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“Linha reta e linha curva”: Emília: amor perfeito, amor possível
“Ela o esperava com certa impaciência” (ASSIS, 1977a, p. 218)
O folhetim “Linha reta e
linha curva” foi publicado em quatro números consecutivos do Jornal das
famílias, entre outubro de 1865 e janeiro de 1866. Criado a partir da
comédia As forcas caudinas – peça teatral de Machado de Assis nunca encenada
durante a vida do escritor –, o texto possui a seguinte peculiaridade: para ser
transformado em conto, passou por um processo de adaptação. Tal processo caracterizou-se
pela inclusão de um narrador, retirada de rubricas do autor, mudança de nomes e
de características das personagens e por alteração no andamento das cenas16.Por
causa disso, é possível sentir certa diferença no andamento da narrativa, em comparação
a outros textos de Contos fluminenses, pois este conserva
características do texto dramático.
Chama a atenção, por
exemplo, a grande quantidade de falas das personagens femininas presentes em “Linha
reta e linha curva”, o que se explica pela própria origem do texto, uma vez que
a base do texto dramático são as falas dos personagens (réplicas). A atuação do
narrador contribui para a adaptação do texto no formato de conto. Ele se coloca
como um comentarista da ação ou, como escreve Silva (1998, p. 22), “condutor do
fio narrativo”. Ao conjugar as informações contidas nas falas e nos comentários
do narrador, desvendam-se os comportamentos e atitudes das personagens
femininas, em um processo que enriquece a configuração das figuras femininas
ali existentes.
“Linha reta e linha curva”
foi concebido como um texto de teor moralizante no qual se evidencia o
contraste entre um casal, com uma relação tida como ideal, e outro, cuja
relação é inadequada perante os padrões sociais estabelecidos. Adelaide é
casada há pouco tempo com Ernesto Azevedo e com ele constitui o casal-modelo da
narrativa, a “linha reta” a ser traçada. Emília, amiga de infância de Adelaide,
é viúva duas vezes, e Tito, amigo de Azevedo, é, de certa forma, um dândi,
desiludido com relações amorosas, recém-chegado à cidade onde o jovem casal
mora (Petrópolis).
Emília e Tito formarão o
par que é o foco central do texto. Eles tiveram uma relação no passado, mas se
reencontram na casa de Adelaide e Azevedo sem que o relacionamento seja
revelado nem ao jovem casal nem ao leitor. Este “segredo” é fundamental para o desenvolvimento do
conto. É o que explica as atitudes de Emília e o que “justifica” o final, quando ela e Tito se unem. Emília e Tito são a “linha
curva”, o contraponto de Adelaide e Azevedo, recém- casados cujo passatempo é
ler Marília de Dirceu. A relação de Emília e Tito começa hostil e termina
na promessa do matrimônio, mas nem mesmo esse desenlace é capaz de caracterizar um relacionamento em “linha
reta”, dentro do ideal romântico, nos moldes como
é descrito o casamento de Adelaide e Azevedo.
Tito é apresentado ao
leitor como um solteiro convicto, alguém que não se interessa em constituir
família e que não amou mais depois de ter sofrido uma desilusão amorosa. Emília
é uma viúva que, ao perceber a convicção de Tito, propõe-se a “vingar o sexo” e
fazer com que ele se apaixone por ela.
O conto acompanha o desenrolar desse plano de
Emília e, enquanto se desenvolve, aponta para o leitor caminhos divergentes,
sugerindo possibilidades de interpretação,
por exemplo: Emília quer realmente vingar-se ou sua intenção é
reconquistar Tito?
O desfecho do conto, que é
a conciliação entre eles, se, por um lado, é esperado para os padrões
românticos, por outro, revela certa ambiguidade: eles estão juntos por amor ou
por conveniência? – neste caso, para se “adequarem” ao um “modelo tradicional”,
como Adelaide e Azevedo. Se, por um lado, parece haver um jogo de sedução,
pode-se ainda questionar se Emília é quem realmente propõe esse jogo ou se ela
seria uma “presa” de Tito. Ainda que o desfecho seja apenas um, o enlace de
Emília e Tito, seu significado pode ser multiplicado para o leitor,
possibilitando, assim, diversas interpretações.
