11/07/2014

Paraíso Perdido, de John Milton

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Milton na poesia machadiana

Manuel Bandeira, em artigo publicado em 1939, na Revista do Brasil, adverte que não se deve esperar do poeta Machado de Assis a mesma genialidade do prosador. Entretanto, segundo Bandeira, há:

nas Ocidentais uma dúzia de poemas que têm a mesma excelente qualidade de seus melhores contos e romances [...]. Foi mesmo em alguns desses poemas, e especialmente em “Uma Criatura” que se anunciou o pessimismo irônico e o estilo nu e seco, toda a filosofia e toda a técnica da segunda fase do escritor.

Conforme Bandeira, embora Machado de Assis seja melhor prosador que poeta, alguns poemas publicados na coletânea intitulada Ocidentais (1901) apresentam os consagrados elementos estruturais e a técnica de criação, característicos da segunda fase de sua carreira, dentre os quais o intitulado “Uma criatura”.

Vários poemas de Machado de Assis são nós da rede intertextual que liga o autor brasileiro ao poeta inglês, John Milton. Como mencionado anteriormente, o estudo dessas relações é um trabalho em progresso e, por isso, apenas um poema é aqui analisado, para demonstrar que Machado de Assis se movimentou pelo universo textual miltoniano, não só nos romances, mas também em outros gêneros literários. Escolheu-se para esta análise o poema destacado por Bandeira, composto de oito estrofes, dos quais sete descrevem a criatura.

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga à maneira do abismo,
Espreguiça-se todas em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável , como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Na descrição da criatura, expressões paradoxais ampliam as possibilidades de significação. A criatura de Machado de Assis é caracterizada com uma natureza dúbia desde o início do poema: sendo formidável, produz terror ou admiração; faminta, devora a si mesma e não se sacia; habita vales e montanhas; gosta do colibri e do verme, ama igualmente o puro e o impuro; une-se ao belo e o monstruoso. Os termos antitéticos utilizados instigam o leitor a decifrar a identidade da criatura e o inclina a associá-la à morte. Todavia, a sentença final do poema reforça-lhe a d vida: “Tu dirás que a Morte; eu direi que a Vida”. Machado de Assis, irônica e secamente, problematiza o sentido morte/vida, surpreende o leitor e provoca a releitura de seu poema. O leitor retorna às estrofes anteriores para se certificar de que os adjetivos usados podem ser aplicados à vida. A situação aporética em que o poema põe o leitor perpetua a dúvida.

Sob o prisma derridiano, a aporia é uma experiência constitutiva da différance, e, por sua vez, da destinerrance. Em seu livro  Aporias (1993), Derrida define aporia como a chegada a uma fronteira de significação que, em invés de denotar o fim, abre uma fissura em si mesma, o que possibilita uma “experiência interminável” de atribuição significados. O impasse da experiência apor tica flexibiliza a noção de limite e estabelece “a retórica do espaço da apropriação”; em outras palavras, a instância de um limite poroso, “permeável e indeterminável”. A permeabilidade dos limites de significação permite que “A criatura” machadiana seja entendida como morte e/ou vida e abre espaço para outras relações textuais; por exemplo, com o poema épico de Milton, em que são descritos o Pecado e a Morte. Se “essa criatura está em toda a obra”, como diz o próprio Machado de Assis, pela leitura apor tica desse poema possível ver, ainda, apropriações de traços das “formas informes” apresentadas por Milton, em seu poema pico. Em Paradise Lost, a Morte – entidade masculina – é caracterizada sob três perspectivas: a primeira, do narrador, que a descreve como ser informe; a segunda, da própria Morte, que se dirige a Satã (seu pai) e o ameaça no momento em que ele tenta escapar do inferno; e, por fim, do Pecado – figura feminina no poema, mãe e vítima da Morte:

Before the gates there Sat
On either side a formidable Shape;
The one seemed woman to the waist, and fair,
But ended foul in many a scaly fold,
Voluminous and vast, a serpent armed
With mortal sting. About her middle round
A cry of Hell-bounds never-ceasing barked
With wide Cerberean mouths [ ]
The other Shape –
If shape it might be called that shape had none
Distinguishable in member, joint, or limb,
Or substance might be called that shadow seemed,
For each seemed either – black it stood as Night.
[ ] from his seat
The monster moving onward came as fast
With horrid strides; Hell trembled as he strode [...].
Where I reign king, and to enrage thee more,
Thy king and lord? Back to thy punishment,
False fugitive, and to thy speed add wings,
Lest with a whip of scorpions I pursue
Thy lingering, or with one stroke of this dart
Strange horror seize thee [ ].

I fled, and cried out, Death!
Hell trembled at the hideous name, and sighed
From all her caves, and back resounded Death!
I fled; but he pursued (though more, it seems,
Inflamed with lust than rage), and swifter far,
Me overtook, his mother, all dismayed,
And, in embraces forcible and foul
Engendering with me, of that rape begot
These yelling monsters, (II. 648-795)351

As formas personificadas do Pecado e da Morte no poema inglês se confrontam e se complementam. O Pecado, forma formidável e bela – até a cintura –, cujas entranhas e intestinos a Morte rasga e mastiga. A Morte, forma detestável e informe, rei e monstro, filha e inimiga do Pecado, a quem persegue, deseja e detesta.

Note-se que termos e adjetivos fundem as caracterizações das duas criaturas, e as articulam na força, na forma, no despotismo e na escuridão. Um diálogo entre o poema de Machado de Assis e a obra de Milton é, então, estabelecido: ambos discutem as representações e assombros de uma criatura, que Milton nomeia como Morte e Machado de Assis, por meio do seu eu lírico responde: “Tu dirás que a Morte; eu direi que a Vida”.

Não obstante essas afinidades, há um desvio de um sentido fixo de significação. A machadiana instiga a dúvida; a de Milton perturba o leitor por sua monstruosidade e comportamento amoral.

Uma das tradições em que Machado de Assis se insere dialoga com a linhagem clássica. Reformular ou retrabalhar a herança do passado são atos pertinentes nessa tradição e, por isso, ela jamais se desgasta. Machado de Assis leu Milton e articulou a sua criatura com as dele. Seja na criatura, que está em toda a obra, na fortuna, que retorna como o anel de Polícrates, ou no protagonista da Igreja do Diabo, que interage com o Satã de Paradise Lost, a presença/ausência de John Milton na obra do Bruxo do Cosme Velho “as suas for as dobra” cada vez que é retomada.

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Fonte:

Miriam Piedade Mansur Andrade: “Machado de Assis e John Milton: Diálogos pertinentes”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras. Área de Concentração: Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Ferreira Sá). Belo Horizonte, 2013. 


Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: http://periodicos.uem.br/

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