett 1842: 1)
E, com efeito, não deve ser por
acaso que dos vinte e sete dramas históricos do período que vai de 1836 a 1856 – período de máxima
efervescência na criação dramática garrettiana –descritos por Ana Isabel de
Vasconcelos (2003: 495-551), seis são dedicados apenas a este breve período.
Mas, no caso de O Alfageme de Santarém estamos perante o desenvolvimento de uma
nova interpretação do episódio do Alfageme de Santarém, aparecido na Crónica do
Condestável, como novamente afirma o autor:
Tomou para a primeira luz do
quadro as principaes figuras da interessante anecdota da espada de Nun’alvares
Pereira e da prophecia do alfageme de Santarem, tam sinceramente contada n’aquelle
ingenuo stylo patriarchal da primeira «chronica do Condestabre», d’onde passou
depois para os historiadores e poetas que a repettiram. (Almeida Garrett 1842:
1).
Neste sentido, a leitura do texto
originário (vid. apêndice 1) e do drama que agora analisamos, resulta
enormemente significativa, pois que oferece uma interpretação diferente dos
dados básicos oferecidos no texto histórico. Com efeito, Garrett converte a acusação
de “cismático” e pró-castelhano que fazem ao Alfageme no texto de origem, assim
como o agradecimento de Nuno Álvares Pereira, não apenas num caso de
“correcção” de uma espada, mas numa “correcção” de comportamento que se
desenvolve à volta do trio amoroso Alfageme-Alda-Nuno. Todavia, a lição do
Alfageme visa um objectivo mais amplo, uma vez que será também exemplo ao
defender de maneira desinteressada a legitimidade dos infantes D. João e D.
Dinis, filhos de D. Pedro I e D. Inês de Castro, e, nomeadamente, ao defender o
povo, a quem considera verdadeiro protagonista da pátria, mesmo quando este se
mostra volúvel e covarde, incapaz de assumir as suas responsabilidades (acto
IV, cena V):
Essas armas que eu vos dei...
para quê? Para defenderdes a vossa propria causa. A vossa causa que vós
desertastes... que nunca defendestes; porque é ruím sinna do povo que nunca a
sua causa soube defender (1842: 96)
Assim, a valentia e generosidade
de Nuno Álvares Pereira converte-se numa verdadeira dívida pessoal e a posição
ambígua do Alfageme numa atitude de extrema coerência. Por outras palavras, O
Alfageme de Santarém propõe uma nova interpretação da história, quase diríamos
que uma revisão. No entanto, fá-lo recolhendo os pontos básicos da narrativa
original ao longo dos cinco actos, especialmente no primeiro e no quinto, onde
concentra esta releitura dos factos narrados na Crónica do Condestável: a correcção
da espada, o agradecimento ante a generosidade do Alfageme, a intervenção da
sua mulher, a profecia que realiza da nomeação de Nuno Álvares Pereira como
Conde de Ourém e o agradecimento deste último pelos serviços do Alfageme. Em qualquer
caso, podemos afirmar já que a eleição de um argumento histórico é muito
significativa. O passado apresenta-se como mais um conteúdo ideológico da peça.
No que ao tempo diz respeito, observamos
que a acção se desenvolve entre o dia 8 de Dezembro de 1383 – como se verifica no
parlamento de Mendo da cena 3 do acto IV (1842: 87) –, e o dia 15 de Agosto de
1385 – como explica Alda na primeira cena do acto V (1842: 116). No intervalo
destes vinte meses encontramos uma série de personagens que agem e se preocupam
pelos graves acontecimentos que o reino português está a viver, após a morte do
rei D. Fernando e durante a regência da rainha D. Leonor, período de grande
instabilidade e risco de absorção por parte da coroa castelhana. A nível
formal, observamos que os acontecimentos são apresentados, como é habitual
neste tipo de teatro (Ogando 2004: 95), nas primeiras cenas do acto I e nas dos
actos IV e V, que se situam depois de duas elipses temporais, razão pela qual
deve situar novamente o público e explicar o acontecido durante as elipses
temporais.
Quanto à localização espacial,
embora possa apresentar normalmente uma menor importância na configuração do
drama histórico (Ogando 2004: 133), no caso d’O Alfageme de Santarém parece-nos
muito relevante por várias razões. Primeiramente, pela unidade de espaço
verificada nos cinco actos que, se não era o mais habitual nos dramas
românticos, também não o era no teatro de Garrett. Porém, o cenário descrito na
didascália inicial mantém uma presença constante ao longo dos cinco actos:
É no suburbio de Santarém, ditto
A Ribeira. À esquerda uma casa antiga, apalaçada, com vestigios de grandeza
senhorial, mas muito arruinada, com escada exterior de pedra, descuberta e praticavel,
e collocada de modo que os actores, quando descem, ficam com a face para o
spectador. No alto da escada, patim com parapeito, e cuberto com uma parreira.