Sem saber do passado das
personagens, o rumo da narrativa, para o leitor, fica bastante incerto. Essa
incerteza é duplicada, dentro do texto, por meio da inserção de uma narrativa
secundária, isto é, da “História de um homem e de um macaco”, que Tito conta
aos presentes quando vai visitar Emília, a pretexto de fazer com que Diogo, o outro
“pretendente” da viúva, vá embora. A história, que o próprio Tito confessa não
ter fim e não saber como terminar, é uma espécie de espelhamento da incerteza
que marca a narrativa principal. É também uma linha curva que o narrador
pretende tornar reta. A história contada por Tito é destinada a um interlocutor
banal (Diogo), com o objetivo de enfadá-lo, e seu desenvolvimento nada mais é
do que uma longa repetição sem sentido. O narrador (Tito) cria sinuosidades na
história, mas estas não levam a lugar algum; não têm efeito sobre o desfecho.
Em outras palavras, sua intenção é unicamente alongar a narrativa.
Analogamente, a história de
Tito e Emília também se repete, mas, dessa vez, o desfecho promete unir um ao
outro: a tradição do amor romântico tenta se impor. Entretanto, Machado de
Assis, ao contrário de Tito, não parece considerar que seu leitorseja banal, já
que ele cria interlocuções variadas com seus diversos leitores. Em “Linha reta
e linha curva”, o leitor que espera um final tradicional tem sua expectativa satisfeita.
Por outro lado, o leitor que souber ler mais profundamente verá também a problematização,
o questionamento machadiano ante o modelo tradicional do amor romântico. A
própria inserção da história contada por Tito na casa de Emília parece indiciar
que, se ela parece ser banal e deslocada dentro do contexto da narrativa, pode,
em uma análise mais atenta, trazer novos elementos para a interpretação do
conto. Por exemplo, a repetição da história de Tito e Emília e o tema do leitor
trivial.
Assim, mesmo que
aparentemente haja na narrativa um movimento para que Tito e Emília terminem juntos,
a maneira como isso acontece sugere que a linha continuará curva mesmo depois
de uma tentativa de torná-la reta. Isso porque aconfiguração das personagens
foge ao tradicional enredo de final apaziguador. Emília não é uma jovem
inocente que deseja se casar. Ao contrário, ela já é viúva.
Se a viuvez, no século XIX,
oferecia à figura feminina uma liberdade maior que outros estados civis, para
que a viúva se mantivesse respeitável, era preciso construir ao seu redor uma
rede, uma espécie de novo núcleo familiar, composto por outros parentes e
agregados – e não há menção de que essa seja a realidade de Emília no conto, o
quetalvez explique seu desejo de estabelecer uma nova união. Além disso, Emília
é viúva duas vezes, o que parece indicar que o modelo do casamento é o que ela
espera para si, ainda que, no imaginário do século XIX, a figura da viúva que
contrai segundas núpcias pudesse remeter a um certo tipo de traição, o que
faria com que nem a vida celibatária nem uma nova união fosse completamente
aceita e adequada.
Tito, por
sua vez, não parece ser um rapaz que encontre, na tranquilidade cotidiana do casamento, a felicidade. Boêmio, ele aprecia
bons jantares e jogos devoltarete. Essa natureza, como destaca Herane (2011, p.
83), “constituiria um modelo simetricamente inverso à vida privada burguesa,
pois sua relação com o espaço e o tempo seria inversa à do modelo burguês”
vigente e no qual se encaixa, por exemplo Azevedo. Isto reforça a ideia de que
não seria possível acomodar, de maneira absoluta, aunião de Emília e Tito em
uma “linha reta”, como acontece no relacionamento de Adelaide com Azevedo. Ao
tentar aparar algumas arestas, o texto parece, propositalmente, criar outras.
Com isso, é como se o
narrador pudesse “driblar” uma tradição que o antecede, ainda que obedecendo ao
desfecho clássico, ou seja, à conciliação entre as partes. Tito e Emília são
subjugados pelo amor que “espera” um “final feliz”, mas isso não significa, necessariamente,
que eles serão encaixados perfeitamente nesse padrão. O leitor não sabe se
Emília de fato conseguirá “vingar o sexo”, expressão que a própria personagem
usa, ou se irá apaixonar-se pelo alvo de sua “vingança”. Vingança que parece
ser desde o início abrandada e relativizada pela hipótese do amor, o que parece
retirar qualquer possibilidade de abordagem negativa de tal personagem. Ela usatodas
as ferramentas de que dispõe a favor de seu plano, que é conquistar Tito, seja
por “vingança”, seja para retomar um amor antigo. Adelaide, por sua vez, parece
ser seu contraponto. É incapaz de guardar segredos, tem um casamento ideal, o
que, tanto parao autor quanto para o narrador, parece ser negativo, como
reflete a fala do próprio Tito: “Bem vês que até a felicidade por igual fatiga!”
