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Fonte:
Juliana Yokoo Garcia: “Amores contrariados, puros e abnegados?” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Professor Doutor Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2008.
Personagens
caricaturais: um retrato bem-humorado da hipocrisia social.
“Numa
tragédia desta ordem, como se vê, o
cômico está sempre
negaceando a gente por
trás daquele Fialho,
o qual, apesar
dos chacoteadores, tinha ares de
bom homem, e
talvez desse de
si um marido regular, se se ajoujasse a uma fêmea da sua
espécie.”
CASTELO
BRANCO, Os brilhantes
do brasileiro.
O núcleo humorístico desta narrativa
tem como personagem principal
o brasileiro Hermenegildo Fialho
Barrosas. O fato de desempenhar
o papel deste português de
torna-viagem que, em geral, ascende socialmente
por conta da
conquista do dinheiro, já se
mostra, em Camilo, um elemento negativo. Em geral, os
brasileiros encontrados nos
romances camilianos são
vistos como sujeitos grotescos, alvos de ridicularização
e de crítica.
Vale aqui
destacar que essa imagem negativa do brasileiro, entretanto, não é exclusividade
de Camilo. No quase totalmente
desconhecido romance Ouro e
crime! Mistérios de uma
fortuna ganha no Brasil (1855),
Eduardo Tavares constrói um personagem brasileiro, Sr. Thimoteo Rodrigues, que encarna
todas as características negativas presentes na descrição de grande
parte dos brasileiros de Camilo. A presença desta imagem caricata parece ser, portanto,
não uma visão exclusiva do autor de Amor de
perdição, mas sim uma
imagem difundida na
época, como bem podemos notar
a partir do prefácio ao romance
de Eduardo Tavares, assinado por Julio César Machado, nome respeitado e
conhecido no círculo intelectual do período.
Neste
prefácio, Machado aponta para a freqüente imigração dos portugueses ao
Brasil em busca
de fortuna. Ironicamente, o
crítico afirma que “um
pai honesto e meditador, destina um de seus filhos para
cirurgião, outro para padre, e o terceiro para ir para o
Brasil” (TAVARES, 1855, p. 01). A fortuna
alcançada na terra
prometida, entretanto, segundo Machado, é conquistada
sempre de forma escusa,
o que, inevitavelmente, atribui ao seu
portador uma imagem
negativa: “No Brasil há
apenas duas formas
de fazer fortuna:
a falta de
brio, e o instinto da usura. Querer
alcançar fortuna nessas
terras com honra
e boa fé, é
simplesmente uma louca
puerilidade [...]” (1855, p. 04). Nesse sentido, podemos entender
a postura de
Camilo com relação à figura do brasileiro, não como uma
característica particular, mas, de certa forma, como integrante
de um ponto de
vista comum, partilhado pelos intelectuais
em meados do século XIX. Encerremos este parêntese e
voltemos ao romance camiliano.
Como bem
notou Maria Saraiva Jesus, no estudo já aqui amplamente citado, o narrador camiliano utiliza, como instrumento para
alcançar seu objetivo crítico, a descrição física do personagem. Segundo Jesus,
através da descrição grotesca dos traços do brasileiro, “procura-se criar um efeito
cômico que produza um maior distanciamento afetivo da parte do leitor” e acentuar “ainda
mais a repulsa moral provocada por essas personagens” (1986, p.177).
E é, de
fato, o que acontece. Vejamos um exemplo suficiente para elucidar o caso. Dá-se
início ao romance com um capítulo intitulado “Aflições sudoríferas”:
Em um frigidíssimo
dia de janeiro de 1847, por volta das nove horas a manhã, o sr. Hermenegildo Fialho Barrosas,
brasileiro grado e dos
mais gordos da cidade
eterna, estava a suar, na rua
das Flores, encostado
ao balcão da ourivesaria dos srs. Mourões. As camarinhas aljofravam
a brunida testa de Fialho Barrosas, como se a porosa
cabeça deste
sujeito filtrasse
hidraulicamente o
estanque de soro recluso
no bojo não vulgar do mesmo. (BB, p.885, grifo nosso).
Reelaboremos a
cena e notemos
o humor adotado pelo narrador.
Estamos situados em um “frigidíssimo”
dia. O brasileiro, não simplesmente gordo, mas sim “dos mais
gordos”, encontra-se encostado
em um
balcão, transpirando descontroladamente. Este é o primeiro contato do
leitor com o personagem. As referências
fisiológicas não param por aí,
seguindo uma evolução que culmina na morte do brasileiro causada por “demasias de gulodice” (BB, p.987) que
findam por lhe agravar a doença no fígada.
