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O papel de José
Bonifácio no movimento da independência
Conferência publicada na Obra Seleta organizada por Barbosa Lima
Sobrinho. INL, 1971.
MEUS SENHORES:
O instinto popular raramente ou nunca se engana. As suas simpatias e
antipatias distribuem-se com equidade. Não se fez preciso que os estudiosos do
passado, acobertando-se com a indulgência da distância no tempo, proclamassem
Dom João VI um rei benemérito. O povo já como tal o consagrara, recusando
associar-se as chufas que durante um século lhe tem sido dirigidas pelos
políticos daquém e dalém-mar, apoiados em historiadores novelistas. No exagero
das caricaturas grotescas o bom senso, devia talvez dizer o bom gosto popular,
soube descobrir os traços genuínos da sagacidade e da bondade.
O fato é que a memória de Dom João VI vivia cercada de estima quando
pretendeu reabilitá-la num assomo de justiça a crítica histórica, que mais não
fez do que corroborar uma feliz intuição nacional, da mesma forma que a crítica
filológica nobilita as felizes expressões plebéias, concedendo-lhes foros
literários. Todos, no Brasil, tiveram a saudade do rei excelente, antes mesmo
que ele, constrangido, nos deixasse, e, quase um ano depois, o encarregado de Negócios
da França, de quem o governo da regência nutria queixas por desafeto à nova
ordem de coisas que se preparava, fazia notar na sua correspondência oficial
que os libelos mais descabelados e mais licenciosos saídos dos tristes prelos
da Capital - os qualificativos são dele - poupavam sempre o monarca português,
a quem nunca deixavam de referir-se com amizade e veneração.
Outro tanto acontece com José Bonifácio. Aclamado por uns, denegrido
por outros, em vida e depois de morto, o sentimento público, quero dizer a voz
popular; atribuiu-lhe a autoria da Independência, cognominando-o de seu
patriarca. Se alguns ainda lhe contestam, movidos por um impulso, que às vezes
degenera em mania de destruir legendas e reformar tradições, com a primazia do
esforço a legitimidade do título, ninguém ousaria desligar seu nome da direção
do movimento, felizmente iniciado e felizmente concluído, da nossa autonomia
política. Seria faltar a verdade essencial dos fatos.
Outros podem compartilhar da glória, mas os seus nomes não são como o
dele representativos do acontecimento. Calar o de José Bonifácio, quando se
trate da nossa emancipação política, seria o mesmo que falar da Reforma sem
mencionar Lutero ou recordar o Ressurgimento escondendo Cavour.
A teoria dos homens providenciais pode ter sido suplantada por uma
doutrina mais conforme com os princípios de uma sociologia inspirada na
harmonia biológica, e, sobretudo, mais adequada às justas reivindicações das
multidões cansadas do anonimato. Os grandes homens subsistirão na História e
continuarão a aparecer no mundo, senão como fatores únicos de acontecimentos
decisivos, pelo menos como representantes supremos das aspirações coletivas, em
todo o caso, como entes excepcionais.
Neste sentido continua José Bonifácio a ser um grande homem visto que o
Príncipe Dom Pedro aparece nas suas mãos como o instrumento precioso - um
instrumento mágico que fosse dotado de consciência e vibrasse com inteligência
própria - por meio do qual se realizaram as aspirações políticas e se preservou
a integridade territorial e moral de uma nação, cujo lugar é amplo na geografia
e cujo papel deverá ser notável na história universal.
Sabeis todos quem foi José Bonifácio. O vosso intenso e legítimo
orgulho paulista dele se desvanece, como se desvanece dos aventureiros sem
temor que rasgaram largos horizontes continentais à população do litoral e
transformaram em fazendas do interior esses arraiais da costa, embebidos na
contemplação do vasto oceano que lhes trazia, frescas nas suas brisas as
recordações das aldeias brancas, da "casinhas da serra" que o poeta
mais tarde cantaria "co'a lua da sua terra".
Há que respeitar-vos o sentimento e partilhá-lo. Os bandeirantes
paulistas foram os "conquistadores" brasileiros, os criadores desta
pátria que o ministro de 1822 conseguiu - ele mais do que ninguém - manter
ainda sob o cetro imperial de um soberano imaginoso, já quase um romântico,
cheio de vida, com todas as ilusões e esperanças desta, e prestigioso tanto
porque nascera príncipe como porque tinha por si a mocidade, o garbo, a força e
a exuberância.
