Para baixar este livro gratuitamente em
formato PDF, acessar o site do “Projeto
Livro Livre”: http://www.projetolivrolivre.com/
(Download)
↓
(Download)
↓
Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).
---
DEMÔNIOS: O FANTÁSTICO EM ALUÍSIO AZEVEDO
Por: Patrícia Alves Carvalho (UERJ)
Inchou-me por dentro o coração,
sufocando-me a garganta; gelou-se-me a medula e secou-me a língua. Senti-me
como entalado ainda vivo no fundo de um túmulo estreito; senti desabar sobre
minha pobre alma, com todo o seu peso de maldição, aquela imensa noite negra e
devoradora (Azevedo, 2005: 969).
Embora
o lugar reservado a Aluísio Azevedo nos quadros da literatura brasileira o
reduza a autor exclusivamente naturalista, ele escreveu em várias direções,
apresentando diferentes estéticas na sua produção literária. Além das obras que
permanecem como marcos do Naturalismo literário – O mulato (1881), Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890) e configuram a vertente
canônica de sua obra, Aluísio escreveu um romance romântico, Uma lágrima de mulher(1880),
vários romances-folhetins, comédias, peças de teatro, operetas, crônicas, uma
novela policial e um conto fantástico. Como se pode constatar, através de sua
eclética produção, a condição de Aluísio é, sem dúvida, de escritor múltiplo,
de habilidades e estilos plurais. Cabe-nos aqui destacar e discutir uma destas
vertentes estéticas da sua obra relegada pela crítica e desconhecida do leitor
comum: a narrativa fantástica.
O
conto fantástico “Demônios” (1891) integra uma coletânea que recebeu, nas suas
primeiras edições, o título de Pegadas.
A partir da edição de 1937,
a editora Briguiet atribuiu a esta mesma coletânea o
título de seu primeiro conto: “Demônios”. Cabe-nos aqui uma abordagem centrada
exclusivamente no conto“Demônios”, que se constitui como uma narrativa
fantástica, modalidade de ficção tão pouco explorada entre nós. É curioso, e
mais uma vez surpreendente, constatar que um escritor visto como essencialmente
realista/natura-lista tenha escrito literatura fantástica, gênero que se
elabora a partir da modernidade.
Uma
narrativa, conforme Tzvetan Todorov (2004), para ser considerada fantástica,
precisa atender a três condições essenciais. A primeira, e mais importante, é
provocar a hesitação do leitor face ao acontecimento, que não pode ser
explicado pelas leis que racionalmente conhecemos. Tanto a fé absoluta quanto a
incredulidade total levam o leitor para além dos domínios do fantástico. É, portanto,
a hesitação mencionada que dá vida às narrativas do gênero. Pode-se, então,
resumir esta exigência fundamental na sentença: “Cheguei quase a acreditar”
(Todorov, 2004: 36). A opção por uma resposta que explique o sobrenatural em
termos de racionalidade rompe com o fantástico e nos faz, dependendo do caráter
dessa explicação, adentrar, ainda segundo a nossa fonte, o campo de outros
gêneros, o estranho ou o maravilhoso. Quando a hesitação do leitor perdura até
o final da narrativa, temos o que Todorov denomina fantástico puro, mas, se os
acontecimentos podem ser explicados pela razão, encontramos o estranho; e se os
elementos sobrenaturais não provocam reação, estamos diante do maravilhoso.
Todorov
estabelece ainda subgêneros: estranho puro, fantástico-estranho,
fantástico-maravilhoso e o maravilhoso puro. O fantástico puro, que mantém a
hesitação até o fim, seria um gênero “entre”, ambíguo por si mesmo (Todorov,
2004: 50). Não há por parte do crítico, no entanto, a intenção de estabelecer
regras rígidas, uma vez que as fronteiras entre os gêneros são tênues, mas
apenas o intuito de propor categorias, numa tentativa de compreender melhor o
fantástico como um todo.
