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Milton na poesia machadiana
Manuel Bandeira, em artigo
publicado em 1939, na Revista do Brasil, adverte que não se deve esperar do
poeta Machado de Assis a mesma genialidade do prosador. Entretanto, segundo
Bandeira, há:
nas Ocidentais uma dúzia de poemas que têm a mesma excelente qualidade
de seus melhores contos e romances [...]. Foi mesmo em alguns desses poemas, e especialmente
em “Uma Criatura” que se anunciou o pessimismo irônico e o estilo nu e seco,
toda a filosofia e toda a técnica da segunda fase do escritor.
Conforme Bandeira, embora Machado
de Assis seja melhor prosador que poeta, alguns poemas publicados na coletânea intitulada
Ocidentais (1901) apresentam os consagrados elementos estruturais e a técnica
de criação, característicos da segunda fase de sua carreira, dentre os quais o
intitulado “Uma criatura”.
Vários poemas de Machado de Assis
são nós da rede intertextual que liga o autor brasileiro ao poeta inglês, John
Milton. Como mencionado anteriormente, o estudo dessas relações é um trabalho
em progresso e, por isso, apenas um poema é aqui analisado, para demonstrar que
Machado de Assis se movimentou pelo universo textual miltoniano, não só nos
romances, mas também em outros gêneros literários. Escolheu-se para esta
análise o poema destacado por Bandeira, composto de oito estrofes, dos quais
sete descrevem a criatura.
Sei de uma criatura antiga e
formidável,
Que a si mesma devora os membros
e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome
insaciável.
Habita juntamente os vales e as
montanhas;
E no mar, que se rasga à maneira
do abismo,
Espreguiça-se todas em convulsões
estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro
despotismo
Cada olhar que despede, acerbo e
mavioso,
Parece uma expansão de amor e
egoísmo.
Friamente contempla o desespero e
o gozo,
Gosta do colibri, gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o
monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola,
inerme;
E caminha na terra imperturbável
, como
Pelo vasto areal um vasto
paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu
primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se
desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado
pomo.
Pois essa criatura está em toda a
obra:
Cresta o seio da flor e
corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças
dobra.
Ama de igual amor o poluto e o
impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua
lida,
E sorrindo obedece ao divino
estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi
que é a Vida.
Na descrição da criatura,
expressões paradoxais ampliam as possibilidades de significação. A criatura de Machado
de Assis é caracterizada com uma natureza dúbia desde o início do poema: sendo
formidável, produz terror ou admiração; faminta, devora a si mesma e não se sacia;
habita vales e montanhas; gosta do colibri e do verme, ama igualmente o puro e o
impuro; une-se ao belo e o monstruoso. Os termos antitéticos utilizados
instigam o leitor a decifrar a identidade da criatura e o inclina a associá-la
à morte. Todavia, a sentença final do poema reforça-lhe a d vida: “Tu dirás que
a Morte; eu direi que a Vida”. Machado de Assis, irônica e secamente,
problematiza o sentido morte/vida, surpreende o leitor e provoca a releitura de
seu poema. O leitor retorna às estrofes anteriores para se certificar de que os
adjetivos usados podem ser aplicados à vida. A situação aporética em que o
poema põe o leitor perpetua a dúvida.
Sob o prisma derridiano, a aporia
é uma experiência constitutiva da différance, e, por sua vez, da destinerrance.
Em seu livro Aporias (1993),
Derrida define aporia como a chegada a uma fronteira de significação que, em invés
de denotar o fim, abre uma fissura em si mesma, o que possibilita uma
“experiência interminável” de atribuição significados. O impasse da experiência
apor tica flexibiliza a noção de limite e estabelece “a retórica do espaço da
apropriação”; em outras palavras, a instância de um limite poroso, “permeável e
indeterminável”. A permeabilidade dos limites de significação permite que “A
criatura” machadiana seja entendida como morte e/ou vida e abre espaço para
outras relações textuais; por exemplo, com o poema épico de Milton, em que são
descritos o Pecado e a Morte. Se “essa criatura está em toda a obra”, como diz
o próprio Machado de Assis, pela leitura apor tica desse poema possível ver,
ainda, apropriações de traços das “formas informes” apresentadas por Milton, em
seu poema pico. Em Paradise Lost, a Morte – entidade masculina – é caracterizada
sob três perspectivas: a primeira, do narrador, que a descreve como ser
informe; a segunda, da própria Morte, que se dirige a Satã (seu pai) e o ameaça
no momento em que ele tenta escapar do inferno; e, por fim, do Pecado – figura feminina
no poema, mãe e vítima da Morte:
Before the gates there Sat
On either side a formidable Shape;
The one seemed woman to the waist, and fair,
But ended foul in many a scaly fold,
Voluminous and vast, a serpent armed
With mortal sting. About her middle round
A cry of Hell-bounds never-ceasing barked
With wide Cerberean mouths [ ]
The other Shape –
If shape it might be called that shape had none
Distinguishable in member, joint, or limb,
Or substance might be called that shadow
seemed,
For each seemed either – black it stood as Night.
[ ] from his seat
The monster moving onward came as fast
With horrid strides; Hell trembled as he strode
[...].
Where I reign king, and to enrage thee more,
Thy king and lord? Back to thy punishment,
False fugitive, and to thy speed add wings,
Lest with a whip of scorpions I pursue
Thy lingering, or with one stroke of this dart
Strange horror seize thee [ ].
I fled, and cried out, Death!
Hell trembled at the hideous name, and sighed
From all her caves, and back resounded Death!
I fled; but he pursued (though more, it seems,
Inflamed with lust than rage), and swifter far,
Me overtook, his mother, all dismayed,
And, in embraces forcible and foul
Engendering with me, of that rape begot
These yelling monsters, (II.
648-795)351
As formas personificadas do
Pecado e da Morte no poema inglês se confrontam e se complementam. O Pecado,
forma formidável e bela – até a cintura –, cujas entranhas e intestinos a Morte
rasga e mastiga. A Morte, forma detestável e informe, rei e monstro, filha e inimiga
do Pecado, a quem persegue, deseja e detesta.
Note-se que termos e adjetivos
fundem as caracterizações das duas criaturas, e as articulam na força, na
forma, no despotismo e na escuridão. Um diálogo entre o poema de Machado de Assis
e a obra de Milton é, então, estabelecido: ambos discutem as representações e assombros de uma
criatura, que Milton nomeia como Morte e Machado de Assis, por meio do seu eu
lírico responde: “Tu dirás que a Morte; eu direi que a Vida”.
Não obstante essas afinidades, há
um desvio de um sentido fixo de significação. A machadiana instiga a dúvida; a de
Milton perturba o leitor por sua monstruosidade e comportamento amoral.
Uma das tradições em que Machado
de Assis se insere dialoga com a linhagem clássica. Reformular ou retrabalhar a
herança do passado são atos pertinentes nessa tradição e, por isso, ela jamais
se desgasta. Machado de Assis leu Milton e articulou a sua criatura com as dele.
Seja na criatura, que está em toda a obra, na fortuna, que retorna como o anel
de Polícrates, ou no protagonista da Igreja do Diabo, que interage com o Satã
de Paradise Lost, a presença/ausência de John Milton na obra do Bruxo do Cosme
Velho “as suas for as dobra” cada vez que é retomada.
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Fonte:
Miriam Piedade Mansur Andrade:
“Machado de Assis e John Milton: Diálogos pertinentes”. (Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Faculdade de Letras
da UFMG, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras. Área
de Concentração: Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando
Ferreira Sá). Belo Horizonte, 2013.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: http://periodicos.uem.br/
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