12/07/2014

A Bela Madame Vargas (Teatro), de João do Rio

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A questão do intelectual e o poder em João do Rio

João do Rio tem sido visto pela crítica como um intelectual mais alinhado à burguesia que às classes subalternas. No que se reporta às suas crônicas, em muitos momentos ele se manifesta sensível aos sujeitos que se encontram à margem do tecido social, como será mostrado mais aqui. Parece-me bastante significativo considerar que o mesmo dilema que se exerceu em Lima Barreto, ante os problemas de classificação e formação identitária, produziu em João do Rio um recalque, não suficiente para calar o seu discurso em relação à República, mas forte o bastante para silenciar, em muitos momentos, o discurso étnico.

Ressalto, porém, que o jornalista parece, não obstante o seu dilema, ter usado em alguns momentos estratégia discursiva semelhante à utilizada por Machado de Assis, acusado por muitos de silenciar em relação à questão étnica, mas que, conforme Eduardo de Assis Duarte (2005), representa uma estética da dissimulação, “escritos de caramujo”, uma crítica indireta e irônica. Acredito que João do Rio, nesse contexto, busca o caminho da escrita machadiana, o caminho da dissimulação, na construção de um discurso contra-hegemônico, e, se não o faz conscientemente, o faz por força do dilema vivido. Em A Alma encantadora das ruas, há uma sequência de seis crônicas, sob o título de “Onde s vezes terminam as ruas”. Nessas crônicas, João do Rio descreve, com riqueza de detalhes, as prisões e os seus habitantes, grande parte deles negros, inominados. Ao final da crônica “As quatro ideias capitais dos presos” o narrador declara: 

Esses quatro ideais de generalidade dos presos fizeram-me pensar num país dirigido por eles. Um rei perpétuo governaria os vassalos, por vontade de Deus. Os vassalos teriam a liberdade de cometer todos os desatinos, confiantes na proteção divina, e a imprensa continuaria impassível no seu louvável papel de fazer celebridades. Seria muito interessante? Seria quase a mesma coisa que os governos normais - apenas com a diferença da polícia na cadeia, como medida de precaução. Tanto as ideias do povo são idênticas, quer seja ele criminoso quer seja honesto” (JOÃO DO RIO, 2008, p. 226).

O cronista vale-se de ironia para contestar o Estado. Aparentemente, a descrição dos fatos ocorridos na prisão não tem maiores pretensões. No entanto, o narrador inverte a ordem das coisas, ao imaginar um outro Estado. Os excluídos é que teriam o domínio das estruturas de poder. Esse enfoque permite-nos observar que João do Rio estava sempre interessado em desmistificar os universos da aparência e da essência das coisas.

A esse propósito, é preciso relembrar a percepção de João do Rio acerca da artificialidade do sujeito em sua época, o que pode ser evidenciado na conferência “O figurino”, publicada no volume Psicologia  urbana, da qual, a partir das considerações de Renato Cordeiro Gomes, assinalo: “Tudo no mundo é cada vez mais figurino, obsessão contemporânea [...] Estamos na era da exasperante ilusão, do artificialismo, do papel pintado, das casas pintadas, das almas pintadas” (JOÃO DO RIO, apud GOMES, 1996, p. 16). O que seriam essas almas pintadas? Talvez, uma representação da artificialidade da vida dos sujeitos que tentam se adequar às demandas da modernização. O papel, que o indivíduo assume em algumas circunstâncias, é um “papel pintado”, falseado, simulado. João do Rio consegue registrar a artificialidade da cidade letrada, mas vive o dilema da fascinação e da oposição a ela. A própria República parecia pintada, artificial, como as pessoas que a habitavam.

De acordo com a filósofa Marilena Chauí, em "Cultura e Democracia", a sociedade brasileira “ uma sociedade que opera por exclusão, pela prática da violência e pelo poder hierarquicamente estabelecido e justificado” (CHAUÍ, 2008, p. 43), e é preciso lembrar pelo menos três coisas importantes para entendermos a nossa república. A primeira é que a noção de república não é idêntica à de democracia.