Todorov
centra a condição essencial do fantástico na recepção do leitor, indo ao
encontro de algumas reflexões da estética da recepção de Robert Yauss. “O
fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens;
define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos
narrados” (Todorov, 2004: 37). O leitor, portanto, não é um receptor passivo,
mas um co-autor da obra. O efeito fantástico está subordinado não só à forma de
organização do enredo, como também à maneira de ler do leitor, que pode ou não
promovê-lo. A “interpretação” do texto se configura, conforme vamos observar na
terceira condição, como uma possível ameaça ao fantástico.
A
hesitação do leitor pode ser igualmente experimentada por um dos personagens.
Nesse caso, temos a hesitação representada no texto. O personagem, assim como o
leitor, hesita, questionando se o que o cerca é de fato real ou pura ilusão.
Esta segunda condição para o fantástico o caracteriza, mas não o constitui
essencialmente. O fantástico, então, poderá existir sem satisfazê-la. Na
maioria das obras, todavia, esta condição, apesar de facultativa, é atendida, e
a hesitação ganha um representante no interior da própria trama, com quem o
leitor, particularmente, se identifica. São raras as obras, como Véra, de Villiers de
l’Isle-Adam, nas quais a hesitação do leitor não é compartilhada com um
personagem.
A
terceira condição para o fantástico, assim como a primeira, é parte da
constituição do gênero e está centrada no leitor. Para que o fantástico ocorra,
é preciso que o leitor rejeite a interpretação alegórica e a poética, pois
ambas impossibilitam o fantástico. A interpretação alegórica pressupõe que o
sobrenatural não deve ser entendido “ao pé da letra”. Um conto de fadas, por
exemplo, não é considerado fantástico, uma vez que o leitor não é surpreendido
pelo sobrenatural. Se animais ou objetos inanimados falam, sabe-se previamente
que o sentido é ali alegórico. Os contos de fada fazem parte não do fantástico,
mas constituem-se como uma das variedades do maravilhoso, onde a existência de
fatos sobrenaturais não implica a reação dos personagens e do leitor implícito.
A alegoria remete a uma mensagem no campo da realidade; ela nos afirma uma
verdade, nos impedindo de imaginar. Da mesma forma, o fantástico também não tem
espaço na poesia, que, com uma linguagem diferenciada “suspende” a realidade.
Ao ler um poema, o leitor sabe que se o “ ‘eu poético’ voa pelos ares, isto é
apenas uma seqüência verbal, a ser tomada como tal, sem pretender ir além das
palavras” (Todorov, 2004: 38). Assim, “O fantástico implica portanto não apenas
a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no
herói, mas também uma maneira de ler, que se pode por ora definir
negativamente: não deve ser poética, nem alegórica” (Todorov, 2004: 38).
Ao
afirmar que o leitor deve considerar o mundo dos personagens, hesitando em
acreditar se o que está acontecendo é real ou ilusão, sustentando uma
ambigüidade permanente, o conceito de fantástico, definido com relação aos de
real e de imaginário, esbarra na própria reflexão sobre a literatura. O leitor,
através de sua imaginação, intervém no texto, contribuindo para a ruptura entre
o literário e o real. O papel da literatura fantástica nos parece ser não o de
reproduzir o real, mas, ao contrário, pela própria hesitação que instala, o de
expor as contradições deste, e as da própria literatura.
Embora
tenha sua origem na literatura ocidental ainda no século XVIII, em 1772, com Le diable amoureux, de Cazotte,
o fantástico viveu seu auge no século XIX, encontrando em Maupassant, segundo a
perspectiva teórica de Todorov, seu último exemplo esteticamente satisfatório.