O santista era um sábio, um mineralogista de merecimento. A política
foi buscá-lo no meio dos seus quartzos e dos seus calcários. Latino Coelho,
incumbido do seu elogio acadêmico em Portugal, país ao qual pertence José
Bonifácio pelos estudos da sua mocidade e pelas preocupações intelectuais da
sua virilidade, no-lo descreveu, em seu soberbo estilo escultural, percorrendo
a Europa culta, centro por centro, ouvindo professores eminentes das
Universidades francesas, alemãs e suecas, visitando laboratórios, coleções e
minas.
A ciência, porém, lhe não consumiu outros ardores. Foi soldado do
batalhão acadêmico que se formou ao tempo das invasões francesas; a política
empolgou-o num instante crítico da nossa existência nacional, e até o poeta que
versejara a margem do Mondego e na Bertioga reapareceu no exílio.
Em Bordéus, com efeito, no ano de 1825, foi que Américo Elísio - ainda
duravam os apelidos bucólicos dos árcades do século pastoril, num prolongamento
patriótico mitológico - autenticou seus arroubos, colecionando suas composições
de uma inspiração emperrada mas de um estro sensual:
Se te vejo, as entranhas se me embebem
De insólito alvoroço;
O sangue ferve em borbotões nas veias!
Sou todo lume, fico todo amores!
De insólito alvoroço;
O sangue ferve em borbotões nas veias!
Sou todo lume, fico todo amores!
Ao mesmo tempo que publicava essas suas cantatas e odes, deixava ele
correr o fel dos seus despeitos nas cartas que hoje são em parte do domínio de
toda a gente, e nas quais se mostra esquecido de quando metrificava em Coimbra,
dirigindo-se ao amigo Armindo:
Ignorados da "turba" viveremos
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridículas
Frenéticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.
Da singela virtude acompanhados,
Enquanto com quimeras vis, ridículas
Frenéticos mortais a vida estragam
No seio de mil males e mil crimes.
José Bonifácio foi um homem de sentimentos muito vivos: os seus
entusiasmos eram fortes como os seus ódios. Ainda não chegara ao Rio, chamado
pelo Regente para aconselhá-lo sobre a organização do Governo, que de português
ia passar a brasileiro, e ajudá-lo a por cobro a uma desordem que tocava em
anarquia, e já o encarregado de Negócios da França, instruído da sua reputação,
o descrevia para Paris como um homem fougueux et très ardent. Este foi o
seu principal defeito, se defeito se pode chamar a manifestação irreprimível de
um temperamento apaixonado.
O referido agente diplomático, Coronel Maler; que também pecava por
arrebatado... nos escritos por não poder sê-lo nos atos, ao transmitir a
notícia da nomeação de José Bonifácio (o qual vinha ostensivamente na qualidade
de deputado da junta de São Paulo perante o Príncipe Regente) para ministro do
Interior e dos Negócios Estrangeiros, ao mesmo tempo que informava a Corte das
Tulherias do bom conceito geral que mereciam os conhecimentos do político,
ontem homem de estudo, elevado ao poder, inteirava-a da fama certa de impetuoso
e exaltado de que o agraciado gozava sem injustiça.
Do que nenhuma dúvida nutria o correspondente diplomático em questão
era de que "Monsieur d'Andrada" tomaria ascendente sobre o espírito
de Dom Pedro, que parecia firmemente disposto a abraçar os interesses nacionais
e se tornaria o diretor influente dos seus colegas de gabinete. Eram estes
colegas: Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o antigo capitão-general de Mato
Grosso e de Pernambuco, que tivera o ânimo de transitar por terra de um dos
seus dois governos para outro, numa dura, posto que instrutiva peregrinação
pelo imenso sertão, mas não tivera ânimo igual para abafar a conspiração donde
surgiu a revolução de 1817, agora, não obstante, alvo da confiança do Regente e
encarregado das dificílimas finanças de um país de tesouro exausto; o
Marechal-de-Catupo Joaquim de Oliveira Álvares, português do velho Reino,
casado e estabelecido no novo, onde combatera na fronteira do Rio Grande contra
a malta de Artigas, e acabava de comandar as tropas brasileiras reunidas no Campo
de Santana, a 12 de janeiro de 1822, para fazerem frente à divisão portuguesa
de Jorge de Avulez, e Manuel Antônio Farinha, que, tendo sido o único do antigo
gabinete a prestar-se a continuar a assinar o expediente, permanecia como
Ministro da Marinha.
Os acontecimentos que originaram a substituição do gabinete são
geralmente conhecidos. Achava-se o Príncipe no teatro na noite de 12 de
janeiro, quando o foram prevenir da atitude abertamente insubordinada da
guarnição portuguesa que, ameaçada em segredo de desarmamento, entendia
protestar contra a humilhação e jurava carregar com Dom Pedro para Lisboa,
assim desmentindo praticamente o famoso "fico" pronunciado três dias
antes.
