04/08/2014

A Mulher Fatal, de Camilo Castelo Branco

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A mulher e o amor camilianos
  
 A mulher foi escrava do braço, antes de o ser da
 superioridade moral.
 Quando o homem chamou a ciência a dar um
 testemunho falso da sua primazia, a mulher,
 quebrantada pela escravidão do braço, não pode
 remir-se com as forças do espírito.
 Ainda assim, o tirano, receoso da emancipação, fez
 em redor da escrava as trevas da ignorância, para
 que a razão da mulher não pudesse conceber da luz
 o gérmen que a reabilitasse.
 Pegou da formosa flor, cerceou-a de estevas, cobriu-
 a de sombras por onde o sol não podia coar uma
 réstia reanimadora.
 Esta maquinação arteira sobreviveu a todas as
 borrascas sociais. Os fautores, e ainda os mártires
 da igualdade perante Deus e perante a lei, nunca
 proferiram uma palavra, nem verteram gota de
 sangue para o resgate moral da mulher.
  
 Camilo Castelo Branco
 O que fazem mulheres

No Romantismo literário a união entre dois amantes privilegia a  concepção da perenidade, fosse o sentimento amoroso concretizado em vida ou não, estando sempre o ser humano em busca do verdadeiro e eterno amor, mesmo que frustradas as expectativas iniciais. Esse excesso de emoção é, segundo o teórico russo Bakhtin, (2003, p. 166, grifos meus) “produto da desintegração do caráter clássico”  em  que

[...] No sentimentalismo, a posição de distância é usada  tanto em termos artísticos quanto morais (em detrimento do artístico, é claro). A piedade, o enternecimento, a indignação, etc. – todas essas reações éticas axiológicas, que colocam a personagem fora do âmbito da obra, destroem o acabamento artístico; começamos a reagir à personagem como uma pessoa viva (a reação do leitor e às primeiras personagens sentimentalistas – pobre Lisa, Clarissa, Grandison, etc., em parte Werther – é impossível diante da personagem clássica), embora ela seja artisticamente bem menos viva que a personagem clássica. As desventuras da personagem já não são destino, mas simplesmente criadas e a ela causadas por pessoas más; a personagem é passiva, apenas passa pela vida, não consegue nem morrer, os outros é que a destroem. O herói sentimentalista é o que melhor se presta a obras tendenciosas – para suscitar sentimentos extra-estéticos de simpatia ou de hostilidade social.

 

Desde o Egito e a Grécia Antigos, o sentimento amoroso é apresentado como o que há de mais elevado nas ações ou nos relacionamentos, fosse ele um envolvimento entre homens e mulheres, ou entre seres do mesmo sexo. Platão (1986) conceitua o amor como necessidade de se conquistar e resguardar a posse dele, pois ele se destina à aparência do Bem. Já Aristóteles (2009, p. 258, grifos meus) visualizava o amor sexual como sentimento superior, uma vez que seria impossível ser atingido se não fosse conquistado pelo prazer da beleza:

Assim, enquanto no que tange às outras espécies animais, a união dos sexos visa apenas à perpetuação da espécie, os seres humanos vivem juntos não apenas para gerar filhos, como também para prover o que é necessário à vida, inclusive entre os seres humanos a divisão de trabalho começando nos primórdios, homem e mulher assumindo diferentes funções.

No século XII, o amor cortês cultuava a figura feminina ideal para a realização amorosa plena, idealizada e carnal, como forma de alcançar a felicidade eterna. Grandes amores eram amplamente tematizados pela literatura medieval, como o de Abelardo e Heloísa10, Dante e Beatriz11 e Laura e Petrarca12. Amar é sinônimo de amor impossível.

Já no Quinhentismo, as grandes navegações trouxeram ao homem novos horizontes e a influência do pensamento neoplatônico garantiu à figura feminina inúmeras qualidades espirituais e morais, sendo a beleza da 10 Heloísa e o filósofo Pedro Abelardo conheceram-se em Paris entre o final da Idade Média e o início do Rensacimento. Heloísa, numa tarde em que saiu para passear com a criada Sibyle, viu um grupo de estudantes reunidos em torno Abelardo, o qual apanhou-lhe o chapéu que havia voado com o vento. A partir desse momento, ela só pensava nele e dispensou seus antigos professores, interessando-se em estudar as obras de Platão e Ovídio, a alquimia e essências e ervas, pois sabia que desse modo atrairia Abelardo. Ele, tornando-se amigo de Fulbert de Notre Dame, tio e tutor de Heloísa, passou a ser o novo professor dela, oportunidade em que eles ficavam a sós. Abelardo apaixonou-se e juntamente com racionalizavam o amor. A criada adoece e foi substituída por outra que encontrou uma carta de Abelardo dirigida a Heloísa e a entregou a Fulbert. Abelardo foi expulsou da casa, mas Heloísa preparava poções que faziam o tio dormir e conduzia Abelardo ao porão, o ponto de encontro dos apaixonados. Fulbert descobriu o que acontecia, Heloísa levou uma surra passou a ser vigiada. Abelardo e ela passaram a se encontra nas igrejas e ela engravidou. A fim de impedir o escândalo, Abelardo levou-a à aldeia de Pallet, deixando-a sob os cuidados de sua irmã e revelou a Fulbert o amor que unia o casal. Fulbert concordou com o casamento, Heloísa, voltou a Paris e casaram-se no meio da noite, porém maledicentes começaram a zombar de Fulbert que contratou dois carrascos para arrancar o membro viril de Abelardo. Assim, perturbados pela tragédia, Alberto e Heloísa não mais se falaram e ela retirou-se para o convento. Abelardo criou uma escola-mosteiro ao lado da escola-convento onde Heloísa ficava e, assim, viam-se, trocavam cartas apaixonadas, mas não se falavam. Abelardo morreu aos 63 anos e Heloísa construiu-lhe um grande sepulcro. Ela faleceu algum tempo depois, sendo sepultada ao lado de seu amado Abelardo. Segundo se conta, ao abrirem a sepultura de Abelardo, para o enterro de Heloísa, encontraram o corpo dele intacto e de braços abertos à espera de Heloísa. (ETIENNE, 2007, p. 56) alma muito maior e mais perfeita do que a física, conferindo-se ao sentimento amoroso uma dimensão de inalcançável. A partir do dolce stil nuovo surge uma imagem estereotipada da figura feminina que se manteve por muitos outros períodos. A mulher loira, branca, de rosto rosado e dentes de pérola conquista alguns atributos idealizadores de perfeição e feminilidade registrados nos gestos delicados e comportamento angelical.