(ASSIS, 1977a, p. 233), diz ele aAzevedo, assumindo, de certa forma, (e, assim,
extrapolando o texto) a reflexão de que a melhor ficção, aquela que prende o
leitor, é farta de relações problematizadas e quase nunca aborda ligações
completamente felizes.
Na ficção machadiana,
parece que o que interessa é problematizar os comportamentos das personagens,
instigar o leitor a refletir diante de questionamentos e dúvidas humanas, sem
dar a ele respostas prontas. As personagens enfrentam situações complexas, e é
esta complexidade que expõe, sem trazer respostas simplistas, o que atrai o
leitor. A completa perfeição, que em “Linha reta e linha curva” parece ser a
forma como é retratada Adelaide, exclui as complexidades. Dito de outro modo, o
que é perfeito não parece conseguir suportar questionamentos ou nuances. Por
isso Machado de Assis volta seu foco ao que é imperfeito – e, como tal, humano.
Suas personagens mais ricas e interessantes são as que permitem análises mais
prismáticas. Personagens como Adelaide, que não carregam nuances nem provocam
reflexões no leitor têm pouco espaço e importância nas tramas. E, neste caso,
Adelaide parece ser apenas um contraponto para ajudar a desenvolver
ficcionalmente a personalidade que realmente interessa: Emília.
O início do conto apresenta
um conjunto de informações que merece destaque: “Era em Petrópolis, no ano de
186.. Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais
contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça até as
personagens que vão figurar neste pequeno quadro” (ASSIS, 1977a, p. 199). A partir desses dados, estabelece-se
que os fatos narrados ligam-se à realidade e ao
contexto histórico e social dos primeiros leitores. É um indício de que Machado
de Assis coloca o lastro de sua ficção no real, esperando que o leitor se
identifique, pois a ação se passaria no mesmo tempo histórico em que o leitor a
lê.
Os padrões de comportamento
estariam, assim, de acordo com aqueles em voga na segunda metade do século XIX,
permitindo, de certa forma, que um leitor atento pudesse distinguir “linhas
retas” e “linhas curvas” em personagens e ações do enredo. O autor, sob essa
perspectiva, trabalha no sentido de fazer o leitor identificar-se com alguns de seus personagens, sem deixar de
ser crítico em relação às posturas e papéis predefinidos
para homens e mulheres, o que se percebe, por exemplo, na construção da personagem
Adelaide. Desde sua descrição, bastante idealizada, até suas atitudes e falas,
tudo nela parece alertar o leitor de que sua adequação a um padrão não seja naturalmente
tão plena. Sua ingenuidade, exemplificada no fato de que ela não consegue guardar
segredo do marido quanto ao plano da amiga, e a atmosfera de “mundo perfeito”
que a envolve, e na qual ela parece acreditar, são também indícios de que, apesar
de sua adequação, Adelaide seja, na verdade, uma sutil crítica a esse padrão “contemporâneo”
que o narrador pretende mostrar. Sua perfeição chega a incomodar o leitor e
reverbera negativamente na narrativa, de modo que é possível considerar que Adelaide
não parece ser um exemplo que alguma leitora possa querer seguir.
A maneira como Emília
estabelece seu “plano”, a forma como o coloca em prática e o fracasso do mesmo
(a “vingança” – se é que algum dia a personagem teve realmente tal intenção – dá
lugar ao enlace tradicional entre as personagens, no qual prevalece o
sentimento amoroso) parecem também ser uma espécie de crítica a tal padrão. O
que poderia, superficialmente, ser interpretado como uma atitude negativa, ou seja,
a “vingança”, acaba perdendo tal característica, sobretudo, quando o leitor descobre
que Emília e Tito já haviam tido, antes, um relacionamento. O plano que Emília diz
ser para “vingar o sexo”, ao fim do conto parece servir, na verdade, para reaproximá-la
do antigo amor, unindo-a a Tito e desvinculando a “vingança” da “maldade”,
retirando, assim, a interpretação negativa da personagem. Emília é sagaz e serve-se
disso para reconquistar Tito, mas isto não significa ser, necessariamente, má. Tito
também não é um ingênuo. Ao contrário, em vários momentos o jogador de voltarete
parece estar consciente do jogo que se estabelece entre ele e Emília. A atitude
pretensiosa de Tito, que afirma sempre ganhar quando está em uma mesa de
voltarete, parece ecoar e complementar a estratégia de Emília. Um parece estar
sempre à espera do outro para dar o próximo passo: “[...] já se conspira; é o
que me convém. Hás de vir! Hás de vir!” (ASSIS, 1977a, p. 232), diz Tito a
certa altura do conto, quando, de fato, o “plano” de Emília já está posto em
curso. Há uma naturalidade que ambos os lados afetam e que só depois o leitor
saberá que se deve ao fato de eles já terem tido um relacionamento. Um exemplo
disso pode ser constatado no seguinte fragmento: “Não há o que perdoar; não
podia vir; era natural que fosse por algum motivo sério. Quanto a mim não tenho
igualmente de que pedir perdão. Esperei, estava cansado, voltaria em outra
ocasião. Tudo isto é natural” (ASSIS, 1977a, p. 219, grifo nosso).
