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Do artífice virá o artista
Se os avanços técnicos e o clima
de euforia da chamada “Era Mauá” contribuíram para a proposta de reforma
concebida por Porto Alegre, certamente preocupações mais imediatas também
motivaram sua iniciativa.
Vinte e nove anos de prática
demonstraram que o antigo sistema não era o mais próprio para frutificar em um
país cuja civilização e necessidades estão longe daquelas onde a arte foi
transplantada com a civilização, onde ela adormeceu com a filosofia, e onde
renasceu com a reaparição do pensamento e forma da Grécia Antiga. (Apud Galvão
1959, p. 597). O diretor da Academia constatava, no discurso transcrito acima,
que se seguiu à aprovação da reforma, que a simples transplantação de modelos
artísticos e a tentativa de imitar a Academia francesa não traziam resultado
algum. Era preciso adaptar a Academia às necessidades e aos problemas do país.
A existência da escravidão
certamente era um problema para aqueles que, como os formados pela Academia,
dedicavam-se às artes e, portanto, realizavam atividades manuais. Já em 1845,
um viajante americano constatava: Já vi escravos trabalhando como pedreiros,
carpinteiros, calceteiros, impressores, pintores de cartazes e ornatos,
fabricantes de carruagens e escrivaninhas e litógrafos. É também verdade que
esculturas em pedras e imagens sagradas em madeira são freqüentemente feitas com
admirável habilidade pelos escravos e negros libertos. (...) Todas as espécies
de ofícios são executados por homens e rapazes negros. (Ewbank 1976, p. 153)
O mesmo observador notaria como a
vigência da escravidão influenciava os valores e os costumes da sociedade da
corte. “A tendência inevitável da escravidão é tornar o trabalho desonroso”,
afirmava, de tal modo que a maior parte dos homens livres com alguma instrução
preferia trabalhar na burocracia ou administração governamental, ou até mesmo a
pobreza, a realizar qualquer tipo de ofício.14 Numa sociedade em que o trabalho
manual era visto como degradante, um dos maiores desafios para uma instituição
como a Aiba certamente consistiu em delimitar a superioridade da prática
artística; a diferença fundamental entre seus alunos e os escravos e negros
forros que, desde muito antes da chegada da Missão Francesa, dedicavam-se às
artes e aos ofícios em igrejas e ruas da ex-colônia portuguesa (Trindade 1988).
Também como desdobramento das
condições peculiares em que se desenrolava a vida social na sociedade imperial,
os alunos que freqüentavam a Academia de Belas Artes vinham geralmente de
famílias pobres, possuindo pouca, ou muitas vezes quase nenhuma, instrução.
Diante do preconceito que cercava as atividades manuais, e tendo em vista que a
Aiba não constituía uma instituição de ensino superior, dificilmente a carreira
artística podia atrair aqueles cujas condições financeiras permitiam estudos
ligados às letras, principalmente jurídicas. Como resultado, a esmagadora
maioria dos formandos pela Aiba tinha origem humilde: eram filhos de pequenos comerciantes
e ex-escravos (Durand 1989). Para Porto Alegre, os sólidos conhecimentos no
campo de anatomia, história antiga, história da arte, matemáticas, aritmética,
entre outras, exigidos para um pintor acadêmico, não podiam ser bem assimilados
por aqueles que por vezes mal sabiam ler.
Finalmente, a despeito do desejo
de se igualar às nações “cultas” da Europa, como a França, as elites do período
não estavam acostumadas a admirar, ou comprar, obras de artes. Restava aos
artistas e alunos da Aiba a esperança de que suas obras agradassem a D. Pedro
II, praticamente o único comprador das produções da Academia. A raridade das
encomendas e a falta de público tornavam imperioso que alunos, ex-alunos e até
professores da Academia realizassem outras atividades, alternativas à atividade
artística, para sobreviver. Também nesse campo os formados pela Aiba
encontravam dificuldades. A capital do Império estava cheia de estrangeiros que
realizavam os mais diferentes ofícios e atividades artísticas, freqüentemente
com mais êxito que os nacionais (Durand 1989).
Por tudo isso, no discurso de
posse dirigido aos professores Porto Alegre assegurava:
Não venho com desejos infundados,
nem com vaidade de ostentar exposições públicas em um país novo, no qual a
riqueza e a aristocracia ainda não chamaram as belas artes para adornarem
brasões e suas liberalidades. (...) Todos sabemos que unicamente Suas Majestades
são as que compram obras de arte nas nossas exposições; e que aqueles trabalhos
que não tiveram a fortuna de lhes agradar voltaram para o estúdio do artista, e
aí se conservam como exemplares de um desengano bem doloroso de suportar-se.
Portanto vossa missão será bem mais modesta, porém mais útil e necessária à
atualidade: pertence à organização dos estudos, a preparar solidamente essa
mocidade que deve servir ao país; antes do artista se deve preparar o bom
artífice, assim como antes deste já deve existir o necessário artesão. (Galvão 195,
p. 26).
Por outro lado, era sabido que a
amplitude de disciplinas necessárias à formação do artista, nos moldes
acadêmicos, ficava muito além das possibilidades dos jovens que entravam na
Academia todos os anos. Em vista dessas considerações é que o novo diretor mudara
os objetivos da instituição.
Reconhecendo a inexistência de um
mercado de arte minimamente consistente e desinteresse das elites por obras de arte,
Porto Alegre admitia que a ambição de manter uma instituição unicamente
destinada ao ensino artístico era irreal. “Formar artífices” parece ter
significado, para Porto Alegre, mais do que a subdivisão do ensino da Aiba em
dois cursos, de artes e técnico, uma transformação completa também do ensino
artístico. A rígida estruturação a que submeteu a grade curricular,
normatizando concursos, prêmios de viagem e até mesmo programas dos cursos,
visava proporcionar sobretudo uma formação técnica aos alunos. Assim, o único
curso teórico, de “História das Belas Artes, Estética e Arqueologia”, ficava
destinado somente aos alunos que completassem três anos de estudos. Já as aulas
de matemática aplicada, desenho geométrico, escultura de ornatos e desenho de
ornatos, disciplinas que conformavam o curso técnico, deviam ser freqüentadas
por rigorosamente todos os alunos da Academia, inclusive os que pertenciam ao
curso de “Belas Artes”.
Contudo, se enfatizavam o ensino
prático, os novos estatutos pontuavam por demarcar as diferenças entre os dois
tipos de aluno da Aiba. Delimitavam com minúcia o tempo de estudos para os
artífices, os exames de conclusão do curso, a distribuição de atestados e
diplomas especiais. Esclareciam até mesmo que haveria um livro de chamada
separado para cada grupo, e no destinado aos alunos-artífices “se declarará a
profissão que seguem, para que os professores o saibam e possam dirigir seus
estudos convenientemente”.
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Fonte:
Letícia Coelho Squeff: “A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista”. Cadernos Cedes, ano XX, n 103 o 51, novembro/2000. Disponível em: www.scielo.br
Fonte:
Letícia Coelho Squeff: “A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista”. Cadernos Cedes, ano XX, n 103 o 51, novembro/2000. Disponível em: www.scielo.br
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