A república, originalmente, é um governo aristocrático, ou seja, é uma oligarquia. Apenas aqueles que são definidos, no caso de Roma, como romanos, isto é, participantes da propriedade da terra, é que são considerados politicamente válidos. Isso significa, ao contrário do que muitos pensam, que não podemos considerar república e democracia como a mesma coisa. A república, tal como pensada em Roma, exige a separação entre o espaço privado e o espaço público, além da existência da constituição escrita, mas ela não compreende propriamente um direito universal à participação política e ao exercício do Poder que, na verdade, diz respeito à democracia. Essa compreensão é o que torna mais claro o tipo de organização política brasileira que dá lugar à república, sem se ater a princípios democráticos, ou seja, constituindo uma república onde a população pobre não tem voz. Outro aspecto diz respeito à ausência de luta popular para constituir a república brasileira, assim como ocorre com outros eventos históricos, o que denota que, na verdade, a República é constituída da disposição das próprias classes dominantes para atender aos seus interesses.

Segundo Marilena Chauí, no Brasil, tanto a independência, quanto depois a república, foram constituídas por golpe de estado. A observação acurada do processo republicano em outros países da América Latina demonstra a presença de revoluções e guerras civis. Não que isso seja um componente essencial, mas se não há participação das classes que se encontram alijadas, não será possível pensar na observação do seu direito. Não estamos esquecendo aqui as diversas revoltas sociais ocorridas no período de transição entre Império e República. No entanto, parece-nos que, na hora de implantar a República, esses atores sociais foram esquecidos, ou postos à margem do processo. A república no Brasil é implantada de cima pra baixo, diferentemente dos outros processos republicanos, em que ela vai da ação popular ao do poder político.

O terceiro ponto é que a nossa república sempre foi oligárquica, à maneira dos romanos, e, dada a sua origem de implantação, de cima para baixo, ela sempre foi uma república autoritária. Ela corresponde ao autoritarismo da sociedade brasileira. A sociedade brasileira, à época de Lima Barreto e Paulo Barreto, era uma sociedade vertical, hierárquica, que distinguia as pessoas em superiores e inferiores, com uma enorme dificuldade para assimilar a noção de direitos, para trabalhar com a noção de soberania, com as ideias de liberdade, igualdade e participação, mesmo com os ventos da abolição impelindo a nação para novos rumos. A sociedade republicana operava por exclusão, pela prática da violência e pelo poder hierarquicamente estabelecido e justificado pela força econômica.

O lugar de que falam os cronistas constitui uma diferença marcante em seus textos. Enquanto Lima Barreto parece se instalar ao lado das pessoas comuns, partilhando dos seus dramas, Paulo Barreto, ainda que penetre em alguns lugares como o Morro de Santo Antônio de “Os livres acampamentos da Mis ria”, seu olhar de outro lugar, como se observa em:

Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso – um soldado sem número no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era no largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de ouvir uma companhia deoperetas italiana e paravam a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia. Acerquei-me (JOÃO DO RIO, 1911, p. 27).

A sua presença, como observador no Morro de Santo Antônio, representa o lugar do outro, apesar da “escandalosa simpatia”. A reportagem, escrita na primeira pessoa do singular, já desde o início estabelece o signo da diferença entre o narrador, pertencente a um grupo de “elegantes” e o seu outro, composto por mulatos e um soldado sem número no boné. A ausência do número e o tom da pele representam aqui uma identidade inconclusa. Os personagens aqui constituem a esfera da inclusão e da exclusão. O olhar marca a posição de cada sujeito na narrativa: “parava a ver os malandros que me olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia”.

Conforme Gutemberg Medeiros, “Os livres acampamentos da mis ria” constitui uma narrativa extremamente simbólica para problematizar a questão da exclusão social no Rio de Janeiro. É narrada a realidade do morro de Santo Antônio como espaço de alijamento e ausência do Estado, onde se vê uma mis ria endêmica, ou “indolente”, nas palavras do próprio João do Rio. Para o autor, o texto mencionado de João do Rio aponta para uma cidade dentro de outra. Vejo, no entanto, que se trata de duas cidades que se opõem.

A descrição de indivíduos, comuns ao drama da cidade carioca, muitos deles comprimidos pelo processo de modernização, pode ser ressaltada pelo personagem Braga, da crônica “Velhos cocheiros”, sentindo sua inadaptação ao novo, tendo em vista a sua idade avançada. A miséria das pequenas profissões, muitas delas ocupadas por negros, ciganos e outros desafortunados, evidencia com clareza os problemas sociais que escapavam ao controle da República Velha e colocavam as classes sociais em oposição: “O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados” (JOÃO DO RIO, 2008, p. 55, 56).

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Fonte:
Aciomar Fernandes de Oliveira
: “Etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio: entre o dilema e o silenciamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários - da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: LEA – Literatura e Expressão da Alteridade Orientadora: Prof. Drª. Haydée Ribeiro Coelho). Belo Horizonte, 2010.

Notas
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br

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