Enquanto o sobrenatural existe desde sempre e continua a ser praticado hoje, o
fantástico teve vida breve. No século XIX, quando as fronteiras entre real e
imaginário, guiadas pelo cientificismo reinante, estavam nitidamente definidas,
o fantástico encontrou terreno fértil. No século XX, as noções de real e ficção
tornaram-se mais complexas, e o fantástico dito clássico, que tem como
prerrogativa fundamental a hesitação, teria, ainda de acordo com Todorov,
perdido a vitalidade. O lugar do sobrenatural, no século XX, teria sido ocupado
por um fantástico “moderno”, que se aproxima do absurdo. Nota-se a naturalização do
sobrenatural, uma vez que acontecimentos absurdos são encarados como normais.
Em Metamorfose, de Kafka,
por exemplo, há uma ausência de surpresa diante do extraordinário. Neste novo
fantástico, a hesitação não seria mais a condição essencial, e o personagem
principal, que antes era um ser normal, torna-se fantástico. Sobre as
narrativas de Blanchot ou Kafka, Sartre afirma: “já não procuram pintar seres
extraordinários; para eles, não existe senão um objeto fantástico: o homem. O
homem ‘normal’ é precisamente o ser fantástico; o fantástico torna-se a regra,
não a exceção” (Sartre apud Todorov, 2004: 181).
O
século XIX vivia, é verdade, numa metafísica do real e do imaginário, e a
literatura fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX
positivista. Mas hoje, não se pode mais acreditar numa realidade imutável,
externa, nem em uma literatura que não fosse senão a transcrição desta
realidade. As palavras ganharam uma autonomia que as coisas perderam. A
literatura que sempre afirmou esta outra visão é sem dúvida um dos móveis da
evolução. A literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas
as suas páginas, as categorizações lingüísticas, recebeu com isso um golpe
fatal; mas desta morte, deste suicídio nasceu uma nova literatura (Todorov,
2004: 176-177).
Ao
contrário do que se observa na literatura hispano-americana, que desenvolveu
uma ficção não-realista, o “realismo mágico”, na literatura brasileira, o
fantástico sofreu uma espécie de obstrução (Gabrielli, 2004: 67). Esta
neutralização dificulta um conhecimento específico sobre a trajetória do
fantástico entre nós. O espaço a ele destinado nas histórias da literatura
brasileira nos mostra o quanto esse gênero foi pouco examinado e freqüentemente
subestimado pela crítica literária e pelo leitor comum. O fato de nosso sistema
literário ter certa propensão para a literatura realista de cunho documental
parece oferecer ao menos uma primeira explicação para a ausência do registro da
literatura fantástica pela crítica hegemônica. A concepção de uma literatura
nacionalista, sobretudo a romântica, marcada pela busca da cor local, direcionou
o gosto de nossa literatura pelo documental: “O serviço à pátria, tal como
entendido, implicava o culto do documental, do verídico, do factual, a pretexto
de que só assim se compreenderia e formularia a diferença da natureza e da
sociedade nossas” (Lima, 1986: 206).
No
Brasil, no entanto, alguns escritores, sobretudo os românticos, já usavam
elementos fantásticos em suas narrativas. Há uma certa afinidade entre os
românticos, certamente por influência de escritores europeus, e a atmosfera de
penumbra, o crepúsculo, o medo, o mistério, comum nas narrativas fantásticas. O
exemplo mais evidente é Noites
na taberna (1855), de Álvares Azevedo, onde
acontecimentos inauditos são narrados, num discurso romântico, por jovens
amigos numa taberna. O sono e o álcool que os evolvem atuam na ambigüidade da
narrativa. Aluísio Azevedo e Machado de Assis também fornecem exemplos do
fantástico no século XIX.
O
conto “Demônios”, de Aluísio Azevedo, apresenta, como em geral todas as
manifestações fantásticas de nossa literatura no século XIX, uma qualidade
duvidosa. Permeado de clichês, muito próximo dos artifícios românticos
folhetinescos, o conto aponta para um ideal romântico. É preciso lembrar que,
ao contrário do que a princípio se poderia imaginar, Aluísio teve uma grande
produção romântica. Além de seu romance de estréia, Uma lágrima de mulher(1880),
ele escreveu açucarados romances-folhetins. Até mesmo a primeira edição de O
mulato (1881), obra inaugural
do Naturalismo no Brasil, é recheada de traços românticos. O discurso romântico
foi para Aluísio uma constante, e assim nada mais natural que a presença desses
elementos em outras produções, como é o caso de “Demônios”, que, embora escrito
em 1893, depois de Aluísio ter publicado sua tríade naturalista, ainda
apresenta muitos resquícios românticos.
