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Apenas um olhar: a dor na obra de Florbela Espanca.
ABISMAR-SE
Onda de aniquilamento
que
sobrevém ao sujeito amoroso
por desespero ou
plenitude.
(BARTHES,
2003, 3)
Segundo Maria
Lúcia Dal Farra (2002, 11), a dor é, nos escritos de Florbela Espanca, tanto em
prosa quanto em verso, um dos ingredientes mais íntimos e, certamente, uma recorrência muito poderosa, o leitmotiv mais
tocante. O tema é retomado em vários dos seus poemas e vem acompanhado de
imagens várias, como iremos ver mais adiante.
MENDIGA
Na vida nada tenho e
nada sou;
Eu ando a mendigar pelas
estradas
No silêncio das noites
estreladas
Caminho, sem saber para
onde vou!
Tinha o manto do sol...
quem m’o roubou?!
Quem pisou minas rosas
desfolhadas?!
Quem foi que sobre as
ondas revoltadas
A minha taça de oiro
despedaçou?!
Agora vou andando e
mendigando,
Sem que um olhar dos
mundos infinitos
Veja passar o verme,
rastejando...
Ah, quem me dera ser
como os chacais
Uivando os brados,
rouquejando os gritos
Na solidão dos ermos
matagais!...
(ESPANCA. In: Charneca
em flor, 1999, 225)
O poema acima é uma
representação perfeita do sentimento de dor recorrente nos escritos de Florbela.
O eu-lírico é um ser vazio, nada tem e nada é,
Na vida nada tenho e
nada sou;
Eu ando a mendigar pelas
estradas
No silêncio das noites
estreladas
Caminho, sem saber para
onde vou!
e implora, pois, através da
imagem da mendiga, o olhar dos outros:
Agora vou andando e
mendigando,
Sem que um olhar dos
mundos infinitos
Veja passar o verme,
rastejando...
Nessa mendicância ele se
assemelha a um verme, ou seja, um ser desprezível, sem valor, peçonhento, um parasita. O
eu-lírico não se reconhece, pois, em alguém. A causa da dor:
Tinha o manto do sol...
quem m’o roubou?!
Quem pisou minas rosas
desfolhadas?!
Quem foi que sobre as
ondas revoltadas
A minha taça de oiro
despedaçou?!
“Roubaram-lhe”
os seus bens. Agora lhe resta o vazio, acompanhado pela dor. A dor é decorrente
do objeto perdido. Para Freud: “Nunca estamos tão mal protegidos contra o
sofrimento como quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente infelizes
como quando perdemos a pessoa amada ou
o seu amor".
ESQUECIMENTO
Esse de quem eu era e
que era meu,
Que foi um sonho e foi
realidade,
Que me vestiu a alma de
saudade,
Para sempre de mim
desapar’ceu.
Tudo em redor então
escureceu,
E foi longínqua toda a
claridade!
Ceguei... tateio
sombras... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque
tudo ardeu!
Descem em mim poentes de
Novembro...
A sombra dos meus olhos,
a escurecer...
Veste de roxo e negro os
crisantemos...
E desse que era meu já
não me lembro...
Ah, a doce agonia de
esquecer
A lembrar doidamente o
que esquecemos!...
(ESPANCA, In: Reliquiae,
1999, 293)
O poema acima possui como tema
dominante a dor, mas a dor causada pelo abandono do objeto de amor. O eu-lírico aparece como uma figura
esquecida pelo objeto de amor, dor
irremediável:
Esse de quem eu era e
que era meu,
Que foi um sonho e foi
realidade,
Que me vestiu a alma de
saudade,
Para sempre de mim
desapar’ceu.
O objeto
de amor é visto como esse ser ideal, que está entre o sonho e a realidade. Possuir
o objeto é o maior desejo, e a sua perca é a maior dor, dor que, por muitas
vezes, não pode ser remediada. E provoca a aniquilação da alma, já que esta é
representante do sujeito.
As imagens
de escuridão, trevas e cinzas fazem parte da relação e da construção da imagem do objeto relacionando-a com a morte, com o fim:
Tudo em redor então
escureceu,
E foi longínqua toda a
claridade!
A escuridão
é o oposto da claridade provocada pelo olhar do objeto de amor, claridade que já remetida foi em versos de
algumas poesias aqui explicitadas e como nos que
seguem:
Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um
lírio,
Banhado pelo luar.
*
quando teu olvido vier
teu amor amortalhar,
quero a minha triste
vida,
na mesma cova, enterrar.
*
(ESPANCA. In: Trocando
olhares, 1999, 31-32)
A escuridão se opõe, então,
à claridade: a claridade é o olhar do objeto de amor, a escuridão é a representação de sua falta.
O tatear sombras pelo eu-lírico é a representação dessa finitude do amor, as cinzas apalpadas são o resto,
pois quase nada sobrou: Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua toda a
claridade!
Ceguei... tateio
sombras... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque
tudo ardeu!
Os seus
olhos entristecem porque não mais conseguem “olhar” o seu objeto de amor, de desejo:
Descem em mim poentes de
Novembro...
A sombra dos meus olhos,
a escurecer...
Veste de roxo e negro os
crisantemos...
E a dor de esquecer o
objeto de amor é reinante:
E desse que era meu já
não me lembro...
Ah, a doce agonia de
esquecer
A lembrar doidamente o
que esquecemos!...
É necessário esquecer o
objeto de amor, ele já está perdido.
