18/01/2014

Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano

 Alexandre Herculano - Eurico o Presbítero - Iba Mendes
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Eurico, O Presbítero – A História e “o fogo das paixões”:           

Os três romances históricos de Herculano foram concebidos e publicados, inicialmente, no Panorama e na Revista Universal Lisbonense, durante a década de 40, mas o primeiro a sair em volume foi o Eurico,O Presbítero, em 1844. Em seguida temos o Monge de Cister, em 1848, que juntamente com o Eurico formam o Monasticon, e postumamente, O Bobo, em 1878.

Assim como as histórias coletadas no livro Lendas e Narrativas, de 1851, Herculano desenvolveu um amplo panorama de reflexões estéticas e históricas com seus inúmeros personagens. Os principais temas românticos do “gênio”, do sacrifício e da permanente presença do Absoluto no devir histórico foram reconfigurados por Herculano na sua proposta histórica romântica dentro de suas narrativas históricas. “As principais personagens dos romances de Herculano são como que encarnações, dotadas de forças sobre-humanas, anjos ou demônios, consagrados a uma obra de maldição ou de santificação”.

As obras de “maldição” ou de “santificação” promovidas pelos personagens de Herculano são frutos de intempestivas paixões, como vingança e amor. Desse modo, assumindo uma postura apaixonada diante do mundo, estes personagens deixam de ser simples homens e passam a ser instrumentos do devir histórico.

Tanto o bobo D.Bibas, personagem central do romance O Bobo, quanto Vasco, o monge de Cister, são acalentados por intensos desejos de vingança, e movidos por esse ideal apaixonado, acabam contribuindo para o desencadeamento de acontecimentos fora do foro íntimo e particular, repercutindo em conseqüências para o coletivo.  O personagem D.Bibas movido pelo desejo de vingança perante o Conde de Trava, Fernando Peres, amante de D.Teresa, infanta dos portugueses, ajuda Egas Moniz a fugir da prisão e abre as portas do Castelo de Guimarães para a conquista de D.Afonso Henriques, que se coroa como Rei de Portugal.

“A sorte das armas e a vingança de Dom Bibas tinham resolvido os futuros destinos de Portugal. Não foi esta a primeira vez, nem será a última, em que uma batalha ou um caturra influam na existência ou não existência, no modo de ser ou não ser destes corpos morais chamados nações, que apesar da sua individualidade, em rigor ideal e abstrata, não deixam de parecer corpos físicos, pela falta de vontade e inteligência”.

Outro exemplo da ação das paixões como instrumento da História pode ser simbolizado nas atitudes guerreiras de Egas Moniz e Garcia Bermudes, homens que combateram no campo de S.Mamede, um ao lado de D. Afonso Henriques e o outro do Conde de Trava, guiados por um intenso amor por Dulce, nobre da corte de D.Teresa, e por um inominável ódio que ambos sentiam em relação ao rival amoroso. “Nesta mesma ocasião dois guerreiros também rivais, mas rivais por um afeto mais violento ainda que a ambição (no caso, Herculano se reporta a Afonso Henriques e o Conde de Trava), haviam visto enfim satisfeito o seu ódio, encontrando-se. Ao pé deles nesse momento só combatiam peões. Egas, com a tenacidade de um demônio, com a prudência tranqüila de um rancor implacável, se esquivara a todos os grandes riscos da batalha, espiando o instante em que Garcia Bermudes, arrastado pela ebriedade do combate, se afastasse dos cavaleiros aragoneses que o seguiam. Êste instante chegou: o alferes-mor correra ao meio de uma ala de besteiros que recuava diante dos fundibulários da beetria de Gontingem. (...). Entre os dois proferiram-se algumas palavras. Eram baixas e rápidas: ninguém as ouviu; mas deviam ser atrozes. Quase a um tempo o montante de Garcia faiscou batendo no elmo do seu adversário, e a acha de armas de Egas esmigalhou o escudo do aragonês; depois por longo tempo não soou ali senão o restrugir do ferro no ferro, o ranger de dentes, e um rir sumido mas infernal. (...). Naquelas almas repassadas de furor, dos dois pensamentos de vida e de morte, não cabia senão um, e era ao segundo que ambos exclusivamente se abandonavam”.