Em
“Demônios” (1893), surpreendentemente, encontramos uma narrativa en abîme, na qual narrativas
diferentes, pela técnica do encaixe, vão permeando-se. É exatamente uma destas
narrativas do conto que se caracteriza como fantástica. Em “Demônios”, todavia,
há inegavelmente um hibridismo entre os discursos romântico, fantástico e
realista/naturalista.
A
narrativa de “Demônios”, em primeira pessoa, começa com a descrição do quarto
de uma casa de pensão da rua do Riachuelo — ambiente já conhecido e explorado
por Aluísio em um dos seus livros mais conhecidos —, onde vive o personagem
principal do conto. Esse narrador, de quem não sabemos o nome, se apresenta
logo no início do conto como um escritor que contrapõe a banalidade da arte à
riqueza e completude da realidade: “a arte me parecia mesquinha e banal em
confronto com aquela fascinante realidade, tão simples, tão despretensiosa, mas
tão rica e tão completa.” (Azevedo, 961: 2005). Encaramos tal afirmativa como
uma estratégia discursiva que visa a dar credibilidade à narrativa fantástica
que na seqüência será desenvolvida, contribuindo para a hesitação do leitor
diante dos fatos narrados. Já na primeira página do conto, encontramos dois
traços da narrativa que colocam sob suspeita os acontecimentos insólitos que
serão narrados: a narrativa em primeira pessoa, que, apresentando uma visão
parcial dos fatos, configura um relato ambíguo, e a condição de romancista do
narrador, que nos coloca em estado de alerta perante a narrativa que segue.
O
discurso romântico presente na descrição da natureza e do retrato da noiva que
o escritor mantém na cabeceira de sua cama está presente desde o início do
conto e permeia toda a narrativa, entremeando-se ao fantástico:
(...) o sol, através da
atmosfera, tirava, nos seus sonhos dourados, os mais belos efeitos de luz. Os
morros, mais perto, mais longe, erguiam-se alegres e verdejantes, ponteados de
casinhas brancas, e lá iam desdobrando, a fazer-se cada vez mais azuis e vaporosos,
até que se perdiam de todo, muito além, nos segredos do horizonte, confundidos
com as nuvens, numa só coloração de
tintas ideais e castas (Azevedo, 2005: 961).
A
narrativa prossegue no segundo capítulo e o escritor, que raramente trabalhava
à noite, conta que em noites de insônia costumava escrever. Neste momento, a
narrativa se modifica, e, sem que nem sequer o leitor mais perspicaz perceba,
uma nova escrita se apresenta. A escrita do personagem/escritor se encaixa na
primeira narrativa, somente ao fim do conto, todavia esta mudança será revelada
ao leitor. Ao acordar, “sem consciência de nada, como se viesse de um desses
longos sonos de doente” (Azevedo, 2005: 962), ele percebe que tudo está
aparentemente diferente. O fato de esse narrador-personagem ser escritor,
acordar no meio da noite, sem noção exata do tempo que dormiu, e começar a
narrar uma estória, aponta explicitamente para a ambigüidade do texto.
Parece-nos pertinente ressaltar que o estágio intermediário entre a vigília e o
sono, ou ainda a passagem em que o personagem passa a madrugada acordado e ao
despertar, de fato, não sabe se o que aconteceu deve-se ao real ou ao onírico,
constituem traços recorrentes na literatura fantástica. O primeiro fato
insólito dá-se quando o dia não amanhece. O personagem, então, reage ao
inesperado: “Sim! Não havia dúvida que era bem singular não ter amanhecido!”
