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Eurico, O Presbítero – A História e “o fogo das
paixões”:
Os três romances históricos de Herculano foram concebidos e publicados, inicialmente, no Panorama e na Revista Universal Lisbonense, durante a década de 40, mas o primeiro a sair em volume foi o Eurico,O Presbítero, em 1844. Em seguida temos o Monge de Cister, em 1848, que juntamente com o Eurico formam o Monasticon, e postumamente, O Bobo, em 1878.
Os três romances históricos de Herculano foram concebidos e publicados, inicialmente, no Panorama e na Revista Universal Lisbonense, durante a década de 40, mas o primeiro a sair em volume foi o Eurico,O Presbítero, em 1844. Em seguida temos o Monge de Cister, em 1848, que juntamente com o Eurico formam o Monasticon, e postumamente, O Bobo, em 1878.
Assim como
as histórias coletadas no livro Lendas e Narrativas, de 1851, Herculano desenvolveu um amplo panorama de
reflexões estéticas e históricas com seus inúmeros personagens. Os principais temas
românticos do “gênio”, do sacrifício e da permanente presença do Absoluto no devir
histórico foram reconfigurados por Herculano na
sua proposta histórica romântica dentro de suas narrativas históricas. “As principais personagens dos romances de
Herculano são como que encarnações, dotadas de forças sobre-humanas, anjos ou demônios,
consagrados a uma obra de maldição ou de santificação”.
As obras de “maldição” ou de “santificação” promovidas pelos personagens
de Herculano são frutos de intempestivas paixões, como vingança e amor. Desse modo,
assumindo uma postura apaixonada diante do mundo, estes personagens deixam de ser
simples homens e passam a ser instrumentos do devir
histórico.
Tanto o bobo D.Bibas, personagem central do romance O Bobo,
quanto Vasco, o monge de Cister, são acalentados por intensos desejos de vingança,
e movidos por esse ideal apaixonado, acabam contribuindo para o desencadeamento
de acontecimentos fora do foro íntimo e particular,
repercutindo em conseqüências para o coletivo. O personagem D.Bibas
movido pelo desejo de vingança perante o Conde de Trava, Fernando Peres, amante
de D.Teresa, infanta dos portugueses, ajuda Egas Moniz a fugir da prisão e abre
as portas do Castelo de Guimarães para a conquista de D.Afonso Henriques, que se coroa como Rei de Portugal.
“A sorte
das armas e a vingança de Dom Bibas tinham resolvido os futuros destinos de Portugal. Não foi esta a primeira
vez, nem será a última, em que uma batalha ou um caturra influam na existência ou
não existência, no modo de ser ou não ser destes corpos morais chamados nações,
que apesar da sua individualidade, em rigor ideal e abstrata, não deixam de parecer corpos físicos,
pela falta de vontade e inteligência”.
Outro exemplo da ação das paixões como instrumento da História pode
ser simbolizado nas atitudes guerreiras de Egas Moniz e Garcia Bermudes, homens
que combateram no campo de S.Mamede, um ao lado de D. Afonso Henriques e o outro
do Conde de Trava, guiados por um intenso amor por Dulce, nobre da corte de D.Teresa,
e por um inominável ódio que ambos sentiam em relação
ao rival amoroso. “Nesta mesma
ocasião dois guerreiros também rivais, mas rivais por um afeto mais violento ainda
que a ambição (no caso, Herculano
se reporta a Afonso Henriques e o Conde de Trava), haviam visto enfim satisfeito
o seu ódio, encontrando-se. Ao pé deles nesse momento só combatiam peões. Egas,
com a tenacidade de um demônio, com a prudência tranqüila de um rancor implacável,
se esquivara a todos os grandes riscos da batalha, espiando o instante em que Garcia
Bermudes, arrastado pela ebriedade do combate, se afastasse dos cavaleiros aragoneses
que o seguiam. Êste instante chegou: o alferes-mor correra ao meio de uma ala de
besteiros que recuava diante dos fundibulários da beetria de Gontingem. (...). Entre
os dois proferiram-se algumas palavras. Eram baixas e rápidas: ninguém as ouviu;
mas deviam ser atrozes. Quase a um tempo o montante de Garcia faiscou batendo no
elmo do seu adversário, e a acha de armas de Egas esmigalhou o escudo do aragonês;
depois por longo tempo não soou ali senão o restrugir do ferro no ferro, o ranger
de dentes, e um rir sumido mas infernal. (...). Naquelas almas repassadas de furor,
dos dois pensamentos de vida e de morte, não cabia senão um, e era ao segundo que
ambos exclusivamente se abandonavam”.
O que tornava Egas Moniz e Garcia Bermudes guerreiros formidáveis não
eram a “ambição” e a “glória” buscadas por D. Afonso Henriques e pelo Conde da Trava.