As Cortes, no intuito de bem desagregarem o Reino ultramarino e
privarem os sentimentos políticos brasileiros do seu centro natural de
convergência, tinham decretado o estabelecimento de juntas provisórias, uma em
cada província, correspondendo-se "diretamente" com a soberana
assembléia das Necessidades, e decidido o regresso à Europa do herdeiro da
Coroa, a fim de seguir, nos países neste sentido mais adiantados, um curso
prático de singeleza democrática e de nulidade constitucional. Precisamente
contra semelhantes resoluções se rebelaria a junta de São Paulo, que, movida
por José Bonifácio, a 24 de dezembro de 1821, convidava a junta de Minas a
reunir-se a ela e fazerem causa comum, constituindo um núcleo de resistência.
Desta resistência, por essa deliberação, de súbito o paulista se tornava a
alma.
Ao propalar-se o boato de um motim incomparavelmente mais grave do que
qualquer outro e tinham sido frequentes desde um ano - presenciado pelo Rio de
Janeiro, a sala de espetáculos do Rocio ficou deserta. O motim, porém, gorou.
Os brasileiros acudiram tão pressurosamente aos seus postos que, ao alvorecer,
mais de 4.000 homens, em grande parte gente de milícia trazida do interior, se
tinham congregado em armas. Força foi aos regimentos de Avulez, em menor
efetivo, capitularem e anuírem à intimação de retirada para a Praia Grande,
donde rompeu um manifesto, mas nenhuma hostilidade material. Os nossos
movimentos políticos sempre começam incruentos, como que assim se denunciando a
nossa instintiva repugnância às sangrentas discórdias civis.
Se estava vencida na Corte a resistência européia - prenúncio de uma
fácil emancipação da capital - restava o problema mais custoso, que era o de
assimilar o centro o espírito provincial, e expelir os focos de ocupação
portuguesa que mantinham um desequilíbrio nacional, sintomático desse período
de transição política. A cristalização não podia aparecer perfeita enquanto o
embaraçassem matérias estranhas e a primeira coisa a fazer devia ser
eliminá-las - pareceu ao naturalista, numa feliz aplicação ao mundo moral das
regras elementares do mundo físico.
José Bonifácio entrava na política mais ativa que um país pode
comportar, no outono da existência humana, com um nome feito no mundo
científico da época durante quadra mais repousada, e uma farta experiência da
vida com que sustentar a agitação que avocara. Tinha 58 anos em 1821, assistira
durante mais de dez na Europa dalém Pirineus, colaborara distantemente em
publicações especiais, privara com teóricos e industriais de muitos países, e
em Portugal exercera cargos no professorado, na magistratura e na administração.
Observara aspectos vários da natureza e aspectos vários da sociedade, adquirira
traquejo e nas idéias alcance, consolidara a feição prática do seu espírito
como lha emprestara a natureza dos seus principais estudos, e tingira de
liberalismo, senão político, pelo menos econômico, o seu cabedal de planos de
utilidade pública.
Talvez fosse, era mesmo, um delineador mais do que um executor.
Porventura lhe faltava em maleabilidade de ação o que lhe abundava em
sagacidade de pensar. O representante diplomático americano - e aos americanos
não falta a perspicácia- teve esta impressão do ministro de Dom Pedro e
exarou-a na sua correspondência para Washington, onde a encontrei. Para a crise
da independência José Bonifácio foi todavia o homem indicado, o homem adequado.
Teve habilidade para jogar com as circunstâncias favoráveis e teve
decisão para arcar contra as circunstâncias adversas, cabendo naquela fase o
ser brusco em algumas ocasiões e o ser enérgico em todas. Depois, quando o
aparelho constitucional entrou em movimento com suas molas ainda perras, é que
se fazia preciso mão mais delicada para dirigir-lhe a marcha e ajeitar-lhe o
andamento; não só uma vista afeita aos trabalhos do microscópio para examinar
nos seus menores detalhes a composição do complicado maquinismo.
O representante da França, da França dos Bourbons, o qual não suportava
com paciência quanto tresandasse a liberal, negava até ao ministro da
independência madureza nas idéias, ordem metódica nos projetos, o que ele
chamava um desenvolvimento sistemático no seu conjunto e aplicação, como se
naqueles momentos difíceis e mesmo angustiosos, fosse coisa muito possível a
serena realização de um programa fixo de planos.