(Azevedo, 2005: 962), repetindo algumas vezes a frase: “Oh! Era singular, muito
singular!” (Azevedo, 2005: 962). O relógio marcando meia-noite, o amortecimento
das estrelas, o léxico empregado (“estranha”, “surdo”, “entorpecido”, “morto”,
“catacumbas”, “cataclismos”...) contribuem, assim como o silêncio da noite e a
ausência total de pessoas na rua, para a elaboração de um quadro de horror.
Diante de tal estranhamento, o personagem hesita, buscando entender o que pode
ter acontecido durante seu “maldito sono”.
E
veio-me a dúvida de que eu tivesse perdido a faculdade de ouvir, durante aquele
maldito sono de tantas horas; fulminado por essa idéia, precipitei-me sobre o
tímpano da mesa e vibrei-o com toda força (Azevedo, 2005: 963).
–
Ilusão minha, com certeza! Que louca és tu, minha pobre fantasia! Daqui a nada
estará amanhecendo, e todos estes teus caprichos, teus ou da noite, essa outra
doida, desaparecerão aos primeiros raios do sol (Azevedo, 2005: 963).
O
silêncio absoluto o faz pensar que está surdo, da mesma forma que atribui a sua
fantasia tais acontecimentos insólitos. Como podemos perceber, a hesitação,
exigência sine qua non do fantástico, para Todorov, está
fortemente caracterizada. O leitor, que ainda não sabe que essa narrativa é, na
verdade, uma produção ficcional do personagem escritor, também hesita diante do
que lê. Estabelece-se o embate entre a razão e o mistério, marca fundamental do
fantástico. Por sua natureza ambígua e contraditória, o relato fantástico
extrai seu argumento do casamento entre a razão e aquilo que a razão refuta
habitualmente. A hesitação representada no texto pelo personagem, traço da
maioria das narrativas fantásticas, também está aqui igualmente caracterizada.
Embora o conto não sustente a ambigüidade até o final, conforme veremos
adiante, não configurando o fantástico puro, os momentos de hesitação do leitor
vividos no início da narrativa nos permitem afirmar que “Demônios” é, sem
dúvida, uma narrativa fantástica.
No
terceiro segmento deparamo-nos com a metalinguagem. O personagem escritor narra
o próprio processo da escritura. Em uma espécie de transe sobrenatural, o
romancista perde a consciência, e, sem nenhum controle sobre si mesmo, se põe a
escrever, num ritmo vertiginoso. O ato de escrever torna-se acontecimento
fantástico, uma verdadeira luta travada com demônios. Aqui, o título do conto
ganha contornos mais definidos, remetendo diretamente ao processo de criação
ficcional:
E páginas e páginas se
sucederam. E as idéias, que nem um bando de demônios,
vinham em borbotão, evorando-as umas às outras, num delírio de chegar primeiro;
e as frases e as imagens acudiam-me como relâmpagos, fuzilando, já prontas e
armadas da cabeça aos pés. E eu, sem tempo de molhar a pena, nem tempo de
desviar os olhos do campo da peleja, ia arremessando para trás de mim, uma após
outra, as tiras escritas, suando, arfando, sucumbido nas garras daquele feroz
inimigo que se aniquilava.
E
lutei! E lutei! E lutei!
De
repente, acordo desta vertigem (...) (Azevedo, 2005: 964; grifo nosso).
Ao
despertar, ele percebe que ainda não amanheceu, vai até a varanda e constata
que as plantas estavam fanadas, as estrelas se apagavam, a chama da vela era
ainda mais lívida. O personagem mais uma vez hesita. Buscando compreender a
situação e encontrar explicações, cogita a possibilidade de ter enlouquecido:
“Teria eu enlouquecido? ...” (Azevedo, 2005: 965). Suas sensações físicas se
exacerbam — ele tem fome, sede —, a natureza parece morrer, o som se extingue.