No entanto, a tranquilidade do mundo se dissolve no século XVII, período de um homem atormentado pela crise religiosa e pressão dura da Inquisição, em que o ser amado está acima do Bem e eternamente perdido.

Seu completo sofrimento leva-o à melancolia constante e viver passa a ser sinônimo de morrer. Já no Neoclassicismo, o convencionalismo traz de volta os temas e lugares-comuns clássicos, idealizando o amor e a mulher como retrato de calmaria e não-passionalidade, requisitos imprescindíveis à figura feminina ideal.

A moral do Cristianismo dominante no século XIX aceita o amor como um sentimento incorpóreo e o prazer físico como objeto do pecado.

A maioria dos autores românticos mantém essa visão, recusando a ideia de Eros como elemento ligado ao corpo e seus estímulos e mantendo a posição de que o amor é o alimento das almas mais puras.

Numa retomada parcial dos valores medievais e barrocos, o romântico expressa sentimentos envolvidos também nas mudanças econômicas da sociedade, experimentando fortes contradições e instabilidade emocional aliadas à sensação de impotência, elementos geradores de conflitos de sorte variada. Schopenhauer (1993, p. 47, grifos meus) afirma que O amor é poderoso e sabe enganar o ser humano; consegue  iludi-lo, prometendo-lhe uma felicidade que jamais poderá se realizar: o próprio prazer carnal acaba sendo uma experiência apenas momentânea e insatisfatória,  justamente porque a verdadeira finalidade do encontro amoroso não é satisfazer o homem e a mulher, mas possibilitar a geração de novas vidas e, através desta geração, a preservação da natureza.

Note-se que, Schopenhauer só permite a ideia de amor para a procriação, contrariando a afirmação de Platão (1986, p. 79, grifos meus), em O Banquete, de que o amor é simplesmente um desejo, uma privação: Portanto, a pessoa, e quem quer que deseje alguma coisa, deseja forçosamente o que não está à sua disposição, o que não possui, o que não tem, o que lhe falta; ora, não são estes justamente os objetos do desejo e do amor?

Logo, o romântico aceita o amor como uma intensa relação entre dois seres ativos em que os movimentos de ambos geram o desejo de conversão e complemento de um em outro, como afirma Camões (1997, p. 50) na paráfrase de Petrarca:

 Transforma-se o amador na cousa amada,
 Por virtude do muito imaginar;
 Não tenho logo mais que desejar,
 Pois em mim tenho a parte desejada.

 Se nela está minha alma transformada,
 Que mais deseja o corpo de alcançar?
 Em si somente pode descansar,
 Pois consigo tal alma está liada.

 Mas esta linda e pura semideia,
 Que, como o acidente em seu sujeito,
 Assim co'a alma minha se conforma,

 Está no pensamento como ideia;
 [E] o vivo e puro amor de que sou feito,
 Como matéria simples busca a forma.

Assim, o amor pode surgir por uma necessidade do homem de ser amado, fugindo para o outro e transformando-se nele como forma de complemento de sua essência. Conquista-se, então, definitivamente o amado, concretizando o projeto de se fazer amar. Essa religião do amor, no entanto, é muitas vezes sacrificada por impossibilidades sociais e, por isso, acompanhada de crimes e profanações. São duas formas de amor distintas, as quais se destacam nesse caso: o amor paixão, que leva ao desespero e à morte, e o amor sentimento, o qual proporciona a salvação.



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Fonte:
Maria de Lourdes da Conceição Cunha
: A mulher fatal e o que fazem mulheres: a representação da figura feminina na narrativa camiliana”. (Tese apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Lílian Lopondo). São Paulo, 2010.
Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em:  tede.mackenzie.com.br

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