A essas críticas, porém, responde melhor do que qualquer defesa
literária o êxito da política servida pelo vosso conterrâneo, esse a quem o
Coronel Maler descrevia nos seus ofícios para Paris como "uma cabeça
vulcânica apesar das cãs, confundindo tudo no falar e no administrar, ora
divagando, ora perdendo o rumo levado pelo impulso de seu patriotismo exaltado
e pelo seu ódio às Cortes". Maler sobretudo se espantava - reputava na sua
frase um fenômeno - de que um homem de saúde tão precária como era José
Bonifácio pudesse berrar havia então dez meses (este ofício é de outubro de
1822) sem estar de todo esfalfado.
O reverso da medalha gravada pelo francês é tão lisonjeiro que merece e
deve ser conhecido, para honra do diplomata e para glória do político. É como
se de um lado o perfil mais duro do personagem acusasse um queixo redondo e voluntarioso
e um nariz aquilino e dominador, e do outro o rosto de frente deixasse ver uns
olhos de expressão bondosa e uma larga testa inteligente. O artista que o era
Maler; em estilo oficial pelo menos - põe com efeito mais de uma vez em relevo
as sãs opiniões do patriota, o seu coração excelente, o seu inexcedível
desinteresse, a sua detestação dos princípios antimonárquicos, que combatia com
furor. Aí estava aliás um ponto de concordância, portanto, de simpatia entre os
dois.
Não estou fazendo mais do que reproduzir textualmente os dizeres do
Coronel Maler, que das suas conversas com José Bonifácio, e eram frequentes, se
julgou autorizado a concluir a harmonia das preferências
monárquico-constitucionais do primeiro-ministro brasileiro com as bases da Carta
francesa da Restauração.
É fato que, como governante, José Bonifácio zelou sempre os foros do
Executivo e teve a mão pesada quando se tratava de repressão, e pode bem ser
exato o que referia o encarregado de Negócios, de nutrir o patriarca uma
verdadeira ternura dinástica, ele próprio afirmando não poder ver sem viva
comoção as crianças reais, os pequeninos rebentos nacionais da casa de
Bragança. Já tínhamos então o Império, pois que este outro ofício é de novembro
de 1822.
O "Elogio" de Dona Maria I, pronunciado em Lisboa, em apurada
linguagem, no ano de 1817 e no seio da Academia Real das Ciências pelo seu
ilustre sócio paulista, é um testemunho considerável em favor daquele ardor
monárquico, do que em inglês se chamaria com mais simpleza e mais precisão o loyalism
de José Bonifácio. "Louvar um soberano virtuoso é acender farol em
torre altíssima, para atinarem os outros a carreira" - foi, nas suas
palavras, a regra a que obedeceu a elaboração desse panegírico de encomenda, de
uma intensa devoção dinástica, deve antes dizer-se de uma marcada deferência
cortesã no seu estilo engalanado, nos seus atavios pagãos, nas suas
reminiscências clássicas, nas suas citações frequentes de filósofos gregos e
romanos, na sua sensibilidade que era contudo em demasia afetada para não ser
exagerada.
Era, pois, José Bonifácio um adversário declarado das tendências
republicanas, pelas disposições do seu temperamento tanto quanto pelos
conselhos da sua inteligência: o ideal consistia então nas democracias tão
liberais que chegassem a ser ingovernáveis. Não bastava no entanto à sua visão
de estadista evitar a república. Ponhamos ao seu crédito que mais urgente e
mais necessário lhe apareceu manter a própria nacionalidade brasileira ameaçada
de dissolução.
O regímen não passava afinal de coisa secundária diante desse magno
problema, que, de resto, uma vez resolvido pelo prestígio do representante da
dinastia e pela convicção geral do interesse patriótico, assegurava a um tempo
a união nacional e a estabilidade monárquica.
Antes mesmo de ser ministro de Dom Pedro e de se transportar para o que
devia ser o centro da nacionalidade em formação, já José Bonifácio compreendera
admiravelmente a situação, abraçando com olhar agudo toda a perspectiva. Ao
serviço do seu ideal, e nenhum mais nobre se poderia dar do que evitar o
naufrágio de uma agremiação moral e solidária que custara tanto sangue e
representava tantos esforços, pusera ele aquela combatividade que o levara,
professor, a pegar em armas com seus discípulos para enxotar de Portugal os
agressores franceses.
É mister ter bem presente que o Brasil oferecia à tentativa de
recolonização das Cortes uma seara ótima de realidades, não só um terreno
fértil em esperanças. Onde quer que se denunciava o maior vigor do elemento
português, tanto quanto onde se revelava o maior fermento do espírito local, na
Bahia e no Maranhão como em Pernambuco e no Ceará, em todo o Norte enfim, a
idéia de rompimento com a capital de origem colonial e de ligação direta com a
sede das Cortes e da realeza, das autoridades supremas da nação em sua nova
classificação hierárquica - as Cortes primando ~ realeza - recebera um
acolhimento o mais simpático.