– À direita uma casa abarracada mas vasta e bem reparada, em que estão os armazens
e serralharias do Alfageme, cujas forjas acesas e trabalhando são visiveis para
o espectador: a parte mais posterior da casa é mais antiga e acanhada, com sos
duas janelinhas agudas e porta no meio. – No fundo Marvila ou parte alta de
Santarem. – Em baixo corre o Tejo. – Da esquerda vem a estrada de Lisboa, pela
direita se sobe para Santarém. – No meio da scena, entre as duas casas, alguma
árvore. – É de hynverno. – A mesma vista em todos os actos. (Almeida Garrett
1842: 5)
Pode-se observar assim que toda a
acção se desenvolve num espaço público, no mesmo limiar da casa e oficinas do
alfageme e da casa da família Paes, D. Guiomar e D. Mendo Paes, que moram agora
com Froilão-Dias e Alda. Esta unidade espacial contrasta com a maior
complexidade das personagens e até com a variação temporal, e obriga o autor a
configurar os outros espaços relevantes na história – a cidade de Lisboa, a
parte alta de Santarém, Abrantes ou o campo da batalha de Aljubarrota – mediante
discursos indirectos, criando vários espaços ausentes, mais ou menos afastados
do espaço patente. Da mesma maneira, têm uma relativa significação os espaços
patentes, especialmente o interior das oficinas do Alfageme, que se fazem
presentes na acção mediante os sons e cantigas dos trabalhadores.
Uma segunda razão na
singularidade do espaço, que nos parece de maior importância, é a presença de
uma velha e humilde casa integrada na poderosa casa do alfageme, ambas símbolo
do seu magnífico comportamento e carácter, uma vez que consegue enriquecer-se
mas que permanece ligado às origens, como explica D. Guiomar:
Guiomar.– Vès aquellas casarias
todas, com tanta forja e trabalhar, tanta gente occupada, tantos armazens
cheios de armas de toda a sorte e valia? – Pois tudo isso tem elle feito. A casita
do pae era so aquillo que se ve la canto, no fim, com a portinha baixa e duas
janellas estreitas, que o filho não quiz mudar, nem pôr á feição do resto da
casa, por honra e memoria do pae, diz elle. (Almeida Garrett 1842: 8-9).
Como veremos, esta é uma das
características fundamentais da figura do alfageme que «faz soberba e vaidade
do que a mais gente se invergonha» (ib., 9), representando assim a capacidade
do povo para ascender mediante o trabalho, a honestidade e a consciência da sua
pertença a uma terra e ao povo português.
Em terceiro lugar, existe uma
última razão que confere enorme relevância à situação espacial, embora proceda
de outro texto, as Viagens na minha Terra, onde o término da viagem iniciada
pelo narrador – Santarém, lhe permite fazer alusões a esta história, e mais
concretamente ao espaço, que se fora símbolo de glória no passado, em 1843
tinha desaparecido completamente:
Cruzámos a povoação em todos os
sentidos, procurando rastrear algum vestígio, confrontar algum sítio onde
pudéssemos colocar, pela mais atrevida suposição que fosse, a tenda do nosso alfageme
com as suas espadas bem «corregidas», as suas armaduras luzentes e bem postas —
e o jovem Nun’Álvares passeando ali por pé, ao longo do rio — como diz a
crónica — namorado daquela perfeição de trabalho, e dando a «correger» a bela
espada velha de seu pai ao rústico profeta que tantos vaticínios de grandeza
lhe fez, que o saudou condestável, conde de Ourém e salvador da sua pátria.
Nada pudemos descobrir com que a
imaginação se iludisse sequer, que nos desse, com mais ou menos anacronismo,
uma leve base tão-somente para reconstruirmos a gótica morada do célebre
cutileiro-profeta que a história herdou das crónicas romanescas, e hoje o
romance outra vez reclama da história. (1846, 2º vol.: 123)
O espaço ganha deste modo
conotações simbólicas “mitificadoras” que estabelecem diferenças entre o
passado e o presente – recurso frequentemente utilizado Garrett ao longo de todo
este romance – que, com pouco esforço, poderemos trasladar à caracterização espacial
d’O Alfageme de Santarém.
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Fonte:
Fonte:
Iolanda Ogando: O Alfageme de
Garrett. A história, o teatro e a nação. Revista Limite. Vol. 1, 2007, pp.
137-158. Universidad de Extremadura. Disponível em: www.revistalimite.es
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