O que tornava Egas Moniz e Garcia Bermudes guerreiros formidáveis não eram a “ambição” e a “glória” buscadas por D. Afonso Henriques e pelo Conde da Trava. Segundo o julgamento de Herculano, os dois combatentes tornaram-se letais devido ao amor e o desejo de vingança. Sentimentos irrefreáveis e justificadores de um alto grau de sacrifício por parte do indivíduo, que com isso, na expressão de António José Saraiva, ganham “força sobre-humana” e conduzem os rumos dos acontecimentos, se inseridos em momentos históricos oportunos.

Do mesmo modo, no romance histórico O Monge de Cister, transcorrido no século XIV, Herculano, através do monge e ex-guerreiro Vasco, traça os efeitos incontroláveis da fúria das paixões, amor e vingança, nas ações humanas. E é por meio da busca por vingança perante a ofensa causada por Fernando Afonso diante de seu pai, D.Vasqueanes, e de sua irmã, D.Beatriz, e da infidelidade de sua amada D.Leonor, que Vasco, indiretamente, decifra toda a injustiça e maldade causadas pela decadente nobreza cortesã de D.João I de Avis, inaugurador da monarquia centralizadora.  

O pai de Vasco, D. Vasqueanes, representa a antiga nobreza medieval, guerreira, religiosa e afeita a um valoroso código de honra, que não encontra lugar num Portugal de monarquia centralizadora e contemporâneo de uma nobreza cortesã, dotada de códigos de conduta artificiais e afastada do convívio com a terra. E é em nome desse conjunto de ideais perdidos que Vasco se vinga, cumprindo a risca o desejo final que seu pai o deixou.

“Meu Vasco, meu Vasco! Onde estás, cavaleiro, filho e neto de cavaleiros, onde estás tu?! Olha o que o meu montante enferrujado já não pode sair da bainha; olha que as pernas trôpegas de um velho já não podem apertar as ilhargas de um ginete! Vem! Olha que cuspiram no brasão de teus avós. Lava esta nódoa com sangue!”.

A conduta de Vasco, sombria e ambígua em relação a seus sentimentos, é típica de um personagem romântico, onde mesmo atormentado por remorsos, como o causado pelo assassinato de Lopo Mendes, tem a alma apontada, incondicionalmente, para sua missão, a vingança da honra, alimentada pelas artimanhas e conselhos de D.João de Ornelas, abade de Alcobaça.

Talvez o único momento, em todo o romance, de manifestação da originária pureza do espírito de Vasco, perdida pela ação da maldade e decadência da época, como Herculano deixou frisado no seu discurso, seja a cena de perdão e compaixão a sua irmã Beatriz, enferma pela tristeza do amor rejeitado. Sendo esse breve momento esquecido pela obrigação da vingança.

Na visão de Herculano, Vasco representa a dor que não pode ser curada, porque além de representar a honra ferida de seus familiares, sua enfermidade é fruto dos valores morais e sociais da cidade de Lisboa do século XIV, que apesar do bom funcionamento dos concelhos municipais, já começam a fraquejar.

Sobre Lisboa diz Herculano: “Era então como a filha donzela e inocentinha do honrado e guerreiro Portugal, bom soldado da Idade Média, a quem riquezas de conquistas e embriaguez de glórias fizeram dissoluto, e a dissolução fez antes da velhice caduco.(...). Cidade, donzela e pura do século XIV, porque rasgaste o teu véu de inocência? Porque quebraste o cinto que te dera o rei que tanto te amou? Por que te aproximaste à foz do Tejo, convocaste os estrangeiros e converteste a tua morada em lupanar?Foi porque teu pai perdeu na idade grave as virtudes da idade viril”.

Vasco cumpre a sua missão vingativa, faz com que o Rei D.João I condene D. Fernando Afonso, mas, o monge de Cister morre exausto e infeliz, na figura de um romeiro, diante dos olhos de Fr. Lourenço.

Alguns personagens de Herculano brevemente analisados até o momento, como Egas Moniz e Garcia Bermudes, são os representantes de uma heróica época medieval, onde os cavaleiros herdaram a disposição de espírito da era gloriosa dos Visigodos, após a conversão ao cristianismo e antes da invasão da península ibérica pelos árabes. Já Vasco representa a decadência dos ideais da cavalaria e acaba vítima dos costumes da nobreza cortesã.

Em contrapartida, Eurico, herdeiro direto da época heróica dos Visigodos na Península, mesmo vivendo numa época decadente, não é molestado pelos vícios do seu tempo, é apresentado por Herculano como um ser de exceção, um verdadeiro semideus vivendo entre os homens.