Com ela pensava lucrar os que meditavam a recolonização constitucional
- muito parecida nos seus projetados processos com a colonização absolutista -
e não menos os que aspiravam à independência democrática, mais acessível ou
pelo menos mais compatível com o fato de uma libertação de que a emancipação
com uma monarquia.
O Sul, não obstante a preocupação regional ser aí também viva e muito
imperfeita a solidariedade moral, então impediu a fragmentação do Brasil; e no
Sul foi o vosso conterrâneo quem, decidindo a junta de São Paulo a prestar
obediência ao Rio de Janeiro e reconhecer a supremacia do Príncipe-Regente "com
autoridade própria", arrastou as demais divisões administrativas para a
esfera de influência paulista, constituindo esse traço um primeiro esboço de
união.
A província de Minas Gerais, apesar da sua superior população, dependia
pela sua localização central das do Rio e São Paulo, sem cujo acordo ficaria
até privada das suas melhores comunicações com o exterior. Paraná não existia
ainda; Santa Catarina pouquíssimo valia isoladamente, e São Pedro do Sul era
por demais despovoado e exposto às correrias dos guerrilheiros orientais para
que pudesse desprezar o interesse de uma união. O influxo de São Paulo
estendeu-se até a Cisplatina, onde, a 19 de julho de 1821, ficara admitida, sob
os auspícios do conquistador Lecor, a suserania fluminense na pessoa do príncipe-regente
e depois Defensor Perpétuo do Brasil, mas onde era instável o equilíbrio pelo
valor do fator militar português.
José Bonifácio entrou para os conselhos de Dom Pedro certo de que a
unificação nacional se efetuaria se a Coroa - e a Coroa estava mais sobre a
cabeça do filho que sobre a do pai, coacto pelas Cortes - quisesse desempenhar
o seu papel tradicional de protetora das regalias populares contra uma
oligarquia de adventícios, como outrora as defendera contra o feudalismo; certo
também de que no momento que atravessavam a Europa culta e suas descendências,
não mais se podia dizer dependências ultramarinas, o espírito liberal, um certo
espírito liberal bem entendido, deveria caracterizar a ação da autoridade.
A força era indispensável, mas já se não suportaria a tirania.
Acreditava assim José Bonifácio na eficácia de uma legislação esclarecida,
produto sadio da ciência do Governo que, nas suas palavras elevadas e
orientação prática, devia consistir "em indagar o que pode ser um Estado
para corresponder aos seus mais altos fins; em conhecer todos os seus recursos
presentes e futuros, e todas as suas faltas atuais". Nisto, como no gosto
extremo pelas ciências naturais, era ele um digno filho do século XVIII, o
século da regeneração intelectual e do paternalismo administrativo.
No "Elogio" da "Óptima Maria", conforme apelidava o
acadêmico a excelsa soberania defunta, depara-se-nos uma frase que trai a
vibração da alma do que apenas era então um homem de estudo, ainda não um homem
de governo, quando tocada pelo afã das conquistas morais. Referindo-se aos
decretos reduzindo os segredos dos acusados, regulando a jurisdição ilimitada
da polícia, declarando e restringindo a jurisdição dos donativos, o orador
acrescentava como comentário:
Foi esta uma prova mais do quanto a nossa Rainha desejava condescender
com as novas luzes, espalhadas pela Europa, começando assim gradualmente a
limpar o edifício social da ferrugem de tempos bárbaros e escuros.
Não deve surpreender-vos que, quem assim pensava, fosse, caso raro
entre os nossos homens públicos da época, infenso à instituição servil, que por
ele se haveria extinguido quase simultaneamente com o resto de dependência
colonial que ficara após o reinado americano de Dom João VI e a organização do
reino do Brasil. Não era oportunista em tal matéria, e se não obteve ganho de
causa o ilustre paulista, em seu adiantado modo de ver neste ponto, foi porque
os acontecimentos decidiram diversamente, não porque lhe faltassem coragem e
vontade.
O predomínio mesmo de José Bonifácio no Governo durou pouco: cessou com
a cessação da crise cuja terminação foi principalmente obra sua. Os Andradas
foram derrubados e votados ao ostracismo quando, por um lado, o Príncipe,
naturalmente arvorado em emblema da união, mostrou ter sugado no berço o leite
do despotismo, e por outro lado os elementos radicais, contidos ou contendo-se
durante a luta pela integridade nacional, se não quiseram submeter por mais
tempo, cederam às suas paixões e levantaram suas resistências. Colocado entre
as duas correntes opostas, no ponto pior do embate, o estadista da
Independência perdeu o prumo e desgarrou: também estava cumprida a sua alta
missão, que fora a de salvar o Brasil por meio do Império constitucional.
