09/03/2014

Contos Completos de Raul Pompeia

 Contos Completos de Raul Pompeia
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O narrador que se mostra... ou se esconde

“ Até que (...) plenamente possuído da obra, ele resolveu-se a tomar a pena.”
(Glória latente)

O primeiro conto que Raul Pompéia publicou tem um título bastante sugestivo para um texto de estreia: “Como nasceu, viveu e morreu a minha inspiração”. O conto saiu nas páginas do periódico paulista A Comédia, nos dias 4 e 5 de abril de 1881, quando o autor, prestes a completar 18 anos, já cursava a Faculdade de Direito em São Paulo. Recém- chegado à capital paulista, Pompéia, que já havia publicado a novela Uma tragédia no Amazonas e escrito panfletos políticos no Rio de Janeiro, logo se envolveu com os órgãos de imprensa de São Paulo. O conto publicado em A Comédia foi provavelmente seu primeiro texto literário após a novela carioca, espécie de cartão de apresentação doestudante de direito.

O conto é narrado em primeira pessoa por um estudante que se prepara para a festa de aniversário de uma moça pela qual nutre românticas esperanças. Aguardando em seu modesto quarto de aluguel o momento de ir à festa, busca maneiras de melhor passar o tempo, de forma a aliviar sua expectativa. Resolve, num lampejo, escrever um poema, com o qual presentearia a moça, aliado a um laço (que ele chama gravatinha) de fita azul que já havia comprado para a ocasião. No entanto, ao sentar-se à mesa e tomar a pena para escrever o primeiro verso, uma gota de tinta cai-lhe no punho da camisa que vestia, a única que se encontrava em condições para a festa, inutilizando-a. O pequeno incidente impede-o de ir à festa, o que, por consequência, leva-o a ser preterido pela moça em favor de outro rapaz, com o qual viria a se casar.

Bastante simples, o resumo do enredo não permite ver inteiramente os recursos irônicos de que o autor se utiliza para desconstruir a ambientação romântica e ingênua da história. Narrado a partir de dentro, da perspectiva do protagonista, que por sua vez rememora fatos passados, o conto irá, sub-repticiamente, descascando a máscara romântica através da auto-ironia do narrador, traído pela própria linguagem.

O conto se vale de um arcabouço romântico, desencadeado pela situação supostamente ingênua e comum do enamorado que constrói castelos de felicidade futura ao lado da amada. O narrador-protagonista, por ter vivido as situações e       sofrido os sentimentos, pode, a partir de sua visão subjetiva e impregnada dos fatos, relatar de forma expressiva e comovente a situação dramática por que passou, como sugere o título do conto. Não é possível determinar com precisão o tempo transcorrido entre os fatos narrados e o presente do narrador. No entanto, é possível observar que o intervalo de tempo entre as ações transcorridas e seu respectivo relato permite ao narrador, que ainda é um jovem estudante, posicionar-se de forma ambígua, alternando a subjetividade das emoções vividas com a objetividade da análise racional.

De fato, o conto se inicia configurando o ambiente romântico de um estudante enamorado. O narrador relembra o momento, salientando sua alegre expectativa e toda a felicidade que deveria encontrar ao lado da amada, em plena idealização romântica: “O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias.” (p.19). Ao lembrar o presente, “simples”, que daria à moça, o narrador justifica-se, ou melhor, exime-se de qualquer suspeita em relação à verdade de seus sentimentos, ao afirmar que a gravatinha agradaria a moça porque era dada de coração (“Era o meu coração quem o dava”) (p.19), portanto, com toda a verdade de seu amor, fato que a menina já saberia de antemão. Além do mais, por ser o narrador um estudante sem recursos, a singeleza do presente adquiriria um significado nobre, dada a plenitude do gesto, o que seria suficiente para desanuviar qualquer má impressão por parte da moça.
Pompéia sequer completara 18 anos quando publicou o conto, mas cabe notar sua desenvoltura com a técnica narrativa neste texto. No primeiro e segundo parágrafos, o narrador nos dá um resumo da situação em que se encontra, utilizando, inicialmente, o pretérito imperfeito com valor de futuro do pretérito, com o qual terminará a apresentação inicial, criando a dúbia impressão dos fatos ali descritos terem ou não acontecido: Eu ia vê-la naquele dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo quando dá bem... Ela desculparia.

Que noute ia eu passar! Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha... (p.19)

Já no início do parágrafo seguinte, muda do resumo para a cena, aproximando o leitor dos fatos, arrolando suas ações no pretérito perfeito: “Preparei-me. Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc.” (p.19). A essa aproximação do leitor, o narrador simula uma intimidade, chamando-o para dentro da cena, de modo que participe da história, respondendo às perguntas que o narrador parece fazer a si próprio:

Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?... (p.19)

Há de se notar que as reticências prolongam o tempo da reflexão, como se um intervalo fosse introduzido entre os pensamentos, tanto para sugerir a malícia na intenção de demorar-se e expor a dificuldade do estudante em concluir o que fazer com o tempo disponível, quanto para possibilitar uma hipotética interlocução do leitor.

Assumindo esse tom íntimo, o narrador poderá, em diversos momentos, interromper a sequência dos fatos, que por si não são numerosos, para divagar, exclamar impressões, dialogar com o leitor que projeta. Há, entretanto, nesse narrador, algo que parece inadequado, que cria um descompasso entre os fatos narrados e a linguagem que os recria, que, de forma insidiosa, penetra na narração, corrompendo-a a partir de dentro e lançando uma nuvem de desconfiança sobre o próprio narrador.

Élide Valarini, estudando o modo como Pompéia, n’O Ateneu, parodia a retórica escolar do século XIX, chama atenção para o movimento de rebaixamento perpetrado pela paródia, uma vez que, ao colocar-se ao lado (o canto paralelo), estabelece um contraste com o primeiro nível de significado, misturando-se a ele e pervertendo-o: “Os níveis se misturam, elevado e baixo, concreto e abstrato, pertinente e impertinente; é como se as palavras e as imagens estivessem fantasiadas. E, logo adiante, logo adiante, baseada no conceito de carnavalização de Bakhtin, afirma: “Quando níveis discrepantes se unem para formar um só discurso, é muito pouco provável que o resultado seja o tom elevado com que muitas vezes se constroem as obras sérias.” A análise da linguagem paródica n’O Ateneu serve de pista para compreender de que forma o narrador do conto de 1881 desconstrói seu próprio discurso romântico.


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Fonte:
Sidnei Xavier dos Santos: “As metamorfoses de Raul Pompéia: um estudo dos contos”. (Dissertação   apresentada ao   Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Vieira Martins). São Paulo, 2011.

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