“O período visigótico deve ser para nós como os tempos homéricos da Península”

Eurico, a narrativa do presbítero godo, surge como uma tentativa de estruturar a forma do romance em Portugal, baseada numa perspectiva da literatura européia do período (narrativas de acontecimentos históricos, romances epistolares e de reflexão interior e a experiência da estética do fragmento do romantismo alemão). Por esses motivos, o romance em questão, que possui uma forma e um acabamento indefinido, pode ser encarado como a concretização dos ideais de Herculano, presentes no Repositório Literário, de renovação da cultura portuguesa a partir de uma literatura de fundo histórico e que faz uma crítica velada à moralidade pública e aos costumes modernos, num diálogo entre passado e presente.

Mesmo criticando o celibato, um dogma ligado a uma “irremediável solidão da alma”, como deixa claro Herculano no Prólogo, o romance é todo centrado na idéia de Cristianismo, entendido como mensagem de liberdade, fraternidade e sacrifício, e como condutor do devir histórico, travando um profícuo diálogo como as concepções de filosofia da história do período. Aliás, segundo o crítico Fidelino de Figueiredo, a obra em questão traz uma forte visão idealista não alcançada por nenhuma outra narrativa de Herculano.

Eurico é a forma suprema do poder artístico de Herculano. (...) porque ella traduz o período agudo da epocha idealista da vida de Herculano”

O plano histórico da narrativa se passa no século VIII no contexto das guerras de invasão dos árabes na Península Ibérica, ou seja, antes da formação da nação portuguesa. Os visigodos, oriundos das tribos germânicas, e conquistadores do território ibérico pertencente aos romanos, são os representantes do cristianismo e da civilização ocidental, porém, apresentados ao leitor como um povo decaído moralmente e corrupto, antecipando as razões porque alguns visigodos irão se aliar aos inimigos islâmicos em troca de riquezas. Situação que tem o intuito de traçar um paralelo com a questão da decadência moral e política de Portugal causada pelas guerras liberais e pela ideologia burguesa/capitalista.

No entanto, ao largo dessa atmosfera de decadência e artificialidade das relações sociais, o “espírito do povo” godo continua preservado em alguns homens, representantes de uma índole pura e de um sentimento de permuta entre a natureza (terra) e a comunidade (leis).

“No meio, porém, da decadência dos godos, algumas almas conservavam ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da civilização romana elas não haviam aceitado senão a cultura intelectual e as sublimes teorias morais do cristianismo. As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinha nascido para os godos logo que, assentando o seu domínio nas Espanhas, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade. Nestes corações, onde reinavam afetos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o caráter tenaz dos povos do norte, a moral evangélica revestia esses afetos de uma poesia divina, e a civilização ornava- os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia”.

O trecho citado acima vai de encontro com a visão de mundo romântica propagada sob o viés das temáticas do “Sturm und Drang” e do Romantismo alemão, como a idéia de “espírito de povo” como constituinte da gênese e da identidade da nacionalidade e de poesia como símbolo de comunhão do particular (“terra”/ “lar doméstico”/ “templo da oração”) e do universal (“virtudes civis”/ “amor da pátria”).

Um movimento histórico pode ser identificado na passagem da civilização romana para a civilização germânica visigótica, que tem sua gênese identificada com uma tradição pagã e “bárbara”, mas mesmo assim, dotada de um “espírito” pulsante e nobre, e que absorve a parcela mais importante e significativa da civilização romana: a cultura e o cristianismo.

“Os visigodos, posto que os mais civilizados entre os povos germano-góticos, conservaram por algum tempo nas  suas instituições a linha divisória entre si e os romanos. Por fim essa linha obliterou-se. Facilitados os consórcios entre as duas raças, sujeitos todos os membros da sociedade às leis de um código único, e anuladas as distinções do direito gótico e romano, os habitantes da Península debaixo do nome de godos constiuíam, ao menos nas exterioridades, uma só nação quando a conquista árabe veio confundir ainda mais, se era possível, aquela mistura inextricável de homens de muitas e diversas origens.”

 Assim como a civilização romana entrou em decadência e precisou ser superada, mas com a preservação de algumas características essenciais para a etapa histórica seguinte, a civilização germânica visigótica cristã, também entra num estado de decadência e prepara a sua iminente derrocada.

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Fonte:
Leonardo de Atayde Pereira: “O sentido de História para Alexandre Herculano : uma interpretação romântica (1830-1853)”.(Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História. Área de História Social. Orientador: Prof. Dr. Lincoln Ferreira Secco). São Paulo, 2009

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