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Como se há de haver o senhor do engenho com
seus escravos
Os escravos são as mãos e os pés do senhor do
engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar
fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo como se há com eles, depende
tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso, é necessário comprar cada ano
algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas. E porque
comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que outros e de forças
muito diferentes, se há de fazer a repartição com reparo e escolha, e não à
cegas. Os que vêm para o Brasil são ardas, minas, congos, de São Tomé, de
Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique, que vêm nas naus das Índia. Os
ardas e os minas são robustos. Os de Cabo Verde e de São Tomé são mais fracos.
Os de Angola, criados em Luanda, são mais capazes de aprender ofícios mecânicos
que os das outras partes já nomeadas. Entre os congos, há também alguns
bastantes industriosos e bons não somente para o serviço da cana, mas para as
oficinas e para o meneio da casa.
Uns chegam ao Brasil muito rudes e muito
fechados e assim continuam por toda a vida. Outros, em poucos anos saem ladinos
e espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã, como para buscarem modo de
passar a vida e para se lhes encomendar um barco, para levarem recados e
fazerem qualquer diligência das que costumam ordinariamente ocorrer. As
mulheres usam de fouce e de enxada, como os homens; porém, nos matos, somente
os escravos usam de machado. Dos ladinos, se faz escolha para caldeireiros,
carapinas, calafates, tacheiros, barqueiros e marinheiros, porque estas
ocupações querem maior advertência. Os que desde novatos se meteram em alguma
fazenda, não é bem que se tirem dela contra sua vontade, porque facilmente se
amofinam e morrem. Os que nasceram no Brasil, ou se criaram desde pequenos em
casa dos brancos, afeiçoando-se a seus senhores, dão boa conta de si; e levando
bom cativeiro, qualquer deles vale por quatro boçais.
Melhores ainda são, para qualquer ofício, os
mulatos; porém, muitos deles, usando mal do favor dos senhores, são soberbos e
viciosos, e prezam-se de valentes, aparelhados para qualquer desaforo.
E,contudo, eles e elas da mesma cor, ordinariamente levam no Brasil a melhor
sorte; porque, com aquela parte de sangue de brancos que têm nas veias
e,talvez, dos seus mesmo senhores, os enfeitiçam de tal maneira, que alguns
tudo lhes sofrem, tudo lhes perdoam; e parece que se não atrevem a
repreendê-los: antes,, todos os mimos são seus. E não é fácil cousa decidir se nesta
parte são mais remissos os senhores ou as senhoras, pois não falta entre eles e
elas quem se deixe governar de mulatos, que não são os melhores, para que se
verifique o provérbio que diz: que o Brasil é o inferno dos negros, purgatório
dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas; salvo quando, por alguma
desconfiança ou ciúme o amor se muda em ódio e sai armado de todo o gênero de
crueldade e rigor. Bom é valer-se de suas habilidades quando quiserem usar bem
delas, como assim o fazem alguns; porém não se lhes há de dar tanto a mão que
peguem no braço, e de escravos se façam senhores. Forrar mulatas desinquietas é
perdição manifesta, porque o dinheiro que dão para se livrarem, raras vezes sai
de outras minas que dos seus mesmo corpos, com repetidos pecados; e, depois de
forras, continuam a ser ruína de muitos.
Opõem-se alguns senhores aos casamentos de
escravos e escravas, e não somente não fazem caso dos seus amancebamentos, mas
quase claramente os consentem, e lhes dão princípio, dizendo:
Tu, fulano, a seu tempo, casarás com fulana;
e daí por diante os deixam conversar entre si como seja fossem recebidos por
marido e mulher; e dizem que os não casam porque temem que, enfadando-se do
casamento, se matem logo com peçonha ou com feitiços, não faltando entre eles
mestres insignes nesta arte. Outros, depois de estarem casados os escravos,os
apartam de tal sorte, por anos, que ficam como se fossem solteiros, o que não
podem fazer em consciência. Outros, são tão pouco cuidadosos do que pertence à
salvação dos seus escravos, que os têm por muito tempo no canavial ou no
engenho, sem batismo; e, dos batizados, muitos não sabem quem é o seu Criador,
o que hão de crer, que lei hão de guardar, como se hão de encomendar a Deus, a
que vão os cristãos à igreja, porque adoram a hóstia consagrada, que vão a
dizer ao padre, quando ajoelham e lhe falam aos ouvidos, se têm alma, e se ela
morre, e para onde vai, quando se aparta do corpo. E, sabendo logo os mais
boçais como se chama e que é seu senhor, quantas covas de mandioca hão de
plantar cada dia, quantas mãos de cana hão de cortar, quantas medidas de lenha
hão de dar, e outras cousas pertencentes ao serviço ordinário de seu senhor, e
sabendo também pedir-lhe perdão, quando erraram e encomendar-se-lhe para que os
não castigue, com prometimento de emenda, dizem os senhores que estes não são
capazes de aprender a confessar-se, nem pedir perdão a Deus, nem de rezar pelas
contas, nem de saber os dez mandamentos;tudo por falta de ensino, e por não
considerarem a conta grande que de tudo isto hão de dar a Deus, pois, (como diz
S. Paulo), sendo cristãos e descuidando-se dos seus escravos, se hão com eles
pior do que se fossem infiéis. Nem os obrigam os dias santos a ouvir missa,
antes talvez se ocupam de sorte que não têm lugar para isso;nem encomendam ao
capelão doutriná-los, dando-lhes por este trabalho, se for necessário, maior
estipêndio.