A história das relações íntimas entre Dom Pedro e José Bonifácio, entre
Telêmaco e Mentor, é uma história ainda por fazer e para a qual faltam
infelizmente as contribuições de caráter pessoal que mais interessante a
tornariam. Os Andradas, transformados em "corcundas", depois da
abdicação, partidários quase únicos no Brasil da restauração imperial do Duque
de Bragança, cujas tendências autoritárias reconheceram afinal quanto se
casavam com a concepção que eles tinham da autoridade, calaram seus
ressentimentos de 1823 e não deixaram revelações bastantes ou interessantes
bastante.
Um momento houve, que a ninguém escapa, no qual o ministro se impôs ao
Príncipe como se impôs à situação. Dom Pedro procurava com a maior assiduidade
e a qualquer hora o seu conselheiro na modesta casa por ele ocupada. Maler
conta que, passando pelo Rocio a cavalo, na ocasião de uma dessas visitas,
ouvira que um popular, com aquela zombaria tão peculiar à população fluminense
e as mais das vezes apropriada e conceituosa, alcunhava o Regente de
"ajudante-de-campo de José Bonifácio".
Não faltaria quem fizesse chegar a São Cristóvão ditos semelhantes.
Muitos seriam os que, uns por pura maldade, outros por inveja rancorosa,
tentariam envenenar relações que eram mais a conjugação de duas energias do que
o encontro de duas simpatias.
Só os homens verdadeiramente superiores aparecem despidos de pequenas
invejas, e são raríssimos. Poucos são também os reis que, dotados de imaginação
e atividade, suportam a colaboração de grandes ministros. Ora, José Bonifácio
chegara a crescer tanto em popularidade, em poder e em iniciativa, que ofuscava
o trono. Aliás, sua influência se derivava em boa parte da aura que cercava o
Príncipe-Regente depois das suas manifestações brasileiras; assim como o
prestígio de Dom Pedro proviera muito do acerto das resoluções promovidas pelo
seu conselheiro.
A inteligência entre estas duas forças repousava sobre uma base
concreta, pois que era recíproca a vantagem; mas ao se separarem, Dom Pedro
teve o arranco de quem sacudia uma canga e José Bonifácio a melancolia de quem
lidara com um ingrato, ocorrendo que a ambos assistia a razão. Um e outro
possuíam a índole violenta e o gesto pronto. A continuação da associação
requeria abnegação, que tendia, porém, a relaxar-se uma vez passada a crise, e
exigia delicadeza, que não era o predicado característico de nenhum dos dois
personagens.
Quando digo delicadeza, quero referir-me, é claro, à polidez
superficial das maneiras, não à delicadeza íntima dos sentimentos. José
Bonifácio tinha o doesto fácil e grosseiro. As viagens pelos países mais cultos
não tinham envernizado completamente esse português - que o era, de pátria até
1822, de educação e feitio toda a vida - forte na sua delgadeza, colérico, de
poucas contemplações estudadas e de bastante jactância. A sua alma, porém, tinha
vibrações que desciam até às senzalas: alma fidalga num invólucro
comparativamente rústico, o que vale mais do que o contraste oposto.
Também Dom Pedro tinha uns arrancos brutais que eram antes
manifestações da falta de educação familiar de que se ressentira a sua
infância, e da incoerência, não quero dizer do desbragado do meio em que
desabrochara a sua mocidade; mas não faltava, não podia faltar uma
sentimentalidade rica a quem se despojou altivamente de uma coroa para ir
defender em incertíssima contenda os direitos de uma criança e se prestava a
acabar como regente em nome da filha, tendo começado a vida pública como
regente em nome do pai e sido, no intervalo, imperador e rei e o outorgador
generoso e sincero - porque tanto era sincero no bem como no mal - de duas
cartas constitucionais, consagrando em suma por parte do direito divino todas
as conquistas políticas, isto é, todas as liberdades da Revolução.
É pena que a boa inteligência do começo não houvesse podido manter-se
de lado a lado, entre soberano e ministro de forma a organizar-se a vida
autônoma do país sobre os auspícios dessa dupla individualidade, exercendo-se
associada numa mesma orientação e sob uma única inspiração, de fato
constituindo uma só ação.
