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O narrador que se mostra... ou se
esconde
“ Até que (...) plenamente
possuído da obra, ele resolveu-se a tomar a pena.”
(Glória latente)
O primeiro conto que Raul Pompéia
publicou tem um título bastante sugestivo para um texto de estreia: “Como
nasceu, viveu e morreu a minha inspiração”. O conto saiu nas páginas do
periódico paulista A Comédia, nos dias 4 e 5 de abril de 1881, quando o autor,
prestes a completar 18 anos, já cursava a Faculdade de Direito em São Paulo.
Recém- chegado à capital paulista, Pompéia, que já havia publicado a novela Uma
tragédia no Amazonas e escrito panfletos políticos no Rio de Janeiro, logo se
envolveu com os órgãos de imprensa de São Paulo. O conto publicado em A Comédia
foi provavelmente seu primeiro texto literário após a novela carioca, espécie
de cartão de apresentação doestudante de direito.
O conto é narrado em primeira
pessoa por um estudante que se prepara para a festa de aniversário de uma moça
pela qual nutre românticas esperanças. Aguardando em seu modesto quarto de
aluguel o momento de ir à festa, busca maneiras de melhor passar o tempo, de
forma a aliviar sua expectativa. Resolve, num lampejo, escrever um poema, com o
qual presentearia a moça, aliado a um laço (que ele chama gravatinha) de fita
azul que já havia comprado para a ocasião. No entanto, ao sentar-se à mesa e
tomar a pena para escrever o primeiro verso, uma gota de tinta cai-lhe no punho
da camisa que vestia, a única que se encontrava em condições para a festa,
inutilizando-a. O pequeno incidente impede-o de ir à festa, o que, por
consequência, leva-o a ser preterido pela moça em favor de outro rapaz, com o
qual viria a se casar.
Bastante simples, o resumo do
enredo não permite ver inteiramente os recursos irônicos de que o autor se
utiliza para desconstruir a ambientação romântica e ingênua da história.
Narrado a partir de dentro, da perspectiva do protagonista, que por sua vez
rememora fatos passados, o conto irá, sub-repticiamente, descascando a máscara
romântica através da auto-ironia do narrador, traído pela própria linguagem.
O conto se vale de um arcabouço
romântico, desencadeado pela situação supostamente ingênua e comum do enamorado
que constrói castelos de felicidade futura ao lado da amada. O
narrador-protagonista, por ter vivido as situações e sofrido os sentimentos, pode, a partir
de sua visão subjetiva e impregnada dos fatos, relatar de forma expressiva e
comovente a situação dramática por que passou, como sugere o título do conto.
Não é possível determinar com precisão o tempo transcorrido entre os fatos
narrados e o presente do narrador. No entanto, é possível observar que o
intervalo de tempo entre as ações transcorridas e seu respectivo relato permite
ao narrador, que ainda é um jovem estudante, posicionar-se de forma ambígua,
alternando a subjetividade das emoções vividas com a objetividade da análise
racional.
De fato, o conto se inicia
configurando o ambiente romântico de um estudante enamorado. O narrador
relembra o momento, salientando sua alegre expectativa e toda a felicidade que
deveria encontrar ao lado da amada, em plena idealização romântica: “O dia dos
seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um
viver de alegrias.” (p.19). Ao lembrar o presente, “simples”, que daria à moça,
o narrador justifica-se, ou melhor, exime-se de qualquer suspeita em relação à
verdade de seus sentimentos, ao afirmar que a gravatinha agradaria a moça porque
era dada de coração (“Era o meu coração quem o dava”) (p.19), portanto, com
toda a verdade de seu amor, fato que a menina já saberia de antemão. Além do
mais, por ser o narrador um estudante sem recursos, a singeleza do presente
adquiriria um significado nobre, dada a plenitude do gesto, o que seria
suficiente para desanuviar qualquer má impressão por parte da moça.
Pompéia sequer completara 18 anos
quando publicou o conto, mas cabe notar sua desenvoltura com a técnica
narrativa neste texto. No primeiro e segundo parágrafos, o narrador nos dá um
resumo da situação em que se encontra, utilizando, inicialmente, o pretérito
imperfeito com valor de futuro do pretérito, com o qual terminará a
apresentação inicial, criando a dúbia impressão dos fatos ali descritos terem
ou não acontecido: Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar
esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu
presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe.
Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um
estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá bem... Ela desculparia.
Que noute ia eu passar!
Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha... (p.19)
Já no início do parágrafo
seguinte, muda do resumo para a cena, aproximando o leitor dos fatos, arrolando
suas ações no pretérito perfeito: “Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me;
perfumei-me; mirei-me, etc., etc.” (p.19). A essa aproximação do leitor, o
narrador simula uma intimidade, chamando-o para dentro da cena, de modo que
participe da história, respondendo às perguntas que o narrador parece fazer a
si próprio:
Mas eram cinco horas e eu não
queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?...
Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas
longuíssimas horas? Que fazer?... (p.19)
Há de se notar que as reticências
prolongam o tempo da reflexão, como se um intervalo fosse introduzido entre os
pensamentos, tanto para sugerir a malícia na intenção de demorar-se e expor a
dificuldade do estudante em concluir o que fazer com o tempo disponível, quanto
para possibilitar uma hipotética interlocução do leitor.
Assumindo esse tom íntimo, o
narrador poderá, em diversos momentos, interromper a sequência dos fatos, que
por si não são numerosos, para divagar, exclamar impressões, dialogar com o
leitor que projeta. Há, entretanto, nesse narrador, algo que parece inadequado,
que cria um descompasso entre os fatos narrados e a linguagem que os recria,
que, de forma insidiosa, penetra na narração, corrompendo-a a partir de dentro
e lançando uma nuvem de desconfiança sobre o próprio narrador.
Élide Valarini, estudando o modo
como Pompéia, n’O Ateneu, parodia a retórica escolar do século XIX, chama
atenção para o movimento de rebaixamento perpetrado pela paródia, uma vez que,
ao colocar-se ao lado (o canto paralelo), estabelece um contraste com o
primeiro nível de significado, misturando-se a ele e pervertendo-o: “Os níveis
se misturam, elevado e baixo, concreto e abstrato, pertinente e impertinente; é
como se as palavras e as imagens estivessem fantasiadas. E, logo adiante, logo
adiante, baseada no conceito de carnavalização de Bakhtin, afirma: “Quando
níveis discrepantes se unem para formar um só discurso, é muito pouco provável
que o resultado seja o tom elevado com que muitas vezes se constroem as obras
sérias.” A análise da linguagem paródica n’O Ateneu serve de pista para
compreender de que forma o narrador do conto de 1881 desconstrói seu próprio
discurso romântico.
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Fonte:
Sidnei Xavier dos Santos: “As
metamorfoses de Raul Pompéia: um estudo dos contos”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Literária e Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Vieira Martins). São Paulo, 2011.
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