A naturalidade que os dois
afetam, os passos estudados, tudo é parte do jogo de que ambos os personagens
têm consciência: “Tem a glória de retirar-se com todas as honras da guerra. Eu
é que fico vencida. Paciência!” (ASSIS, 1977a, p. 248), afirma Emília a Tito em
uma carta que também parece ser parte da “estratégia” para que o casal termine
unido.
Se parece moralmente
adequado unir uma viúva e um desiludido amoroso para aparar as arestas e
fazê-los serem contidos em uma forma ideal de amor, esta tentativa sugere uma
crítica em si, já que essa adequação parece ser “excessiva”, da mesma forma como
algumas outras personagens e situações que Machado inclui em sua ficção cumprem
o papel de serem críticas justamente porque se adéquam tão perfeitamente que geram
estranheza. Para Emília, nem casar nem permanecer viúva parece uma solução definitiva
do ponto de vista social.
No texto publicado em Contos
fluminenses, Machado de Assis suaviza o tom moralizante fortemente presente
em As forcas caudinas. Como destaca Silva (1998, p. 23): “No conto,
Machado elimina o final moralizante exterior à ação, numa tentativa de condensação,
de limitar a narrativa à célula dramática que a originou”.
Os princípios de moralidade
defendidos no texto estão resumidos em um trecho do conto publicado no Jornal das famílias
e retirado de versões posteriores, conforme referência da edição crítica aqui
utilizada: “A apoteose do amor, o abatimento da vaidade e a punição da velhice
ridícula” (ASSIS, 1977a, p. 255).
Apesar de o presente
trabalho não levar em conta a edição em periódico dos contos analisados, este
trecho parece ser significativo para a análise. Esses princípios explicariam o
plano malsucedido de Emília e a palavra “vaidade” está vinculada ao comportamento
feminino. A vaidade seria a razão pela qual Emília traçaria seu plano e empenharia
esforços para seduzir Tito. Quando suprime o longo trecho final para a edição em livro do conto, Machado de Assis
abre caminho para interpretações diversas, para
possibilidades menos determinadas de entendimento. A vaidade deixa de ser a razão
única que moveria Emilia. Nesse sentido, ficar com Tito passa a ser um forte razão
para que Emília levasse seu plano a cabo.
Ao unir
Emília e Tito, Machado de Assis parece tentar despistar o leitor. Faz com que uma sinuosidade, ou seja, a linha curva aludida no
título, continue sugerida, embora pareça tornar-se reta, já que tanto o embate
quanto a união no final ocorrem entre dois personagens experimentados e
emancipados (uma viúva e um aventureiro), enquanto que o casal modelo (a “linha
reta”) é formado por Adelaide e Azevedo, personagens cuja experiência se
constrói conjuntamente. Aqui parece haver a insinuação de uma ruptura narrativa
proposta por Machado de Assis: uma homogeneização artificial de algo que,
genuinamente, não pode ser “padronizado”; uma problematização de questões
humanas que não pode ser contida ou silenciada; uma “ironia posta como séria”17.
Talvez por isso, ao longo
do conto, o discurso de Emília esteja contaminado de intenções ambíguas. Suas
palavras, gestos e olhares compõem para o leitor um cenário misterioso e cheio
de significados a serem desvendados. Novamente, o que uma personagem faz, o que
ela diz e o que sobre ela revela o texto, seja por meio do autor, do narrador,
tanto do que ele fala quanto do que ele silencia e sugere para o leitor ou por outras
instâncias do texto assumem interpretações propositalmente múltiplas.
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Fonte:
Renata de Albuquerque: “Senhoras de si: o querer e o poder de personagens femininas nos primeiros contos de Machado de Assis”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães). São Paulo, 2011. Disponível em: www.teses.usp.br
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