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A questão do intelectual e o poder em João do Rio
João do Rio tem sido visto pela crítica como um intelectual
mais alinhado à burguesia que às classes subalternas. No que se reporta às suas
crônicas, em muitos momentos ele se manifesta sensível aos sujeitos que se
encontram à margem do tecido social, como será mostrado mais aqui. Parece-me
bastante significativo considerar que o mesmo dilema que se exerceu em Lima Barreto,
ante os problemas de classificação e formação identitária, produziu em João do
Rio um recalque, não suficiente para calar o seu discurso em relação à
República, mas forte o bastante para silenciar, em muitos momentos, o discurso
étnico.
Ressalto, porém, que o jornalista
parece, não obstante o seu dilema, ter usado em alguns momentos
estratégia discursiva semelhante à utilizada por Machado de Assis, acusado por
muitos de silenciar em relação à questão étnica, mas que, conforme Eduardo de Assis
Duarte (2005), representa uma estética da dissimulação, “escritos de caramujo”,
uma crítica indireta e irônica. Acredito que João do Rio, nesse contexto, busca
o caminho da escrita machadiana, o caminho da dissimulação, na construção de um
discurso contra-hegemônico, e, se não o faz conscientemente, o faz por força do
dilema vivido. Em A Alma encantadora das ruas, há uma sequência de seis crônicas,
sob o título de “Onde s vezes terminam as ruas”. Nessas crônicas, João do Rio descreve,
com riqueza de detalhes, as prisões e os seus habitantes, grande parte deles
negros, inominados. Ao final da crônica “As quatro ideias capitais dos presos”
o narrador declara:
Esses quatro ideais de generalidade dos presos fizeram-me pensar
num país dirigido por eles. Um rei perpétuo governaria os vassalos, por vontade
de Deus. Os vassalos teriam a liberdade de cometer todos os desatinos, confiantes
na proteção divina, e a imprensa continuaria impassível no seu louvável papel
de fazer celebridades. Seria muito interessante? Seria quase a mesma coisa que
os governos normais - apenas com a diferença da polícia na cadeia, como medida
de precaução. Tanto as ideias do povo são idênticas, quer seja ele criminoso
quer seja honesto” (JOÃO DO RIO, 2008, p. 226).
O cronista vale-se de ironia para contestar o Estado.
Aparentemente, a descrição dos fatos ocorridos na prisão não tem maiores
pretensões. No entanto, o narrador inverte a ordem das coisas, ao imaginar um
outro Estado. Os excluídos é que teriam o domínio das estruturas de poder. Esse
enfoque permite-nos observar que João do Rio estava sempre interessado em desmistificar
os universos da aparência e da essência das coisas.
A esse propósito, é preciso relembrar a
percepção de João do Rio acerca da artificialidade do sujeito em
sua época, o que pode ser evidenciado na conferência “O figurino”, publicada no
volume Psicologia urbana,
da qual, a partir das considerações de Renato Cordeiro Gomes, assinalo: “Tudo
no mundo é cada vez mais figurino, obsessão contemporânea [...] Estamos na era da
exasperante ilusão, do artificialismo, do papel pintado, das casas pintadas,
das almas pintadas” (JOÃO
DO RIO, apud GOMES, 1996, p. 16). O que seriam essas almas pintadas? Talvez,
uma representação da artificialidade da vida dos sujeitos que tentam se adequar
às demandas da modernização. O papel, que o indivíduo assume em algumas
circunstâncias, é um “papel pintado”, falseado, simulado. João do Rio consegue registrar
a artificialidade da cidade letrada, mas vive o dilema da fascinação e da oposição
a ela. A própria República parecia pintada, artificial, como as pessoas que a
habitavam.
De acordo com
a filósofa Marilena Chauí, em "Cultura e Democracia",
a sociedade brasileira “ uma sociedade que opera por exclusão, pela prática da violência
e pelo poder hierarquicamente estabelecido e justificado” (CHAUÍ, 2008, p. 43),
e é preciso lembrar pelo menos três coisas importantes para entendermos a nossa
república. A primeira é que a noção de república não é idêntica à de
democracia.
A república, originalmente, é um governo aristocrático, ou
seja, é uma oligarquia. Apenas aqueles que são definidos, no caso de Roma, como
romanos, isto é, participantes da propriedade da terra, é que são considerados
politicamente válidos. Isso significa, ao contrário do que muitos pensam, que
não podemos considerar república e democracia como a mesma coisa. A república, tal
como pensada em Roma, exige a separação entre o espaço privado e o espaço
público, além da existência da constituição escrita, mas ela não compreende
propriamente um direito universal à participação política e ao exercício do
Poder que, na verdade, diz respeito à democracia. Essa compreensão é o que
torna mais claro o tipo de organização política brasileira que dá lugar à
república, sem se ater a princípios democráticos, ou seja, constituindo uma
república onde a população pobre não tem voz. Outro aspecto diz respeito à ausência
de luta popular para constituir a república brasileira, assim como ocorre com
outros eventos históricos, o que denota que, na verdade, a República é constituída
da disposição das próprias classes dominantes para atender aos seus interesses.