O medo, que, de acordo com outros teóricos, conceitua o fantástico, também está
presente: “E um violento calafrio percorreu-me o corpo. Principiei a ter medo
de tudo” (Azevedo, 2005: 965). Desesperado, ele vai aos outros quartos da casa
de pensão e percebe que todos os hóspedes estão mortos. Lembra-se de Laura, sua
noiva, e decide partir ao seu encontro. O discurso romântico novamente se
apresenta, agora de forma mais explícita. Percebe-se, nos trechos que seguem,
uma concepção de amor romântica, segundo a qual dois amantes isolados
assistirão à criação do mundo. Norteando o conto, esse romantismo caracteriza,
juntamente com o discurso realista/naturalista encontrado na descrição dos
corpos mortos e com o fantástico, o hibridismo discursivo de “Demônios”.
Meu
Deus! E se nós ficássemos os dois sozinhos na Terra, sem mais ninguém, ninguém
? ... Se nós víssemos a sós, ela e eu, estreitados um contra o outro, num
eterno egoísmo paradisíaco, assistindo recomeçar a criação em torno do nosso
isolamento? ... assistindo, ao som dos nossos beijos de amor, formar-se de novo
o mundo, brotar de novo a vida, acordando toda a natureza, estrela por estrela,
asa por asa, pétala por pétala?... (Azevedo, 2005: 967).
Penetrei
na sala de jantar. À porta tropecei no cadáver de um cão; passei adiante. O
criado espumando pela boca e pelas ventas; não fiz caso. Do fundo dos quartos
vinha já um bafo enjoativo de putrefação ainda recente (Azevedo, 2005: 968).
Ao
sair na rua em direção à casa de Laura, encontrou apenas as trevas de uma noite
úmida e fria. Sentia dores pelo corpo, frio, a boca seca, faltava-lhe o fôlego,
suas forças pareciam minadas. Já na casa de Laura, ao olhar a escada, onde
costumavam se despedir, ele lembra do primeiro beijo; a poltrona, onde ela
costumava se sentar, lhe traz saudades. O pudor quase o impede de entrar no
quarto da amada : “nunca houvera ousado penetrar naquela casta alcova de
donzela, e um respeito profundo imobilizou-me junto à porta, como se pesasse
profanar com a minha presença tão puro e religioso asilo de pudor” (Azevedo,
2005: 972). Laura encontrava-se fria e inanimada, parecia morta como seus pais
e todos os outros, mas,“surpreendentemente”, depois de receber um beijo e ouvir
apaixonado discurso, dá sinais de vida. Os amantes decidem partir e morrer
juntos no fundo do mar: “Desceremos ao abismo, os dois, abraçados, certamente
unidos, e lá ficaremos para sempre, como duas raízes mortas, entretecidas e
petrificadas no fundo da terra!”(Azevedo, 2005: 973).
Compreendi
então esse vôo etéreo de duas almas aladas na mesma fé, deslizando juntas pelo
espaço em busca do paraíso. Compreendi a divinal e suprema volúpia do noivado
de dois espíritos que se unem para sempre (Azevedo, 2005: 974).
Pusemo-nos
a andar com extrema dificuldade, procurando a direção do mar. Tristes e mudos,
como dois enxotados do paraíso (Azevedo, 2005: 975).
(...) nossas almas se estreitavam e se confundiam (Azevedo,
2005: 975).
Pouco
a pouco, os amantes se adaptam ao meio e se transformam. A voz se anula, o
pensar se modifica. Perdem os sapatos, as roupas. Laura se preocupa, pois em
pouco tempo estará despida. Os corpos ganham traços animalescos; como feras,
rosnavam e berravam ferozmente, sentiam ímpeto de lutar, correr, dominar. Na
seqüência, sofrem novas metamorfoses. Passam do reino animal para o vegetal e
deste para o mineral. Séculos mais tarde, atingem finalmente o estado
molecular, fluídico, etéreo.