A
linguagem fisiológica adotada pelo narrador irá, de certa forma, estender-se à
caracterização moral dos amigos de Hermenegildo, através do objetivo de
elucidar o leitor acerca das “proeminências
morais” (BB, p.896) destes personagens.
Tais personagens
são apresentados aos
leitores no capítulo terceiro intitulado
“Retratos do Natural”. Aqui, é interessante
destacar as possíveis
conotações presentes neste
título. Maria Saraiva Jesus defende que há um
[...] atributo
de objetividade fotográfica
presente nos ‘retratos’, que além do mais são tirados ‘do natural’, isto é,
da realidade do dia-a-dia, em que as
pessoas são vistas nas suas ações normais, autênticas, sem poderem para o efeito assumir ‘poses’
artificiais. (1986, p.193).
Concordando
com a
interpretação de Jesus, acredito
que há
ainda outra possível
conotação implícita: ao
adotar a
palavra “Natural” o narrador, para além
de sugerir o retrato de
personagens que não se podem disfarçar, parece utilizar tal definição como
sinônimo daquilo que é
socialmente comum ou ainda
o verdadeiro, o que estenderia as “denúncias” dirigidas
aos personagens a
todos os outros
presentes nesta mesma sociedade.
Durante a
descrição dos amigos
de Hermenegildo, o narrador camiliano transmite ao seu leitor duas visões
divergentes dos mesmos personagens: por um lado, a descrição real
ou ainda “Natural” de
cada um deles
e, por outro, a
visão hipócrita da sociedade diante destes personagens.
Atanásio
José da Silva, segundo o narrador, “é capitalista, casado, sócio que foi de molhados com o Sr. Fialho, bom vizinho,
cidadão pacífico e aos costumes disse nada”
(BB, p.896). Esta seria, pois, a descrição inicial do personagem. E,
logo a seguir, o narrador
acrescenta:
Porém, o
povo reza que ele, apanhando em flagrante
a esposa numa excursão
filarmônica às esferas sonorosas com um caixeiro, tão duro e miúdo tocara o compasso no caixeiro com a
batuta de uma tranca, que o rapaz,
expulso a couces, chegou à
terra natal e
expirou oito dias depois, contando
o segredo a sua família. (BB, p.896, grifo nosso).
Em
decorrência deste caso, segundo o narrador, a esposa de Atanásio, após quinze
dias de reclusão
em seu quarto, é perdoada
pelo marido. Ainda de maneira bastante
irônica, a voz narrativa
completa: “Pecadora que
passe por ela é visão que
a enjoa e adoenta. As filhas,
quando a escutam discretar em virtudes, cuidam que sua mãe é uma mulher da Bíblia” (BB,
p.897).
Este
movimento irônico é, ainda, agravado no momento em que o narrador, após afirmar
que Atanásio é contrabandista, completa:
[...]
conforme à justiça e às manhas do Porto, a firma de Atanásio é das mais
acreditadas na praça, e as gazetas, quando escrevem Atanásio José da Silva, antepõem-lhe ao nome os
adjetivos honrado e probo
e, se
acontece ir para
caldas ou praias com
a mulher, vai sempre
“o honrado capitalista com
sua virtuosa esposa”. (BB,
p.897, grifo do autor).
Ora,
temos presente aqui
um movimento descritivo muito
bem estruturado que
claramente denuncia a
hipocrisia social. Após descrever
todo o histórico negativo do personagem, o narrador aponta
para a caracterização deste sujeito diante da sociedade.
Não seria
irônico ou contraditório (ainda que crítico) o narrador afirmar que, apesar de seu passado, Atanásio é bem visto
pela sociedade. O que torna, portanto, esta descrição bastante irônica e denunciativa é o
fato de que não é a voz narrativa onisciente que aponta para este passado negativo, mas sim
a crença do povo (segundo o narrador, como vimos, “o povo reza [...]”). Ou seja, o narrador deixa
claro ao seu leitor
que a sociedade
que reconhece Atanásio como “honrado e probo”
e sua esposa
como “virtuosa”, é a mesma que conhece a fundo seu passado imoral,
denunciando claramente a hipocrisia
presente nesta sociedade.
Já a
caracterização de Pantaleão Mendes Guimarães centra-se na descrição de
sua esposa Francisca
Mendes, anteriormente conhecida como Francisca Ruiva. Segundo o narrador, Pantaleão,
apaixonando-se por Francisca,
[...] trasladou do bordel às
alcatifas de sua
casa a Ruiva, saudosa do lundum chorado, investiu-a da
governança da despensa, e
mais tarde esposou-a, no intento de condecorar
socialmente a lama que trouxera do
alcouce (BB, p.897).