O que pertence ao sustento, vestido e
moderação do trabalho, claro está, que se lhes não deve negar, porque a quem o
serve deve o senhor, de justiça, dar suficiente alimento, mezinhas na doença e
modo com que decentemente se cubra e vista, como pede o estado do servo, e não
aparecendo quase nu pelas ruas; e deve também moderar o serviço de sorte que
não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que se possam aturar. No
Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a
saber,pau, pão e pano. E, posto que comecem mal, principiando pelo castigo que
é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir
como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada, ou
levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são
certos, de que se não usa com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso
de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido, e tem quem
lhe busque capim, tem pano para o suor, e sela e freio dourado.
Dos escravos novos se há ter maior cuidado,
porque ainda não têm modo de viver, como os que tratam de plantar suas roças; e
os que as têm por sua indústria, não convém que sejam só reconhecidos por
escravos na repartição do trabalho e esquecidos na doença e na farda. Os
domingos e dias santos de Deus, eles os recebem, e quando seu senhor lhos tira
e os obriga a trabalhar, como nos dias de serviço, se amofinam e lhe rogam mil
pragas. Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana, para
plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor, para que se não
descuidem; e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa
de seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha, nem
dia para a plantarem, e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia, e de
noite com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de Deus sem
castigo? Se o negar a esmola a quem com grave necessidade a pede é nega-la a
Cristo Senhor nosso, como Ele o diz no Evangelho, que será negar o sustento e o
vestido ao seu escravo? E que razão dará de si quem dá serafina e seda e outras
galas, as que são ocasião de sua perdição, e depois nega quatro ou cinco varas
de algodão e outras poucas de pano da serra, a quem se derrete em suor para o
servir e apenas tem tempo para buscar uma raiz e um caranguejo para comer? E
se, em cima disto, o castigo for frequente e excessivo, ou se irão embora,
fugindo para o mato, ou se matarão per si, como costumam, tomando a respiração
ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo
(se for necessário) a artes diabólicas, ou chamarão de tal sorte a Deus, que os
ouvirá e fará aos senhores o que já fez aos egípcios, quando avexavam com
extraordinário trabalho aos hebreus, mandando as pragas terríveis contra suas
fazendas e filhos, que se lêem na Sagrada Escritura, ou permitirá que, assim como
os hebreus foram levados cativos para a Babilônia, em pena do duro cativeiro
que davam aos seus escravos, assim algum cruel inimigo leve esses senhores para
suas terras, para que nelas experimentem quão penosa é ávida que eles deram e
dão continuamente aos seus escravos.
Não castigar os excessos que eles cometem
seria culpa não leve, porém estes se hão de averiguar antes, para não castigar
inocentes, e se hão de ouvir os delatados e, convencidos, castigar-se-ão com
açoutes moderados ou com os meter em uma corrente de ferro por algum tempo ou
tronco. Castigar com ímpeto,, com ânimo vingativo, por mão própria e com
instrumentos terríveis e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, ou
marcá-los na cara, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre
cristãos católicos. O certo é que, se o senhor se houver com os escravos como
pai, dando-lhes o necessário para o sustento e vestido, e algum descanso no
trabalho, se poderá também depois haver como senhor, e não estranharão, sendo
convencidos das culpas que cometeram, de receberem com misericórdia o justo e
merecido castigo. E se, depois de errarem como fracos, vierem por si mesmos a
pedir perdão ao senhor ou buscarem padrinhos que os acompanhem, em tal caso é
costume, no Brasil, perdoar-lhes. E bem é que saibam que isto lhes há de valer,
porque, de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no mato, e se
forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue
a açoutá-los ou que algum seu parente tome à sua conta a vingança, ou com
feitiço, ou com veneno.
Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que
são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos,
de pouca vida e saúde. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus
reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o
alegrarem-se inocentemente à tarde depôs de terem feito pela manhã suas festas
de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho,
sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juízes e
dando-lhes algum prêmio do seu continuado trabalho. Porque se os juízes e
juízas da festa houverem de gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes
e ofensas a Deus, por serem poucos os que o podem licitamente ajuntar.
O que se há de evitar nos engenhos é o
emborracharem-se com garapa azeda, ou água ardente, bastando conceder-lhes a
garapa doce, que lhes não faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a
troco lhes dão farinha, feijões, aipins e batatas.
Ver que os senhores têm cuidado de dar alguma
cousa dos sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é acusa de que os escravos
os sirvam de boa vontade e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas.
Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não
cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem.
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Fonte:
Fonte:
André João Antonil: Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711). Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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