E,
abraçados a princípio, soltamo-nos depois e começamos a percorrer o firmamento,
girando em volta um do outro, como um casal de estrelas errantes e amorosas,
que vão espaço a fora em busca do ideal (Azevedo, 2005: 982).
As
sucessivas mudanças de reinos culminam com o encontro etéreo entre os amantes,
idéia que parece nortear toda narrativa. Ao final da leitura, observamos que o
fantástico é útil ao romantismo de “Demônios”, configurando-se também como
artifício romanesco. Refutada pela razão, a idéia romântica de fusão e união
eterna dos seres amados é possível somente a partir de uma ótica sobrenatural.
No
último parágrafo do conto, o ponto de partida é retomado. O personagem escritor
desfaz o efeito en abîme e surpreende o leitor ao apresentar
toda a narrativa fantástica como os capítulos que ele mesmo havia escrito.
Ora
aí fica, leitor paciente, nessa dúzia de capítulos desenxabidos, o que eu,
naquela noite de insônia, escrevi no meu quarto de rapaz solteiro, esperando
que Sua Alteza, o Sol, se dignasse de abrir a sua audiência matutina com os
pássaros e com as flores (Azevedo, 2005: 982).
A idéia que guia o conto é romântica, mas
também reconhecemos o naturalismo, na descrição de ambientes insalubres e
corpos putrefatos , bem como o fantástico, embora seu efeito seja comprometido,
em certa altura da narrativa, pelo exagero. O desfecho de “Demônios”, quando o
autor se coloca diante de uma escolha entre estéticas/estilos, ressalta mais
uma vez a coexistência do fantástico, do romantismo e do realismo no conto. Ao
revelar que toda a narrativa não passava de um texto literário, Aluísio repudia
a estética fantástica e a romântica, exaltando o realismo. É curioso observar
como Aluísio tomou por matéria-prima elementos opostos à estética realista,
como o devaneio, os sonhos,
o vertiginoso mundo das imagens que povoam o imaginário do universo gótico e da
fantasia, fazendo de tudo isso matéria literária que se assume deliberadamente
como ficção. Assim sendo, o fantástico possibilita o deslocamento do conceito
de verossimilhança e instaura o espaço da literatura assumida enquanto ficção,
em oposição à estratégia discursiva realista.
----
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICASAZEVEDO, Aluísio. Ficção completa. Organização de Orna
Messer Levin. São Paulo: Nova Aguilar, 2005.
AZEVEDO, Álvares. Noites na taberna. Porto Alegre:L&PM, 1998.
BATALHA, Maria Cristina. O fantástico como mise-en-scène da modernidade. Tese de doutorado. Niterói: Instituto de Letras da UFF, 2003.
BOSI, Alfredo. O Realismo. In: História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
GABRIELLI, Murilo Garcia. A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na literatura brasileira. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da UERJ, 2004.
LIMA, Luis Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
MAYA, Alcides. Romantismo e naturalismo através da obra de Aluísio Azevedo. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1926.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo, uma vida de romance. São Paulo: Martins,1958.
MÉRIAN, Jean Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913); o verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
MOISÉS, Massaud. Prosa. In: História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001. V. 2. p. 11-50.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance. Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
AZEVEDO, Álvares. Noites na taberna. Porto Alegre:L&PM, 1998.
BATALHA, Maria Cristina. O fantástico como mise-en-scène da modernidade. Tese de doutorado. Niterói: Instituto de Letras da UFF, 2003.
BOSI, Alfredo. O Realismo. In: História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
GABRIELLI, Murilo Garcia. A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na literatura brasileira. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da UERJ, 2004.
LIMA, Luis Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
MAYA, Alcides. Romantismo e naturalismo através da obra de Aluísio Azevedo. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1926.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo, uma vida de romance. São Paulo: Martins,1958.
MÉRIAN, Jean Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913); o verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
MOISÉS, Massaud. Prosa. In: História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001. V. 2. p. 11-50.
RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.
SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance. Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
---
Fonte:
http://www.filologia.org.br/
Fonte:
http://www.filologia.org.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário