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Machado
de Assis – tradutor de teatro
As pesquisas realizadas por
J. Galante de Sousa, R. Magalhães Júnior e Jean-Michel Massa3 nos dão boas informações para conhecermos o
trabalho de Machado de Assis como tradutor de
teatro. Já sabemos, por exemplo, que é um desafio estudar essa atividade de
nosso maior escritor, uma vez que a maior parte das traduções que ele fez não foi
preservada. Até 2008, apenas duas peças traduzidas haviam sido publicadas (Hoje avental, amanhã luva, imitação de La chasse au lion, de Gustave Vattier
e Émile de Najac; e O suplício de uma mulher, de Alexandre Dumas Filho e
Émile de Girardin).
Nesse mesmo ano Jean-Michel Massa publicou o volume Três
peças francesas traduzidas por Machado de Assis, no qual incluiu duas cujos manuscritos estavam depositados na biblioteca da Academia
Brasileira de Letras – Os
burgueses de Paris, de Dumanoir,
Clairville e J. Cordier; e Tributos
da mocidade, de Léon
Gozlan – e uma cuja tradução foi atribuída a
Machado pela primeira vez: Forca por forca, de Jules Barbier.
Constatar que
oito ou nove traduções continuam perdidas – a elas me referirei mais adiante – significa reconhecer a dificuldade de um estudo
que queira determinar o grau de competência de Machado como tradutor teatral.
Por essa razão
e também por não ter como objetivo realizar um estudo dessa natureza, pretendo aqui tecer alguns comentários sobre o repertório
traduzido por Machado para tentar
compreender as escolhas que ele fez, ou as encomendas que lhe foram feitas,
levando em conta o seu envolvimento com o teatro – como autor, crítico e censor
teatral –, os gêneros de peças traduzidas e a situação do teatro brasileiro nas
décadas de 1850 e 1860. Pergunto-me também:
dessas traduções, o que teria ficado na mente do escritor, a ponto de ser reaproveitado em suas crônicas,
contos e romances, em diálogos intertextuais que
demandam investigação? Sabemos que a enorme cultura teatral de Machado,
adquirida em sua mocidade, está presente nos trabalhos do escritor maduro. Já é tempo de se levar em conta as
suas traduções. É uma ideia para um trabalho futuro, que requer a leitura das obras
originais e a releitura atenta de toda a obra
de Machado. Este breve estudo tem objetivos mais modestos.
De acordo
com as informações colhidas em Galante de Sousa, três das quatro primeiras traduções de Machado destinaram-se à Imperial
Academia de Música e Ópera Nacional. São os libretos: A ópera das janelas,
Pipelet e As bodas de
Joaninha. Nenhuma dessas traduções foi preservada. A primeira, de 1857
– Machado tinha, portanto, 18 anos –, é uma imitação da comédia-vaudeville
em um ato, Par les fenêtres, de Amedée
Achard, e não chegou ao palco. Já Pipelet, encenada em novembro de 1859,
era baseada em episódios do conhecido
romance-folhetim Os mistérios de Paris,
de Eugène Sue. O libreto era do italiano Rafaelle Berninzone e a música do maestro
Serafino Amedeo Ferrari. Jean-Michel
Massa estabeleceu essa autoria, revelando que Machado
traduziu o original italiano Pipelè, ossia il portinaio di Parigi. As bodas
de Joaninha,
por sua vez, subiu à cena em julho de 1861. Os autores do libreto e da música eram espanhóis: Luis de Olona e Martín Allú,
conforme se lê na obra de Galante de Sousa.5 Mas não é improvável que Machado tenha consultado
também o original em que se basearam os espanhóis:
Les noces de Jeanette, ópera-cômica em um ato de Michel Carré e Jules Barbier, com música de Victor Massé. Essa
versão havia sido representada por uma companhia francesa no Teatro São Pedro
de Alcântara, no Rio de Janeiro, em junho de
1857.
O que me parece
pertinente é indagar sobre as possíveis razões que levaram Machado a colaborar com a Imperial Academia de Música e Ópera
Nacional. Essa instituição, criada em 1857, ano em que deu os primeiros
espetáculos líricos em língua portuguesa,
tinha como objetivos, segundo o plano então divulgado, "promover a representação
de cantatas e idílios, de óperas italianas, francesas e espanholas, sempre no idioma nacional, e montar, uma vez por ano, uma ópera nova
de compositor brasileiro". À frente da empreitada estavam D. José Zapata
y Amat, espanhol radicado no Brasil, e sua esposa Maria Luísa Amat. O apoio que
tiveram dos intelectuais brasileiros foi enorme, em função dos ânimos
nacionalistas da época. A possibilidade da nacionalização da ópera levou
Alencar a escrever já em 1857 um libreto, intitulado A noite
de S. João, que foi musicado
por Elias Álvares Lobo e levado à cena em 1860. Além
de Alencar e Machado, contribuíram para o movimento, com traduções ou libretos próprios e artigos na imprensa, Quintino
Bocaiuva, Joaquim Manuel de Macedo, Francisco Bonifácio de Abreu, Salvador de Mendonça
e Manuel Antônio de Almeida, que por alguns
meses foi também diretor da Imperial Academia. A admiração de Machado por Alencar e a amizade com Quintino
Bocaiuva e Manuel Antônio de Almeida explicam
a ligação do nosso escritor com esse movimento que não foi além de 1864, após sucessivas crises que envolveram
o empresário e cantor D. José Zapata y Amat, os
membros da companhia e o próprio governo, que preferia financiar a montagem de óperas
italianas, por serem mais rentáveis. Em sua coluna de crítico teatral d'O
Espelho, Machado manifestou seu apoio à Ópera Nacional em duas ocasiões.
Em outubro de 1859, censurou
aqueles que se opunham à contratação de artistas estrangeiros: "Falo do concurso de artistas estrangeiros
que para algumas suscetibilidades
patrióticas tira a cor nacional à ideia da nova instituição. Os que assim pensam
parecem ignorar que o talento não tem localidade [...] A ópera é nacional, porque cantada na língua do país".
Vale ainda
lembrar o entusiasmo de Machado pelo canto lírico, que não era só dele, mas de toda uma época. Como se sabe, nas décadas de
1840 e 1850 as cantoras líricas
que se apresentavam no Rio de Janeiro conquistavam as plateias que se dividiam em partidos que se digladiavam no teatro, conforme podemos
ler no delicioso capítulo inicial de O moço loiro,
de Joaquim Manuel de Macedo, ou nas crônicas de Martins Pena, Gonçalves Dias e José
de Alencar. Candiani e Delmastro, Charton e Casaloni, para dar alguns exemplos,
eram nomes conhecidos por Machado, que em crônica de 1877 lembrou ter feito parte
dos séquitos de homenagens às divas da época: "A Candiani não é conhecida da geração presente. Mas os velhos,
como eu, ainda se lembram do que
ela fez, porque eu fui (me, me adsum), eu fui um dos cavalos temporários do carro da prima-dona, nas noites da
bela Norma!".
Se é possível
arriscar uma hipótese plausível para explicar as traduções dos libretos, parece-me
mais difícil explicar o que levou Machado a traduzir a pecinha francesa La chasse au lion, cuja autoria, a dupla Gustave Vattier e Émile
de Najac, permaneceu ignorada durante décadas, até que as pesquisas de Jean-Michel
Massa a identificassem. Na verdade, Machado foi além da tradução, como
se percebe no texto publicado
originalmente n'A Marmota de 20, 23 e 27 de março de 1860. Com o título Hoje avental, amanhã luva, o texto é, na verdade, uma "imitação". Prática comum na época, "imitar" uma peça significava
apropriar-se do enredo original e adaptá-lo à paisagem e aos tipos brasileiros.
Assim, a "caça ao dândi", tradução literal do título, e que na comédia é uma "caça" a um marido, ganha na
versão de Machado uma série de referências ao Rio de Janeiro, cidade onde se passam
os eventos, que têm como protagonista
uma personagem de larga tradição cômica no teatro ocidental: a criada esperta. No carnaval de 1859, na casa da Sra. Sofia de
Melo, Rosinha, a criada, recebe Durval, pretendente à mão da patroa, e o entretém com graça, beleza,
inteligência e charme, conquistando-o para
marido e subindo um degrau na escala social. O que teria chamado a atenção de Machado
nesse enredo? O tema da ascensão social? Nesse sentido, teria sido um lapso no rapaz sedento de se fazer aceito
em um nível social acima do de sua origem? Perceba-se que o tema da ascensão social
pelo casamento, como ocorre na comediazinha e
em muitas outras peças teatrais do período, é recorrente na obra de Machado, e
alimenta três dos seus quatro primeiros romances. Guardadas as diferenças, porque não se trata mais de
tipos e enredos cômicos, o mais agudo deles – seria
apenas uma coincidência? – repete uma palavra do título da pequena comédia: A
mão e a luva. Evidentemente, Guiomar é uma personagem mais rica que
Rosinha, mas ela também
queria, antes de tudo, trocar o avental pela luva, por meio do casamento. Será
preciso dizer que Rosinha e Guiomar, de certa forma, antecipam a grande criação
que é a personagem Capitu? Todas essas mulheres trazem uma característica que Machado trabalhou em enredos diferentes: elas
nasceram com uma natureza humana superior à sua condição social. Assumindo um lugar mais alto na sociedade,
elas "corrigiram" uma espécie de falha do destino que as fez nascer abaixo
do seu merecimento. Também na novela Casa velha a protagonista é uma mocinha pobre e bem educada, inteligente, "superior à sua
condição", como observa o cônego narrador,que quer casá-la com o filho
rico da família da qual é agregada.