Duas
posições em relação ao objeto de amor pelo eu-lírico podem ser percebidas na poesia
de Florbela Espanca: a que tenta esquecer o objeto, como vimos acima e vamos prosseguir com o próximo tópico e a que prefere viver “nas
sombras” desse amor, se conformar com a dor:
AMIGA
Deixa-me ser a tua
amiga, Amor;
A tua amiga só, já que
não queres
Que pelo teu amor seja a
melhor
A mais triste de todas
as mulheres.
Que só, de ti, me venha
mágoa e dor
O que me importa a mim?!
O que quiseres
É sempre um sonho bom!
Seja o que for
Bendito sejas tu por m’o
dizeres!
Beija-me as mãos, Amor,
devagarinho...
Como se os dois
nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol,
no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... que
fantasia louca
Guardar assim, fechados,
nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra
minha boca!...
(ESPANCA. In: Livro de
Mágoas, 1999,147)
O soneto acima
deixa claro o sentimento de dor causado por um olhar não correspondido, olhar,
este, associado ao amor. O desejo de quem ama é ser amado, o sonho toma o lugar
da realidade para levar o sujeito a imaginar/viver/concretizar mentalmente uma
situação em que este olhar é correspondido, em que o amor surge. Estar próximo
do objeto amado é o desejo de qualquer amante, mesmo que o paradoxo perto/longe
esteja mais presente que nunca:
Deixa-me ser a tua
amiga, Amor;
Que pelo teu amor seja a
melhor
A mais triste de todas
as mulheres.
O eu-lírico não se importa
com o desprezo recebido do objeto de amor, se conforma com a dor da rejeição, com a frustração do
encontro, exemplificando também, desta forma, a
relação de servidão:
Que só, de ti, me venha
mágoa e dor
O que me importa a mim?!
O que quiseres
É sempre um sonho bom!
Seja o que for
Bendito sejas tu por m’o
dizeres!
E de fantasia
vive o sujeito, de fantasia consegue forças para amenizar a dor. Implorar a atenção ou um mísero sentimento
também é característica da servidão presente nos
versos de Florbela:
Beija-me as mãos, Amor,
devagarinho...
Como se os dois
nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol,
no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... que
fantasia louca
Guardar assim, fechados,
nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra
minha boca!...
A conformação com a dor é
por si só, também, uma dor:
O que dói não é perder o
ser amado, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o
irremediavelmente perdido.
(...)
O dilaceramento não se
situa mais entre contração e esvaziamento, mas entre contração – isto é, amor
excessivo dedicado a uma imagem – e o reconhecimento agudo do caráter
irremediável da perda.
(NASIO, 1997, 30)
A dor não é o único
elemento que remete à perda na poesia de Florbela. Existe a presença do
elemento angústia. A angústia nasce na incerteza de um perigo temido; ao passo
que a dor é a certeza de um mal já realizado22. A angústia, na obra de Florbela, consiste no medo de perder o objeto de amor, pois essa dor
já fora vivida anteriormente.
SEM REMÉDIO
Aqueles que me têm muito
amor
Não sabem o que sinto e
o que sou...
Não sabem que passou, um
dia, a Dor,
À minha porta e, nesse
dia, entrou.
E é desde então que eu
sinto este pavor,
Este frio que anda em
mim, e que gelou
O que de bom me deu
Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde
ando e onde vou!!!
Sinto os passos da Dor,
essa cadência
Que é tortura infinda,
que é demência!
Que é vontade doida de
gritar!
E é sempre a mesma
mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda,
sem remédio,
Andando atrás de mim,
sem me largar!...
(ESPANCA, In: Livro de
Mágoas, 1999, 159
O soneto acima expõe muito
bem o significado da angústia – sentimento causado pela apreensão de
reincidência de um evento traumático, ou seja, evento doloroso. O eu-lírico
sofre com esse sentimento, e admite a sua origem na Dor. Entretanto, pode-se
observar que o vocábulo aparece em maiúscula, o que pode representar um
sujeito:
Aqueles que me têm muito
amor
Não sabem o que sinto e
o que sou...
Não sabem que passou, um
dia, a Dor,
À minha porta e, nesse
dia, entrou.
A dor apareceu em sua porta
e entrou, desde esse momento o eu-lírico não mais teve paz, e vive angustiado,
perseguido pela Dor:
E é sempre a mesma
mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda,
sem remédio,
Andando atrás de mim,
sem me largar!...
Dor,
angústia e luto são imagens comuns, como também a vassalagem, observada em várias poesias, na obra de Florbela. A imagem
da tentativa de superação do luto também se faz presente em muitos dos seus versos. Como Florbela
trabalha essa superação do luto é o que vamos ver no tópico seguinte. Por ora,
fiquemos com as considerações de Barthes:
No luto real, é a “prova
de realidade” que me mostra que o objeto amado cessou de existir. No luto
amoroso, o objeto não está nem morto nem afastado. Sou eu quem decide que sua
imagem deve morrer (e esta morte, irei talvez ao ponto de escondê-la dele
próprio). Durante todo o tempo que durar esse estranho luto, terei que sofrer
duas desgraças contrárias: sofrer pelo fato de o outro estar presente
(continuando, sem querer, a me ferir) e me entristecer o fato de ele estar
morto (tal, pelo menos, como eu o amava). (BARTHES,
2003, 186)
---
Fonte:
Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento: “Trocando olhares: o desejo, o amor, a angústia e a dor na poesia de Florbela Espanca.”. (Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito de conclusão do Mestrado em Literatura Comparada, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros). Natal, 2005. Disponível em: ftp://ftp.ufrn.br/
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