22/03/2014

A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis

 A Morgadinha dos canaviais de Julio Diniz
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A construção do mundo dinisiano

Os títulos dos romances de Dinis evocam não propriamente indivíduos, designados por seus apelativos pessoais, mas as funções sociais exercidas pelos protagonistas: “pupilas”, “reitores”, “morgadas”, “fidalgos” ou “famílias inglesas” determinam posições públicas bem definidas e é essa uma primeira pista que nos permite buscar em cada um de seus textos um projeto social, dissimulado em uma intriga que o narrador define como “singelíssima”, de “singelos episódios”, em que os protagonistas têm uma “singela história dos mais inocentes afetos” e na qual, “para não alimentar ilusórias esperanças”, o narrador declara desde logo que “a ação prossegue desimpedida de complicadas peripécias”.

Esse projeto, que apresenta no texto ficcional uma proposta de solução para os problemas políticos e sociais, não se pretende, evidentemente, mera cópia literária do cotidiano, mas antes “um trabalho de investigação sobre o possível, uma maneira de explorar e, às
vezes, de mostrar como o cotidiano pode ser diferente, “outro” e preferivelmente melhor, como pode ser o que (ainda) não pôde ser [...]”. Nas palavras de Helena Buescu, que já citamos, se “a casa (os seus habitantes) pode(m) resolver os seus problemas e inventar novas formas de interação (e pacificação) social, isso quer também dizer, para Dinis, que o país, que a casa em segundo grau representa, o pode também fazer; e, em terceiro grau, que o mundo dos homens, a este respeito também funcionalmente análogo [...] tem só de saber “traduzir” para uma escala maior o que, em escala reduzida, pode ser (e já foi) resolvido”.

A estrutura dos romances de Dinis – escritos, é verdade, dentro do breve período de dez anos – é de uma similaridade espantosa. Em todos eles, depois de um período de dúvidas e hesitações existenciais, durante o qual passa por um processo de auto-conhecimento e de auto-experimentação, um herói quase sempre educado – e muitas vezes em circunstâncias extraordinárias – casa-se com uma heroína também educada – e aqui, quase sempre em circunstâncias muito extraordinárias.

Os protagonistas também apresentam outras similaridades, além da educação. Aos dois irmãos órfãos de As Pupilas do Senhor Reitor, que se casam com duas irmãs órfãs, sucedem o órfão Carlos que se casa com a órfã Cecília, os órfãos Henrique e Augusto que se casam com Cristina – que tem mãe, mas, em compensação, não tem pai – e com a órfã Madalena e, por fim, os dois irmãos órfãos Jorge e Maurício, que se casam com Berta, que também tem mãe, mas tem pai – é a única – e com a órfã Gabriela. Note-se que, em quase todos os casos, a orfandade é de mãe. Pai, diversos tem, embora não todos. Em vários casos, a presença do pai é mais um problema que uma solução. Assim, são conflituosas as relações entre Carlos e Mr. Whitestone; o pai de Madalena é o último a ceder ao casamento dela com Augusto; e toda a trama de Os fidalgos da Casa Mourisca se baseia nos problemas gerados pelo velho Dom Luís.

A existência de uma maioria tão pronunciada de famílias com apenas um ou dois filhos, numa época em que a média nacional portuguesa era muito maior, faz pensar, aliás, num programa ideológico presente também nesse aspecto. Jauss detecta no romance de Balzac, onde o modelo “douceur du foyer”, também presente em Dinis, é considerado por ele “idéologiquement retrograde”, uma “tendance progressive de la haute bourgeosie”, que em Dinis aparece também na pequena e média burguesia, em que o modelo de família limita-se à “la trinité du père, de la mère et de l’enfant; quand il arrive que plusieurs enfants soient mentionés, le nombre em reste moderé”.

Todos os heróis têm excelentes corações. Seus erros são decorrentes da “cabeça”, que “não vale grande coisa, não”, no caso de Daniel; que, em Carlos – “bom moço, isso lá é, um coração de pomba... A cabeça é que...” – gera um comportamento censurável que “não partiu do [...] coração, que é muito bom e muito generoso, partiu mas foi desta cabeça – e [Jenny] pousava-lhe a mão na fronte; – desta cabeça, que é uma estouvada”, que, em Henrique está afetada por “uma doença moral; revelava-se por uma maneira de ver as coisas, de pensar e de proceder verdadeiramente doentia” e, em Maurício e Jorge tem um desequilíbrio que este último avalia, dizendo que “a loucura é inseparável do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha nos desvarios a que ela é arrastada; é o caso de Maurício; outras vezes há na cabeça a frieza da razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com afectos; quer-me parecer que é o que sucede comigo.”

Também em todos os romances, com exceção de As Pupilas do Senhor Reitor, em que a diferença de fortuna e posição são desprezíveis, as dificuldades amorosas são, em pelo menos um dos pares em cada romance, entremeadas de diferenças sociais. Assim, casamento final, mais do que uma aspiração sentimental e afetiva, de natureza individual, dá solução a um conflito de natureza coletiva.

Como vimos acima, o momento político em que são publicados os romances de Dinis é um momento de busca de síntese, de conciliação. É esse o “diferente”, o “outro” que se busca, após longos anos de dilaceração político-social. Tal conciliação será o núcleo do projeto social proposto nos textos de Dinis e, antes de manifestá-lo intra-textualmente em seus romances, fala dele em alguns de seus textos teóricos, ainda que de passagem, afirmando, por exemplo, que “nossa época é, por mais que façam, uma época de reconciliação e tolerância”, num artigo em que saúda a aproximação dos conceitos do romantismo e da ciência, o que seria um “exemplo eloqüente da reconciliação de que falamos!”. Assim, é todo o conjunto de sua obra que, segundo Paulo Motta Oliveira, “may be seen as a metaphor of a country in search of an ideal middle ground where tensions between these groups do not exist” e que, nas palavras de Marina Ribeiro, é “uma imagem de esperança e a memória magoada de um país que se dividira em dois e que demorava a reconciliar-se”.

Vejamos agora como essa alegoria do país realizada nos quatro romances de Dinis – num esquema que, aliás, Eça refinará em A Ilustre Casa de Ramires, onde Gonçalo, explicitamente, é Portugal – é posta em funcionamento e quais são os mecanismos operadores das soluções propostas. Para isso, devemos examinar as personagens que, mais especificamente, encarnam a metaforização, os heróis e heroínas em quem vivem e são resolvidos os problemas sociais da época.

Num estudo introdutório a Uma família inglesa, Helena Buescu afirma que “é o elemento masculino que, normalmente, evolui ao longo do texto, para se aproximar de e fi- nalmente reunir-se a uma personagem feminina que, podemos dizê-lo, quase se limita a esperar que esse movimento se complete”. A assertiva é muito interessante e talvez seu maior interesse esteja em sua sutil imprecisão.

Analisemo-la, primeiro, no que se refere ao elemento masculino. Não resta dúvida de que os romances de Dinis têm uma notável quantidade de personagens masculinas cuja posição se altera no decurso na narrativa. É verdade que essa alteração os conduzirá – as mais das vezes – aos braços da heroína, mas o que é notável, e que os distingue de tantas outras narrativas puramente românticas, é que a união com a heroína é concomitante e possível somente com a ocorrência de uma transformação muito mais profundas.

Não é exagerado ver nos romances de Dinis verdadeiros – embora sutis, “leves”, como quereria Eça, - Bildungsroman, romances de formação em que o caráter do herói é profundamente modificado através de uma aprendizagem. Poder-se-ia objetar que os heróis de Dinis não têm, como o prototípico Wilhelm Meister de Goethe, uma aspiração “ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades”, que seria uma das marcas do gênero. Há aqui dois aspectos a considerar: por um lado, essa afirmativa não é inteiramente verdadeira. Tanto Daniel quanto Carlos, Henrique, Jorge, Maurício e mesmo D. Luís, Augusto e o próprio Conselheiro mostram, em algum momento da narrativa, uma insatisfação profunda com o estado atual de suas vidas e de suas personalidades, numa aspiração por mudança que os aproxima da personagem prototípica do romance de formação. Por outro lado, têm os textos de Dinis, “como sua temática fundamental, a trajetória de um indivíduo particular que, vivenciando as mais diferentes experiências, aspira [...] a uma integração harmônica e fecunda com a sociedade a que pertence”, possuindo, pois, as outras marcas definidoras do Bildungsroman e sendo, nesse sentido, “uma expressão específica da ‘utopia do tempo’”.

Ora, os protagonistas masculinos de Dinis são, todos, de algum modo, inadaptados à sociedade burguesa tal como a concebe a utopia dinisiana – pois, note-se, não lhe falta a crítica à burguesia real nem ao sistema político que a sustenta – seja por se apegarem indevidamente ao passado, seja por abandonarem as raízes tradicionais dessa sociedade. Não são, no início dos romances, personagens de conjunção, de harmonização - características essenciais da utopia de Dinis -, mas de ruptura e de dilaceração. Seres que aspiram a uma reintegração, ainda quando o desconheçam.

A própria chamada ingenuidade dos textos dinisianos, que os aproxima das concepções rousseaunianas, segundo a qual, expulso do paraíso, mas essencialmente divino, é através da educação – que é fundamentalmente uma auto-educação, embora guiada por um mentor – que o homem deve reconquistá-lo, não numa sobrenatural vida futura, mas numa vida natural e presente, é também aparentada com as raízes mais profundas do Bildungsroman, já que o termo  Bildung é de origem medieval, tendo sido usado por Mestre Eckart e pelos místicos posteriores como modelo da imagem divina, cujo centro é ocupado pelo homem.

Quando o seu sentido se altera para “transformatio”, refere-se à reconquista do Paraíso perdido, “significando também a remodelação do pecado original do homem culpado [...], novo portador da imagem divina”.

Ora, os heróis dinisianos, sujeitos da transformação que constitui o núcleo de cada romance, são sempre, em alguma medida, “culpados” em busca de um Paraíso ideal que suas próprias convicções, sentimentos ou ações os impedem de alcançar. A remoção desses obstáculos, através de um processo de auto-conhecimento – de reconhecimento – sempre guiada, de forma mais ou menos explícita, por uma mulher, como veremos, é que possibilitará os finais felizes, reconquistas de um Paraíso natural e humano, em que muitos não viram mais do que happy-ends de romances-rosa.

Além disso, é interessante notar que, desde sua origem em Mestre Eckhart, o conceito de Bildung, que se poderia traduzir, como vimos, por imagem, forma, aludindo à forma divina presente no homem, refere-se antes a uma descoberta, desenvolvimento e aperfeiçoamento de algo que já está presente no protagonista, mas em estado latente, do que a uma ação vinda puramente do exterior. A função do mestre – ou da mestra, no caso de Dinis – é antes fazer com que o discípulo se descubra, cresça e aperfeiçoe do que fornecer-lhe algo que lhe era estranho.

Os principais protagonistas dinisianos são Daniel, em As Pupilas do Senhor Reitor, Carlos, em Uma Família Inglesa, Henrique em A Morgadinha dos Canaviais e Jorge em Os Fidalgos da Casa Mourisca. A verdadeira obsessão por paralelismos que se evidencia em As Pupilas do Senhor Reitor, mas que aparece também em outros textos de Dinis,vai fornecer ao primeiro e ao último duplos não antitéticos, mas complementares, Pedro e Maurício,  que participam em larga medida, sobretudo Maurício, da transformação do protagonista principal. Não seria impossível, ainda, enxergar em Mr. Whitestone e em Augusto figuras especulares de Carlos e de Jorge, que sofrem com eles, embora em grau menor, o movimentos de auto-conhecimento transformador. Em todos eles, qualidades latentes, mas sufocadas ou atenuadas, garantem a possibilidade de evolução.

Analisemos, em primeiro lugar, o tipo de transformação sofrido por essas personagens, investigando em que medida elas podem ser vistas como metáforas dos conflitos e soluções presentes na sociedade portuguesa de então. Procuraremos mostrar em seguida de que modo essa transformação é guiada, sempre, por uma figura feminina.


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Fonte:
Maria Ivone Pereira de Miranda Fedeli: “A mão que balança o berço: Funções do feminino em Júlio Dinis”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Profa. Dra. Lênia Márcia de Medeiros Mongelli). São Paulo, 2007.

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