A questão do desnível
social, outra forma de ler o tema da ascensão social pelo casamento, encontra-se no centro da obra de
um autor teatral muito lido e admirado tanto
por José de Alencar quanto pelo jovem Machado e outros intelectuais dos anos 50
e 60 do século XIX. Refiro-me a Octave Feuillet, cujo O romance de um moço
pobreparece ter inspirado
os nossos dois escritores na criação de não poucos tipos e situações ficcionais,
ainda que com uma diferença que não podemos ignorar: enquanto Alencar manteve-se fiel às soluções românticas (vide o final
conciliador de Senhora), Machado retrabalhou o desnível social entre personagens masculinas e femininas
em diferentes graus: uma certa condescendência
nos primeiros romances, muita maldade e desfaçatez em Memórias póstumas de Brás Cubas e extraordinária sutileza psicológica em Dom Casmurro, para lembrar algumas das suas obras principais.
A importância de Feuillet para
Machado pode ser avaliada pelos elogios feitos pelo escritor à encenação de O romance
de um moço pobre, na crônica de O Espelho, a 25 de dezembro de 1859.
Apesar da censura
ao excesso de imaginação romântica do dramaturgo francês, o tom do texto é em geral simpático à peça. Machado
tornou-se leitor assíduo de Feuillet, autor de
pequenas comédias e provérbios que foram identificados pelos seus contemporâneos, ao lado das peças de
Musset, como modelos dos seus primeiros textos teatrais.
"Escrito ao gosto dos pequenos provérbios de Musset e de Octave
Feuillet", escreveu Quintino Bocaiuva, sobre O caminho da porta, que o Teatro
Ateneu Dramático encenou no
Rio de Janeiro, em setembro de 1862. Não surpreende, pois, que a primeira tradução de uma peça longa, por
parte de Machado, seja justamente uma comédia de Octave Feuillet, intitulada Montjoye, em cinco atos e seis quadros, que o Ginásio Dramático pôs em cena em outubro de 1864.
Aqui, a explicação
não é difícil de ser dada. Além da simpatia por Feuillet, Montjoye faz parte de
um repertório que, desde 1859, mereceu total apoio de Machado. Trata-se do
repertório de comédias realistas, que a partir do final de 1855 fundamentou o trabalho
de renovação teatral levado a cabo pelo Teatro Ginásio Dramático. Primeiramente, o repertório era formado por
peças francesas traduzidas, de autores como Alexandre
Dumas Filho, Émile Augier, Théodore Barrière, Ernest Legouvé, e Feuillet, entre outros. Depois, a partir
de 1857, com José de Alencar, e de 1860, com vários outros, como Quintino Bocaiuva
e Pinheiro Guimarães, o repertório nacionalizou-se, e o palco do Ginásio passou
a acolher tanto as comédias realistas francesas quanto as brasileiras. Foi um momento
de vida teatral intensa, em que toda uma
geração de jovens intelectuais se colocou contra o teatro romântico, contra o
estilo de interpretação do grande
ator João Caetano, e a favor de um teatro que pode ser explicado pela expressão cunhada por José de Alencar em
1857: daguerreótipo moral. Ou seja: no plano da forma, o realismo fotográfico,
a reprodução da vida em família e em sociedade, a naturalidade em cena; no plano do conteúdo, a
crítica dos costumes, o debate de ideias, de problemas da vida social, com intuito
moralizador. A defesa dos valores éticos da
burguesia, como o trabalho, o casamento e a família, é o fundamento básico
desse repertório.
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Fonte:
Fonte:
João Roberto Faria (Universidade
de São Paulo / CNPq): “Machado de Assis – tradutor de teatro”. Machado de Assis em linha - ano 3, número 6, dezembro 2010. Disponível em: machadodeassis.net
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