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A
construção do mundo dinisiano
Os títulos dos romances de Dinis evocam não propriamente indivíduos, designados por seus apelativos pessoais, mas as funções sociais exercidas pelos protagonistas: “pupilas”, “reitores”, “morgadas”, “fidalgos” ou “famílias inglesas” determinam posições públicas bem definidas e é essa uma primeira pista que nos permite buscar em cada um de seus textos um projeto social, dissimulado em uma intriga que o narrador define como “singelíssima”, de “singelos episódios”, em que os protagonistas têm uma “singela história dos mais inocentes afetos” e na qual, “para não alimentar ilusórias esperanças”, o narrador declara desde logo que “a ação prossegue desimpedida de complicadas peripécias”.
Esse
projeto, que apresenta no texto ficcional uma proposta de solução para os problemas
políticos e sociais, não se pretende, evidentemente, mera cópia literária do
cotidiano, mas antes “um trabalho de investigação sobre o possível, uma maneira
de explorar e, às
vezes, de
mostrar como o cotidiano pode ser diferente, “outro” e preferivelmente melhor,
como pode ser o que (ainda) não pôde ser [...]”. Nas palavras de Helena Buescu,
que já citamos, se “a casa (os seus habitantes) pode(m) resolver os seus
problemas e inventar novas formas de interação (e pacificação) social, isso
quer também dizer, para Dinis, que o país, que a casa em segundo grau
representa, o pode também fazer; e, em terceiro grau, que o mundo dos homens, a
este respeito também funcionalmente análogo [...] tem só de saber “traduzir” para
uma escala maior o que, em escala reduzida, pode ser (e já foi) resolvido”.
A
estrutura dos romances de Dinis – escritos, é verdade, dentro do breve período de
dez anos – é de uma similaridade espantosa. Em todos eles, depois de um período
de dúvidas e hesitações existenciais, durante o qual passa por um processo de
auto-conhecimento e de auto-experimentação, um herói quase sempre educado – e
muitas vezes em circunstâncias extraordinárias – casa-se com uma heroína também
educada – e aqui, quase sempre em circunstâncias muito extraordinárias.
Os
protagonistas também apresentam outras similaridades, além da educação. Aos dois
irmãos órfãos de As Pupilas do Senhor Reitor, que se casam com duas
irmãs órfãs, sucedem o órfão Carlos que se casa com a órfã Cecília, os órfãos
Henrique e Augusto que se casam com Cristina – que tem mãe, mas, em
compensação, não tem pai – e com a órfã Madalena e, por fim, os dois irmãos
órfãos Jorge e Maurício, que se casam com Berta, que também tem mãe, mas tem
pai – é a única – e com a órfã Gabriela. Note-se que, em quase todos os casos,
a orfandade é de mãe. Pai, diversos tem, embora não todos. Em vários casos, a
presença do pai é mais um problema que uma solução. Assim, são conflituosas as
relações entre Carlos e Mr. Whitestone; o pai de Madalena é o último a ceder ao
casamento dela com Augusto; e toda a trama de Os fidalgos da Casa Mourisca
se baseia nos problemas gerados pelo velho Dom Luís.
A
existência de uma maioria tão pronunciada de famílias com apenas um ou dois filhos,
numa época em que a média nacional portuguesa era muito maior, faz pensar,
aliás, num programa ideológico presente também nesse aspecto. Jauss detecta no
romance de Balzac, onde o modelo “douceur du foyer”, também presente em Dinis,
é considerado por ele “idéologiquement retrograde”, uma “tendance progressive
de la haute bourgeosie”, que em Dinis aparece também na pequena e média
burguesia, em que o modelo de família limita-se à “la trinité du père, de la
mère et de l’enfant; quand il arrive que plusieurs enfants soient mentionés, le
nombre em reste moderé”.
Todos os
heróis têm excelentes corações. Seus erros são decorrentes da “cabeça”, que “não
vale grande coisa, não”, no caso de Daniel; que, em Carlos – “bom moço, isso lá
é, um coração de pomba... A cabeça é que...” – gera um comportamento censurável
que “não partiu do [...] coração, que é muito bom e muito generoso, partiu mas
foi desta cabeça – e [Jenny] pousava-lhe a mão na fronte; – desta cabeça, que é
uma estouvada”, que, em Henrique está afetada por “uma doença moral;
revelava-se por uma maneira de ver as coisas, de pensar e de proceder
verdadeiramente doentia” e, em Maurício e Jorge tem um desequilíbrio que este último
avalia, dizendo que “a loucura é inseparável do homem; umas vezes toma-lhe a
cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha nos desvarios a que
ela é arrastada; é o caso de Maurício; outras vezes há na cabeça a frieza da
razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com afectos; quer-me
parecer que é o que sucede comigo.”
Também em
todos os romances, com exceção de As Pupilas do Senhor Reitor, em que a
diferença de fortuna e posição são desprezíveis, as dificuldades amorosas são,
em pelo menos um dos pares em cada romance, entremeadas de diferenças sociais.
Assim, casamento final, mais do que uma aspiração sentimental e afetiva, de
natureza individual, dá solução a um conflito de natureza coletiva.
Como vimos
acima, o momento político em que são publicados os romances de Dinis é um
momento de busca de síntese, de conciliação. É esse o “diferente”, o “outro”
que se busca, após longos anos de dilaceração político-social. Tal conciliação
será o núcleo do projeto social proposto nos textos de Dinis e, antes de
manifestá-lo intra-textualmente em seus romances, fala dele em alguns de seus
textos teóricos, ainda que de passagem, afirmando, por exemplo, que “nossa
época é, por mais que façam, uma época de reconciliação e tolerância”, num
artigo em que saúda a aproximação dos conceitos do romantismo e da ciência, o
que seria um “exemplo eloqüente da reconciliação de que falamos!”. Assim, é
todo o conjunto de sua obra que, segundo Paulo Motta Oliveira, “may be seen as a
metaphor of a country in search of an ideal middle ground where tensions
between these groups do not exist” e que, nas palavras de Marina Ribeiro, é “uma
imagem de esperança e a memória magoada de um país que se dividira em dois e
que demorava a reconciliar-se”.
Vejamos
agora como essa alegoria do país realizada nos quatro romances de Dinis – num
esquema que, aliás, Eça refinará em A Ilustre Casa de Ramires, onde
Gonçalo, explicitamente, é Portugal – é posta em funcionamento e quais são os
mecanismos operadores das soluções propostas. Para isso, devemos examinar as
personagens que, mais especificamente, encarnam a metaforização, os heróis e
heroínas em quem vivem e são resolvidos os problemas sociais da época.
Num estudo introdutório a Uma família inglesa,
Helena Buescu afirma que “é o elemento masculino que, normalmente, evolui ao
longo do texto, para se aproximar de e fi- nalmente reunir-se a uma personagem
feminina que, podemos dizê-lo, quase se limita a esperar que esse movimento se
complete”. A assertiva é muito interessante e talvez seu maior interesse esteja
em sua sutil imprecisão.
Analisemo-la,
primeiro, no que se refere ao elemento masculino. Não resta dúvida de que os
romances de Dinis têm uma notável quantidade de personagens masculinas cuja posição
se altera no decurso na narrativa. É verdade que essa alteração os conduzirá –
as mais das vezes – aos braços da heroína, mas o que é notável, e que os
distingue de tantas outras narrativas puramente românticas, é que a união com a
heroína é concomitante e possível somente com a ocorrência de uma transformação
muito mais profundas.
Não é
exagerado ver nos romances de Dinis verdadeiros – embora sutis, “leves”, como
quereria Eça, - Bildungsroman, romances de formação em que o caráter do herói é
profundamente modificado através de uma aprendizagem. Poder-se-ia objetar que
os heróis de Dinis não têm, como o prototípico Wilhelm Meister de
Goethe, uma aspiração “ao desenvolvimento pleno de suas potencialidades”, que
seria uma das marcas do gênero. Há aqui dois aspectos a considerar: por um
lado, essa afirmativa não é inteiramente verdadeira. Tanto Daniel quanto
Carlos, Henrique, Jorge, Maurício e mesmo D. Luís, Augusto e o próprio Conselheiro
mostram, em algum momento da narrativa, uma insatisfação profunda com o estado
atual de suas vidas e de suas personalidades, numa aspiração por mudança que os
aproxima da personagem prototípica do romance de formação. Por outro lado, têm
os textos de Dinis, “como sua temática fundamental, a trajetória de um
indivíduo particular que, vivenciando as mais diferentes experiências, aspira
[...] a uma integração harmônica e fecunda com a sociedade a que pertence”,
possuindo, pois, as outras marcas definidoras do Bildungsroman e sendo,
nesse sentido, “uma expressão específica da ‘utopia do tempo’”.