Segundo o julgamento de Herculano, os dois combatentes tornaram-se letais devido
ao amor e o desejo de vingança. Sentimentos irrefreáveis e justificadores de um
alto grau de sacrifício por parte do indivíduo, que com isso, na expressão de António
José Saraiva, ganham “força sobre-humana” e conduzem
os rumos dos acontecimentos, se inseridos em momentos históricos oportunos.
Do mesmo modo, no romance histórico O Monge de Cister, transcorrido
no século XIV, Herculano, através do monge e ex-guerreiro Vasco, traça os efeitos
incontroláveis da fúria das paixões, amor e vingança, nas ações humanas. E é por
meio da busca por vingança perante a ofensa causada por Fernando Afonso diante de
seu pai, D.Vasqueanes, e de sua irmã, D.Beatriz, e da infidelidade de sua amada
D.Leonor, que Vasco, indiretamente, decifra toda a injustiça e maldade causadas
pela decadente nobreza cortesã de D.João I de Avis,
inaugurador da monarquia centralizadora.
O pai de Vasco, D. Vasqueanes, representa a antiga nobreza medieval,
guerreira, religiosa e afeita a um valoroso código de honra, que não encontra lugar
num Portugal de monarquia centralizadora e contemporâneo de uma nobreza cortesã,
dotada de códigos de conduta artificiais e afastada do convívio com a terra. E é
em nome desse conjunto de ideais perdidos que Vasco se vinga, cumprindo a risca
o desejo final que seu pai o deixou.
“Meu Vasco, meu Vasco! Onde estás, cavaleiro, filho e neto de cavaleiros,
onde estás tu?! Olha o
que o meu montante enferrujado já não pode sair da bainha; olha que as pernas trôpegas
de um velho já não podem apertar as ilhargas de um ginete! Vem! Olha que cuspiram no brasão de teus avós. Lava esta nódoa com
sangue!”.
A conduta de Vasco, sombria e ambígua em relação a seus sentimentos,
é típica de um personagem romântico, onde mesmo atormentado por remorsos, como o
causado pelo assassinato de Lopo Mendes, tem a alma apontada, incondicionalmente,
para sua missão, a vingança da honra, alimentada pelas artimanhas e conselhos de
D.João de Ornelas, abade de Alcobaça.
Talvez o
único momento, em todo o romance, de manifestação da originária pureza do espírito de Vasco, perdida pela ação da
maldade e decadência da época, como Herculano deixou frisado no seu discurso, seja
a cena de perdão e compaixão a sua irmã Beatriz, enferma pela tristeza do amor rejeitado.
Sendo esse breve momento esquecido pela obrigação
da vingança.
Na visão de Herculano, Vasco representa a dor que não pode ser curada,
porque além de representar a honra ferida de seus familiares, sua enfermidade é
fruto dos valores morais e sociais da cidade de Lisboa do século XIV, que apesar
do bom funcionamento dos concelhos municipais,
já começam a fraquejar.
Sobre Lisboa
diz Herculano: “Era então como a filha donzela e inocentinha do honrado e guerreiro Portugal, bom soldado da
Idade Média, a quem riquezas de conquistas e embriaguez de glórias fizeram dissoluto,
e a dissolução fez antes da velhice caduco.(...). Cidade, donzela e pura do século
XIV, porque rasgaste o teu véu de inocência? Porque quebraste o cinto que te dera o rei que tanto te
amou? Por que te aproximaste à foz do Tejo, convocaste os estrangeiros e converteste
a tua morada em lupanar?Foi porque teu pai perdeu
na idade grave as virtudes da idade viril”.
Vasco cumpre a sua missão vingativa, faz com que o Rei D.João I condene
D. Fernando Afonso, mas, o monge de Cister morre exausto e infeliz, na figura de
um romeiro, diante dos olhos de Fr. Lourenço.
Alguns personagens de Herculano brevemente analisados até o momento,
como Egas Moniz e Garcia Bermudes, são os representantes de uma heróica época medieval,
onde os cavaleiros herdaram a disposição de espírito da era gloriosa dos Visigodos,
após a conversão ao cristianismo e antes da invasão da península ibérica pelos árabes.
Já Vasco representa a decadência dos ideais da cavalaria e acaba vítima dos costumes
da nobreza cortesã.
Em contrapartida, Eurico, herdeiro direto da época heróica dos Visigodos
na Península, mesmo vivendo numa época decadente, não é molestado pelos vícios do
seu tempo, é apresentado por Herculano como um
ser de exceção, um verdadeiro semideus vivendo entre os homens.