José Bonifácio dissera ao pronunciar o elogio da Rainha Dona Maria I -
e cito mais de uma vez esta oração acadêmica porque foi escrita na virilidade,
mas quando ainda não pesavam sobre seus ombros, nem coisa alguma indicava que
dentro em pouco pesariam, as responsabilidades do poder - estar "capacitado
de que os grandes projetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e
examinados por muitos; de outro modo desvairam as opiniões, nascem disputas e
rivalidades, e vem a faltar aquele centro comum de força e de unidade, que tão
necessário é em tudo, e mormente em objetivos de suma importância".
Um só homem para conceber e executar, entendia ele. Mas não conhecera a
mitologia greco-romana um deus de duas caras dessemelhantes, e não encerrava o
panteão budista uma deusa de cem braços independentes? Por que se não
verificaria politicamente uma anormalidade anatômica que não fosse um embaraço
à existência fisiológica? Porque se não combinariam na personalidade a diretriz
e o cérebro amadurecido do homem de estudo e o braço juvenil do homem de impulsos
e de entusiasmos? A fusão seria perfeita - nada a contrariava - de um
pensamento reflexivo e de uma vontade espontânea. A unidade moral até se
acomodava com a dualidade física.
O encarregado de Negócios da França, um observador arguto, malgrado os seus
preconceitos reacionários, julgava o estadista mais de molde a concordar com o
Príncipe do que a guiá-lo com circunspecção; mas a verdade é que se Dom Pedro
se esqueceu inteiramente de que era herdeiro de um Reino Unido, foi porque a
seu lado havia quem lhe mostrasse a cada passo as vantagens de ser imperador.
É fato que se Dom Pedro foi por vezes imprudente melhor dito
impaciente, numa ocasião aliás em que as delongas eram contra-indicadas, por
seu lado José Bonifácio não pecava pelos hábitos de procrastinação. A ambos se
pode atribuir a origem de vários instantes sediciosos dessa série agitada de
dias que precedeu e seguiu de perto a Independência.
A reflexão é velha e quase banal - mas as banalidades não são mais do
que verdades repetidas - de que nas crises nacionais, e em quaisquer momentos
de apuro, aos governantes cabe dirigirem o movimento, sob pena de serem levados
na enxurrada dos acontecimentos. Faz-se, contudo, mister que a direção se não
descubra muito, para não provocar os ciúmes ou ofender as veleidades de
rebeldia dos que disfarçadamente se pretende tutelar ou pelo menos encaminhar.
Dom Pedro e José Bonifácio aplicaram a máxima com a restrição, e
deram-se bem com ambas. Uma vez realizada a separação, a saber, proclamados
rotos os laços de dependência entre as Cortes de Lisboa e as províncias do
Brasil, ficava por fazer alguma coisa de essencial que era ajeitar no novo
molde esse imenso corpo amorfo e de uma plasticidade desigual, que tanto podia
vir a ser uma monarquia centralizada como uma república federativa - uma
confederação neste caso de escassa duração.
O governo constituído não abriu mão do leme, para não naufragar em
algum escolho, mas aparentou deixar o navio flutuar à mercê das ondas. Foram os
republicanos, os adeptos das doutrinas democráticas pelo menos, que inventaram
de fato o Império. Foi Ledo quem redigiu, fez imprimir e afixou a proclamação
de 21 de setembro, sugerindo a aclamação. Foi José Clemente Pereira quem
expediu, em nome da sua Câmara, emissários às outras municipalidades para
aderirem à idéia que, adotada na penumbra de uma loja maçônica à qual pertencia
Dom Pedro, trazia em si uma satisfação vibrante do amor-próprio nacional e a
promessa de demonstrações positivas da munificência imperial.
O príncipe relutou, para salvar as aparências. José Bonifácio fingiu
desinteressar-se da forma e só fazer questão do fundo, mergulhando na
passividade para permitir a atividade aos agitadores profissionais: estes
marcharam para a frente e a procissão acompanhou-os.
Todos, aliás, acharam no cortejo o seu lugar: só o corpo diplomático
estrangeiro, de que tinham permanecido uns restos na debandada da corte de Dom
João VI, com atribuições antes consulares, ficou desnorteado, sem bem saber que
atitude lhe cumpria, ou melhor, sem ousar definir precisamente sua atitude.
Naturalmente refugiaram-se, aqueles dentre o corpo que revestiam caráter
diplomático, na abstenção, que é um recurso sempre aberto aos agentes
internacionais.
O encarregado de Negócios da Áustria, um Barão Mareschal, que era muito
inteligente e cuja situação mais delicada se fazia e mais perplexo o tornava
pelo fato de ser a nova imperatriz uma arquiduquesa da linhagem dos Habsburgos,
inventou uma dessas doenças que se denominam diplomáticas - antonomásia de
fingidas - para desculpar-se de não ir ao Paço no dia 12 de outubro -
aniversário de Dom Pedro e ao mesmo tempo data escolhida para a aclamação
imperial - e rogar ao seu colega de França, de, na sua qualidade de primus
inter pares, apresentar por ele as desculpas e as congratulações.