Ora, os
protagonistas masculinos de Dinis são, todos, de algum modo, inadaptados à
sociedade burguesa tal como a concebe a utopia dinisiana – pois, note-se, não
lhe falta a crítica à burguesia real nem ao sistema político que a sustenta –
seja por se apegarem indevidamente ao passado, seja por abandonarem as raízes
tradicionais dessa sociedade. Não são, no início dos romances, personagens de
conjunção, de harmonização - características essenciais da utopia de Dinis -,
mas de ruptura e de dilaceração. Seres que aspiram a uma reintegração, ainda
quando o desconheçam.
A própria
chamada ingenuidade dos textos dinisianos, que os aproxima das concepções
rousseaunianas, segundo a qual, expulso do paraíso, mas essencialmente divino,
é através da educação – que é fundamentalmente uma auto-educação, embora guiada
por um mentor – que o homem deve reconquistá-lo, não numa sobrenatural vida
futura, mas numa vida natural e presente, é também aparentada com as raízes
mais profundas do Bildungsroman, já que o termo Bildung é de origem medieval, tendo sido usado por Mestre
Eckart e pelos místicos posteriores como modelo da imagem divina, cujo centro é
ocupado pelo homem.
Quando o
seu sentido se altera para “transformatio”, refere-se à reconquista do Paraíso
perdido, “significando também a remodelação do pecado original do homem culpado
[...], novo portador da imagem divina”.
Ora, os
heróis dinisianos, sujeitos da transformação que constitui o núcleo de cada romance,
são sempre, em alguma medida, “culpados” em busca de um Paraíso ideal que suas próprias
convicções, sentimentos ou ações os impedem de alcançar. A remoção desses obstáculos,
através de um processo de auto-conhecimento – de reconhecimento – sempre
guiada, de forma mais ou menos explícita, por uma mulher, como veremos, é que
possibilitará os finais felizes, reconquistas de um Paraíso natural e humano,
em que muitos não viram mais do que happy-ends de romances-rosa.
Além
disso, é interessante notar que, desde sua origem em Mestre Eckhart, o conceito
de Bildung, que se poderia traduzir, como vimos, por imagem, forma,
aludindo à forma divina presente no homem, refere-se antes a uma descoberta,
desenvolvimento e aperfeiçoamento de algo que já está presente no protagonista,
mas em estado latente, do que a uma ação vinda puramente do exterior. A função
do mestre – ou da mestra, no caso de Dinis – é antes fazer com que o discípulo
se descubra, cresça e aperfeiçoe do que fornecer-lhe algo que lhe era estranho.
Os
principais protagonistas dinisianos são Daniel, em As Pupilas do Senhor Reitor,
Carlos, em Uma Família Inglesa, Henrique em A Morgadinha dos
Canaviais e Jorge em Os Fidalgos da Casa Mourisca. A verdadeira
obsessão por paralelismos que se evidencia em As Pupilas do Senhor Reitor,
mas que aparece também em outros textos de Dinis,vai fornecer ao primeiro e ao
último duplos não antitéticos, mas complementares, Pedro e Maurício, que participam em larga medida, sobretudo
Maurício, da transformação do protagonista principal. Não seria impossível,
ainda, enxergar em Mr. Whitestone e em Augusto figuras especulares de Carlos e
de Jorge, que sofrem com eles, embora em grau menor, o movimentos de auto-conhecimento
transformador. Em todos eles, qualidades latentes, mas sufocadas ou atenuadas,
garantem a possibilidade de evolução.
Analisemos,
em primeiro lugar, o tipo de transformação sofrido por essas personagens,
investigando em que medida elas podem ser vistas como metáforas dos conflitos e
soluções presentes na sociedade portuguesa de então. Procuraremos mostrar em
seguida de que modo essa transformação é guiada, sempre, por uma figura
feminina.
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Fonte:
Maria Ivone Pereira de Miranda Fedeli: “A mão que balança o berço: Funções do feminino em Júlio Dinis”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Profa. Dra. Lênia Márcia de Medeiros Mongelli). São Paulo, 2007.
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