“O período visigótico deve ser para nós como os tempos homéricos da
Península”
Eurico, a narrativa
do presbítero godo, surge como uma tentativa de estruturar a forma do romance em
Portugal, baseada numa perspectiva da literatura européia do período (narrativas
de acontecimentos históricos, romances epistolares e de reflexão interior e a experiência
da estética do fragmento do romantismo alemão). Por esses motivos, o romance em
questão, que possui uma forma e um acabamento indefinido, pode ser encarado como
a concretização dos ideais de Herculano, presentes no Repositório Literário,
de renovação da cultura portuguesa a partir de uma literatura de fundo histórico
e que faz uma crítica velada à moralidade pública e aos costumes modernos, num diálogo entre passado e presente.
Mesmo criticando o celibato, um dogma ligado a uma “irremediável solidão
da alma”, como deixa claro Herculano no Prólogo, o romance é todo centrado na idéia
de Cristianismo, entendido como mensagem de liberdade, fraternidade e sacrifício,
e como condutor do devir histórico, travando um profícuo diálogo como as concepções
de filosofia da história do período. Aliás, segundo o crítico Fidelino de Figueiredo,
a obra em questão traz uma forte visão idealista não alcançada por nenhuma outra
narrativa de Herculano.
Eurico é a forma suprema do poder artístico de Herculano. (...) porque
ella traduz o período agudo da epocha idealista
da vida de Herculano”
O plano histórico da narrativa se passa no século VIII no contexto
das guerras de invasão dos árabes na Península Ibérica, ou seja, antes da formação
da nação portuguesa. Os visigodos, oriundos das tribos germânicas, e conquistadores
do território ibérico pertencente aos romanos, são os representantes do cristianismo
e da civilização ocidental, porém, apresentados ao leitor como um povo decaído moralmente
e corrupto, antecipando as razões porque alguns visigodos irão se aliar aos inimigos
islâmicos em troca de riquezas. Situação que tem
o intuito de traçar um paralelo com a questão da decadência moral e política de Portugal causada pelas
guerras liberais e pela ideologia burguesa/capitalista.
No entanto, ao largo dessa atmosfera de decadência e artificialidade
das relações sociais, o “espírito do povo” godo continua preservado em alguns homens,
representantes de uma índole pura e de um sentimento de permuta entre a natureza
(terra) e a comunidade (leis).
“No meio, porém, da decadência dos godos, algumas almas conservavam
ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da civilização romana elas
não haviam aceitado senão a cultura intelectual e as sublimes teorias morais do
cristianismo. As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinha nascido para
os godos logo que, assentando o seu domínio nas Espanhas, possuíram de pais a filhos
o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso
e da saudade. Nestes corações, onde reinavam afetos ao mesmo tempo ardentes e profundos,
porque neles a índole meridional se misturava com o caráter tenaz dos povos do norte,
a moral evangélica revestia esses afetos de uma
poesia divina, e a civilização ornava- os
de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia”.
O trecho
citado acima vai de encontro com a visão de mundo romântica propagada sob o viés das temáticas do “Sturm und Drang”
e do Romantismo alemão, como a idéia de “espírito de povo” como constituinte da
gênese e da identidade da nacionalidade e de poesia como símbolo de comunhão do
particular (“terra”/ “lar doméstico”/ “templo da oração”) e do universal (“virtudes civis”/ “amor da pátria”).
Um movimento histórico pode ser identificado na passagem da civilização
romana para a civilização germânica visigótica, que tem sua gênese identificada
com uma tradição pagã e “bárbara”, mas mesmo assim, dotada de um “espírito” pulsante
e nobre, e que absorve a parcela mais importante e significativa da civilização
romana: a cultura e o cristianismo.
“Os visigodos, posto que os mais civilizados entre os povos germano-góticos,
conservaram por algum tempo nas suas instituições
a linha divisória entre si e os romanos. Por fim essa linha obliterou-se. Facilitados
os consórcios entre as duas raças, sujeitos todos os membros da sociedade às leis
de um código único, e anuladas as distinções do direito gótico e romano, os habitantes
da Península debaixo do nome de godos constiuíam, ao menos nas exterioridades, uma só nação quando
a conquista árabe veio
confundir ainda mais, se era possível, aquela mistura inextricável de homens de muitas e diversas origens.”
Assim como a civilização romana
entrou em decadência e precisou ser superada, mas com a preservação de algumas características
essenciais para a etapa histórica seguinte, a civilização germânica visigótica cristã,
também entra num estado de decadência e prepara
a sua iminente derrocada.
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Fonte:
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Fonte:
Leonardo de Atayde Pereira: “O sentido
de História para Alexandre Herculano : uma interpretação romântica (1830-1853)”.(Dissertação
de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Departamento de História. Área de História Social. Orientador: Prof.
Dr. Lincoln Ferreira Secco). São Paulo, 2009
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