Segundo Marilena Chauí, no Brasil, tanto a independência,
quanto depois a república, foram constituídas por golpe de estado. A observação
acurada do processo republicano em outros países da América Latina demonstra a
presença de revoluções e guerras civis. Não que isso seja um componente
essencial, mas se não há participação das classes que se encontram alijadas,
não será possível pensar na observação do seu direito. Não estamos esquecendo
aqui as diversas revoltas sociais ocorridas no período de transição entre
Império e República. No entanto, parece-nos que, na hora de implantar a República,
esses atores sociais foram esquecidos, ou postos à margem do processo. A
república no Brasil é implantada de cima pra baixo, diferentemente dos outros
processos republicanos, em que ela vai da ação popular ao do poder político.
O terceiro ponto é que a nossa república sempre foi
oligárquica, à maneira dos romanos, e, dada a sua origem de implantação, de cima
para baixo, ela sempre foi uma república autoritária. Ela corresponde ao autoritarismo
da sociedade brasileira. A sociedade brasileira, à época de Lima Barreto e
Paulo Barreto, era uma sociedade vertical, hierárquica, que distinguia as pessoas
em superiores e inferiores, com uma enorme dificuldade para assimilar a noção de
direitos, para trabalhar com a noção de soberania, com as ideias de liberdade,
igualdade e participação, mesmo com os ventos da abolição impelindo a nação
para novos rumos. A sociedade republicana operava por exclusão, pela prática da
violência e pelo poder hierarquicamente estabelecido e justificado pela força
econômica.
O lugar de que falam os cronistas constitui uma diferença marcante
em seus textos. Enquanto Lima Barreto parece se instalar ao lado das pessoas comuns,
partilhando dos seus dramas, Paulo Barreto, ainda que penetre em alguns lugares
como o Morro de Santo Antônio de “Os livres acampamentos da Mis ria”, seu olhar
de outro lugar, como se observa em:
Certo já ouvira falar das habitações do morro de Santo Antônio, quando
encontrei, depois da meia-noite, aquele grupo curioso – um soldado sem número
no boné, três ou quatro mulatos de violão em punho. Como olhasse com
insistência tal gente, os mulatos que tocavam, de súbito emudeceram os pinhos, e
o soldado, que era um rapazola gigante, ficou perplexo, com um evidente medo. Era
no largo da Carioca. Alguns elegantes nevralgicamente conquistadores passavam de
ouvir uma companhia deoperetas italiana e paravam a ver os malandros que me
olhavam e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa
simpatia. Acerquei-me (JOÃO DO RIO, 1911, p. 27).
A sua presença, como observador no Morro de Santo Antônio,
representa o lugar do outro, apesar da “escandalosa simpatia”. A reportagem,
escrita na primeira pessoa do singular, já desde o início estabelece o signo da
diferença entre o narrador, pertencente a um grupo de “elegantes” e o seu
outro, composto por mulatos e um soldado sem número no boné. A ausência do
número e o tom da pele representam aqui uma identidade inconclusa. Os
personagens aqui constituem a esfera da inclusão e da exclusão. O olhar marca a
posição de cada sujeito na narrativa: “parava a ver os malandros que me olhavam
e eu que olhava os malandros num evidente início de escandalosa simpatia”.
Conforme Gutemberg Medeiros, “Os livres acampamentos da mis
ria” constitui uma narrativa extremamente simbólica para problematizar a questão
da exclusão social no Rio de Janeiro. É narrada a realidade do morro de Santo
Antônio como espaço de alijamento e ausência do Estado, onde se vê uma mis ria endêmica,
ou “indolente”, nas palavras do próprio João do Rio. Para o autor, o texto
mencionado de João do Rio aponta para uma cidade dentro de outra. Vejo, no
entanto, que se trata de duas cidades que se opõem.
A descrição de indivíduos, comuns ao
drama da cidade carioca, muitos deles comprimidos pelo processo
de modernização, pode ser ressaltada pelo personagem Braga, da crônica “Velhos cocheiros”,
sentindo sua inadaptação ao novo, tendo em vista a sua idade avançada. A
miséria das pequenas profissões, muitas delas ocupadas por negros, ciganos e outros
desafortunados, evidencia com clareza os problemas sociais que escapavam ao
controle da República Velha e colocavam as classes sociais em oposição: “O Rio
tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às
fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as
grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados” (JOÃO DO
RIO, 2008, p. 55, 56).
[...]
---
Fonte:
Aciomar Fernandes de Oliveira: “Etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio: entre o dilema e o silenciamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários - da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: LEA – Literatura e Expressão da Alteridade Orientadora: Prof. Drª. Haydée Ribeiro Coelho). Belo Horizonte, 2010.
Fonte:
Aciomar Fernandes de Oliveira: “Etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio: entre o dilema e o silenciamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários - da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: LEA – Literatura e Expressão da Alteridade Orientadora: Prof. Drª. Haydée Ribeiro Coelho). Belo Horizonte, 2010.
Notas:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra. As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra. O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho. Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da obra em sua totalidade. Disponível em: www.bibliotecadigital.ufmg.br
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