Pois, esta
personagem “já logrou a satisfação de se ver também caluniada de ‘esposa
virtuosa’ nas gazetas”
(BB, p.897, grifo
nosso). Temos aqui
dois movimentos irônicos
distintos: o primeiro, como no
exemplo anterior é o da
contraposição entre a origem
de Francisca Ruiva
e o tratamento dado a ela
nas gazetas; o segundo torna-se bastante
claro através da utilização do termo “caluniada”. Sendo a calúnia, segundo o Dicionário Aurélio,
“ato de procurar desacreditar
publicamente alguém, fazendo-lhe acusações falsas; difamação” (1977, p.89), há
aqui, claramente, uma inversão completa de valores, pois
chamar Francisca Ruiva, uma
mulher advinda de
um bordel, de “virtuosa” é uma inusitada forma de
calúnia.
O movimento irônico – e crítico –
é ainda agravado pelo uso do advérbio “também” que finda por estender aos personagens descritos anteriormente (Atanásio e sua esposa), a idéia da adjetivação presente
nas gazetas como calúnia.
O terceiro e
último amigo do brasileiro,
Antonio Joaquim Bernardo, “estúpido perversíssimo, antigo gandaieiro [...] casou-se com a mais desbragada polha que deu
a Maia”
(BB, p.897). Esta, apesar
de nomeada “ilustre”
e “distinta”, “não a tratavam
de virtuosa, porque o localista receou que o termo, revendo ironia, lhe
fechasse as portas do próximo baile” (BB,
p.898).
Aqui é
interessante notar que
a ironia do
narrador se dá, não no
fato de a personagem ter
sido tratada como distinta ou virtuosa, mas sim
em uma espécie
de mostra de que até a sociedade,
claramente hipócrita, possui um certo limite de aceitação – mais hipócrita que a própria hipocrisia
mostrada – condenando aquilo que julga como exagero.
Como
forma de
reafirmar sua crítica, o narrador inicia
o capítulo seguinte intitulando-o
“Tribunal de honra”. Mais
uma vez há
um movimento irônico. Após mostrar, através de
suas descrições que,
de fato, estes personagens
não possuem “proeminências morais”
dignas de participarem
deste “pleito de honra”, o narrador reutiliza a palavra, contradizendo assim tudo
aquilo que já havia mostrado no capítulo anterior, ou seja, mesmo após denunciar
claramente personagens pouco honrados, o narrador retoma o termo, criando assim um
movimento cíclico que reitera sua ironia e, por conseguinte, sua crítica.
São estes,
portanto, os personagens que
figuram o núcleo humorístico da narrativa: sujeitos
que, como vimos, embora
moralmente desqualificados, são
vistos positivamente por
uma sociedade hipócrita,
uma vez que
possuem dinheiro suficiente para “pagar” tal respeito.
Inicia-se,
pois, o “Tribunal de honra”, no qual os
quatro personagens (Hermenegildo, Atanásio, Pantaleão e Joaquim), discutem o justo destino de Ângela, uma vez que a esposa do brasileiro não
confessa o que fez com o dinheiro da venda dos brilhantes.
Tal
discussão, repleta de cenas hilárias, evidencia, cada vez mais, os valores adotados pela sociedade que vem sendo retratada: uma sociedade que
tem como valor primordial o dinheiro e o
reconhecimento social, em detrimento de qualquer sentimento verdadeiro que
possa existir. É o que fica bastante claro na cena em que Hermenegildo lamenta-se de seu
destino e da perda
de sua esposa
– e ainda mais
de sua honra.
Desconsiderando
qualquer possibilidade de existência de um sentimento verdadeiro, os amigos do brasileiro ironizam:
– Pois
você ainda está nessa!...Matar-se por causa de mulheres! Está a ler o nosso homem! [...] Com que então
você, com amigos e fortuna, era capaz de
tomar veneno pr’amor duma desaustinada de mulher que se portou mal! Ela que se mate, se quiser; e
você viva regaladamente com cento e
noventa contos que tem. Faça de conta que ela morreu e trate de arranjar outra... – Ou duas que é
melhor – emendou Atanásio. – Ou três,
que é
mais peitoral – ampliou Pantaleão [...] –
Quatro, quatro, para não ser pernão...O
dado é sete fêmeas para cada macho. (BB,
p.912, grifo nosso).
É importante
notar aqui que, para
além da crítica
à subordinação dos sentimentos
em relação ao poder argentário, há também
a partir deste
momento, de forma bastante
interessante, uma espécie de
jogo com as expectativas
dos leitores através da crítica irônica dos expedientes tão
caros às chamadas novelas passionais.
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Fonte:
Juliana Yokoo Garcia: “Amores contrariados, puros e abnegados?” (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Professor Doutor Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2008.
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