O de França, que não pecava por tolo, respondeu-lhe muito francamente
que não compareceria na corte fluminense, por motivo das alterações aí
sobrevindas, sem novas instruções do seu governo, e que, portanto, reduzido a
zero em vez de um, não lhe era lícito por diante dos olhos "de Suas
Altezas" o "triste" boletim de saúde do amigo. Os consules de
Inglaterra e da Rússia- que ainda eram Chamberlam e Langsdorff -, despidos como
andavam de caráter diplomático, não tinham igual motivo para dúvidas e subterfúgios,
e não pensaram sequer em ausentar-se.
Uma prova, entretanto, indiscutível de que José Bonifácio não
abandonara de fato o timão aos representantes municipais ou populares, está em
que pôs embargos a uma manifestação política que se projetava simultânea com o
oferecimento da Coroa, e que consistia em obter do soberano - impor-lhe seria
mais exatamente o termo - a sua prévia sanção da Constituição que viesse a ser
elaborada pela assembléia legislativa adrede convocada.
Teles da Silva, o futuro Marquês de Resende, foi quem deu parte a Maler
do desígnio, que era o de José Clemente e seus amigos e do furor de José
Bonifácio ao ouvir falar em tal. O plano, contudo, não vingou na reunião
pública do Senado da Câmara a 10 de outubro, da qual a ata publicada fornece
uma noção imperfeita, e por isso se transmudou em júbilo a cólera do ministro,
que o agente francês nessa ocasião descrevia preso de uma grande exaltação
patriótica que buscava vazão numa extrema volubilidade de língua.
Não obstou em todo caso o recuo da Municipalidade que no teatro, onde o
espetáculo do palco era menos interessante e menos dramático que o da sala, e
no Largo do Rocio, cena dos motins e algazarras, o povo, desafiando a chuva
torrencial que caía, misturasse com seu brados festivos e sinceros em honra do
jovem imperante frequentes e entusiásticos vivas à Constituição liberal do
Brasil.
Na verdade, se todos num momento dado aclamavam e aplaudiam o Império,
cada qual pretendia que o imperador fosse a seu jeito. A lua-de-mel foi por isso
curta entre conservadores e demagogos, se é que estas designações correspondem
fielmente, uma aos que professavam pela autoridade um respeito mais decidido, e
outra aos que antepunham às regalias soberanas o fervor pelas franquias
populares, nas suas ilusões apelidando o Imperador o primeiro democrata do
Império e apontando-o, muito erradamente decerto, como prestes a converter-se,
se tal fosse a vontade geral, num simples cidadão da República Brasileira.
Mercê dessa ironia tão comum na história, as circunstâncias levaram o
ministro conservador de 1822
a afetar em 1823 modos de demagogo, sendo envolto nos
sucessos que assinalaram a dissolução violenta da Constituinte - ele que
pessoalmente tinha o orgulho não só das tradições intelectuais de ascendentes próximos,
mas também da fidalguia da sua linhagem, que entroncava em casas nobres do
Reino; e cujas inclinações iam para uma Constituição pautada pela Carta
francesa, na qual se alentasse o poder sem se sacrificarem as liberdades.
No seu espírito mesmo travavam luta, para se ajustarem numa fórmula
estereotipada a Benjamin Constant, a jurisprudência severa do antigo
desembargador da Relação do Porto, educado na tradição coimbrã e o filosofismo
do discípulo das reformas de Konigsberg, o estudioso do criticismo racionalista
de Kant, do idealismo transcendental de Fichte e do metafisismo agudo de
Schelling.
Aquela aspiração de conciliação política continuou de pé depois dele, e
não é seu menor título à nossa consideração o haver no momento necessário
refreado a desordem nas ruas, assim como oportunamente contivera a desordem nos
espíritos, quando esta última podia ter acarretado, e acarretaria fatalmente, a
decomposição desta nossa nacionalidade que não lograria, fragmentada, cumprir o
destino que lhe anda certamente reservado, de que José Bonifácio expressou a
confiança em versos que se acham recordados em bronze no pedestal do monumento,
no Rio, do descobridor do Brasil, e a que o nosso eminente representante na
Conferência da Haia, o Sr. Rui Barbosa, começou a emprestar realidade perante
todo o mundo civilizado, nas suas admiráveis orações e propostas, vazadas nas
formas de bronze do Direito e da Justiça.
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Fonte:
Oliveira Lima: "O Movimento da Independência". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Oliveira Lima: "O Movimento da Independência". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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