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O Narrador e o Leitor:
Protagonistas de Amor de Perdição
Primordialmente, em Amor de Perdição,o
leitor é convocado para exercer a função de mediador entre o texto e o público.
Graças a ele o narrador expande muito de suas opiniões, define conceitos e canaliza
a sua influência, pretendida implícita ou explicitamente, sobre a recepção (cf.
CASTRO, 1967, p. 199). Ao interpelar esse leitor, o narrador/autor reúne em torno
de si condições de se antecipar às observações, comentários e críticas que a obra,
uma vez publicada, estaria sujeita. Assim, por uma manobra de antecipação, os efeitos
dessas críticas tornam-se passíveis de serem suplantados e/ou atenuados, legitimando
perante a audiência o processo de escrita, bem como o texto dele decorrente. Além
disso, as expectativas de leitura do público são colocadas em questão, como também
os códigos literários que as orientam.
Um breve exame
da obra supracitada é suficiente para atestar a constante interação dialógica entre
narrador e leitor. Já na introdução, este é convidado a tomar partido na história que será narrada, como se pode perceber no trecho
que segue:
Folheando os livros [...] das
cadeias da Relação do Porto, li [...] o seguinte: / “Simão Antônio Botelho, que assim disse chamar-se,
ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa,
e assistente na ocasião da sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos
[...]. / Foi para a Índia em 17 de Março de 1807” . / Não seria fiar demasiadamente
na sensibilidade do leitor, se
cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe
há de fazer dó. Dezoito anos! [...] As louçarias do coração que ainda não sonha em frutos, e de todo se embalsama no
perfume das flores! [...] O amor daquela idade! A passagem do seio da família [...]
para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma
sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! [...] E degradado da pátria,
do amor e da família! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem amigo!...
É triste! / O leitor decerto se
compungia; e leitora, se lhe dissessem em menos de uma linha a história daqueles dezoito anos, choraria!
/ Amou, perdeu-se, e morreu amando. / [...] E a
história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura bem formada das
branduras da piedade, a que por vezes traz do céu um reflexo da divina misericórdia?!
Essa, a minha querida leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem
que o pobre moço perdera [...] tudo, por amor da
primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?! / Chorava, Chorava! (AP, p. 18).
A análise do
excerto, bastante elucidativa, permite divisar o modo como o narrador estabelece
a relação com o leitor, regulando de modo tático as informações preliminares e deixando
vislumbrar o plano de escrita que pretende desenrolar, bem como o seu processo de elaboração. A princípio, essa atitude
pode ser entendida como um movimento que visa a facilitar o acesso ao texto, tornar
a leitura uma tarefa fácil, confortável e harmoniosa. O fragmento, nesse sentido,
revela um texto estrategicamente planejado a partir de um conhecimento prévio das
preferências e gostos do público para o qual se encaminha.
Munido de um
discurso lírico-passional, o narrador busca atingir a sensibilidade do leitor, a
fim de suscitar, num primeiro momento, compaixão em relação à trajetória do herói
e, num segundo momento, o interesse pela leitura, assegurando a recepção aos fatos
que vai narrar. Consoante Annabela Rita (2003,
p. 38):
Através desse comentário, o
narrador tenta fazer-nos empatizar com Simão Antônio Botelho. Para nos comover usa
dois argumentos bastante eficazes: a juventude e o amor de Simão. Eficácia aumentada pelo excesso persuasivo
que resulta da combinatória da pontuação emocional com a repetição desses mesmos
argumentos e com registros da emoção do próprio narrador. Tudo isso condiciona fortemente
o leitor. Mas, como se isso não bastasse, o narrador
ainda lhe prescreve um modo de leitura: a comoção. E fá-lo apresentando-a como conseqüência
natural da sensibilidade, da boa formação e da humanidade [...].E, assim, no limiar de Amor de Perdição, o sujeito da escrita
não apenas prescreve uma atitude de leitura como
comove [...] o leitor através da afetividade.”
A história de Simão Botelho,
resumida na emblemática frase “amou, perdeu-se e morreu amando”, não foi escolhida aleatoriamente, antes parece
ser resultado de um pacto de escrita e leitura selado entre narrador e leitor. Pacto
esse, que se pautou pelo atendimento a determinadas demandas estéticas, particularmente
àquelas difundidas no seio da audiência burguês-romântica
do século XIX (tenha-se em mente, por exemplo, o sentimentalismo).
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Fonte:
Moizeis Sobreira de Sousa: “A ficção camiliana: a escrita
em cena”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa
do Departamento de Letras Clássicas
e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título
de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira).
São Paulo, 2009.
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