02/11/2013

Demônios, de Aluísio Azevedo

 Aluisio Azevedo -Demonios - Iba Mendes
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DEMÔNIOS: O FANTÁSTICO EM ALUÍSIO AZEVEDO

Por: Patrícia Alves Carvalho (UERJ) 

Inchou-me por dentro o coração, sufocando-me a garganta; gelou-se-me a medula e secou-me a língua. Senti-me como entalado ainda vivo no fundo de um túmulo estreito; senti desabar sobre minha pobre alma, com todo o seu peso de maldição, aquela imensa noite negra e devoradora (Azevedo, 2005: 969).

Embora o lugar reservado a Aluísio Azevedo nos quadros da literatura brasileira o reduza a autor exclusivamente naturalista, ele escreveu em várias direções, apresentando diferentes estéticas na sua produção literária. Além das obras que permanecem como marcos do Naturalismo literário – O mulato (1881), Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890) e configuram a vertente canônica de sua obra, Aluísio escreveu um romance romântico, Uma lágrima de mulher(1880), vários romances-folhetins, comédias, peças de teatro, operetas, crônicas, uma novela policial e um conto fantástico. Como se pode constatar, através de sua eclética produção, a condição de Aluísio é, sem dúvida, de escritor múltiplo, de habilidades e estilos plurais. Cabe-nos aqui destacar e discutir uma destas vertentes estéticas da sua obra relegada pela crítica e desconhecida do leitor comum: a narrativa fantástica.
O conto fantástico “Demônios” (1891) integra uma coletânea que recebeu, nas suas primeiras edições, o título de Pegadas. A partir da edição de 1937, a editora Briguiet atribuiu a esta mesma coletânea o título de seu primeiro conto: “Demônios”. Cabe-nos aqui uma abordagem centrada exclusivamente no conto“Demônios”, que se constitui como uma narrativa fantástica, modalidade de ficção tão pouco explorada entre nós. É curioso, e mais uma vez surpreendente, constatar que um escritor visto como essencialmente realista/natura-lista tenha escrito literatura fantástica, gênero que se elabora a partir da modernidade.
Uma narrativa, conforme Tzvetan Todorov (2004), para ser considerada fantástica, precisa atender a três condições essenciais. A primeira, e mais importante, é provocar a hesitação do leitor face ao acontecimento, que não pode ser explicado pelas leis que racionalmente conhecemos. Tanto a fé absoluta quanto a incredulidade total levam o leitor para além dos domínios do fantástico. É, portanto, a hesitação mencionada que dá vida às narrativas do gênero. Pode-se, então, resumir esta exigência fundamental na sentença: “Cheguei quase a acreditar” (Todorov, 2004: 36). A opção por uma resposta que explique o sobrenatural em termos de racionalidade rompe com o fantástico e nos faz, dependendo do caráter dessa explicação, adentrar, ainda segundo a nossa fonte, o campo de outros gêneros, o estranho ou o maravilhoso. Quando a hesitação do leitor perdura até o final da narrativa, temos o que Todorov denomina fantástico puro, mas, se os acontecimentos podem ser explicados pela razão, encontramos o estranho; e se os elementos sobrenaturais não provocam reação, estamos diante do maravilhoso.
Todorov estabelece ainda subgêneros: estranho puro, fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso e o maravilhoso puro. O fantástico puro, que mantém a hesitação até o fim, seria um gênero “entre”, ambíguo por si mesmo (Todorov, 2004: 50). Não há por parte do crítico, no entanto, a intenção de estabelecer regras rígidas, uma vez que as fronteiras entre os gêneros são tênues, mas apenas o intuito de propor categorias, numa tentativa de compreender melhor o fantástico como um todo.
Todorov centra a condição essencial do fantástico na recepção do leitor, indo ao encontro de algumas reflexões da estética da recepção de Robert Yauss. “O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados” (Todorov, 2004: 37). O leitor, portanto, não é um receptor passivo, mas um co-autor da obra. O efeito fantástico está subordinado não só à forma de organização do enredo, como também à maneira de ler do leitor, que pode ou não promovê-lo. A “interpretação” do texto se configura, conforme vamos observar na terceira condição, como uma possível ameaça ao fantástico.
A hesitação do leitor pode ser igualmente experimentada por um dos personagens. Nesse caso, temos a hesitação representada no texto. O personagem, assim como o leitor, hesita, questionando se o que o cerca é de fato real ou pura ilusão. Esta segunda condição para o fantástico o caracteriza, mas não o constitui essencialmente. O fantástico, então, poderá existir sem satisfazê-la. Na maioria das obras, todavia, esta condição, apesar de facultativa, é atendida, e a hesitação ganha um representante no interior da própria trama, com quem o leitor, particularmente, se identifica. São raras as obras, como Véra, de Villiers de l’Isle-Adam, nas quais a hesitação do leitor não é compartilhada com um personagem.
A terceira condição para o fantástico, assim como a primeira, é parte da constituição do gênero e está centrada no leitor. Para que o fantástico ocorra, é preciso que o leitor rejeite a interpretação alegórica e a poética, pois ambas impossibilitam o fantástico. A interpretação alegórica pressupõe que o sobrenatural não deve ser entendido “ao pé da letra”. Um conto de fadas, por exemplo, não é considerado fantástico, uma vez que o leitor não é surpreendido pelo sobrenatural. Se animais ou objetos inanimados falam, sabe-se previamente que o sentido é ali alegórico. Os contos de fada fazem parte não do fantástico, mas constituem-se como uma das variedades do maravilhoso, onde a existência de fatos sobrenaturais não implica a reação dos personagens e do leitor implícito. A alegoria remete a uma mensagem no campo da realidade; ela nos afirma uma verdade, nos impedindo de imaginar. Da mesma forma, o fantástico também não tem espaço na poesia, que, com uma linguagem diferenciada “suspende” a realidade. Ao ler um poema, o leitor sabe que se o “ ‘eu poético’ voa pelos ares, isto é apenas uma seqüência verbal, a ser tomada como tal, sem pretender ir além das palavras” (Todorov, 2004: 38). Assim, “O fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói, mas também uma maneira de ler, que se pode por ora definir negativamente: não deve ser poética, nem alegórica” (Todorov, 2004: 38).
Ao afirmar que o leitor deve considerar o mundo dos personagens, hesitando em acreditar se o que está acontecendo é real ou ilusão, sustentando uma ambigüidade permanente, o conceito de fantástico, definido com relação aos de real e de imaginário, esbarra na própria reflexão sobre a literatura. O leitor, através de sua imaginação, intervém no texto, contribuindo para a ruptura entre o literário e o real. O papel da literatura fantástica nos parece ser não o de reproduzir o real, mas, ao contrário, pela própria hesitação que instala, o de expor as contradições deste, e as da própria literatura.
Embora tenha sua origem na literatura ocidental ainda no século XVIII, em 1772, com Le diable amoureux, de Cazotte, o fantástico viveu seu auge no século XIX, encontrando em Maupassant, segundo a perspectiva teórica de Todorov, seu último exemplo esteticamente satisfatório. Enquanto o sobrenatural existe desde sempre e continua a ser praticado hoje, o fantástico teve vida breve. No século XIX, quando as fronteiras entre real e imaginário, guiadas pelo cientificismo reinante, estavam nitidamente definidas, o fantástico encontrou terreno fértil. No século XX, as noções de real e ficção tornaram-se mais complexas, e o fantástico dito clássico, que tem como prerrogativa fundamental a hesitação, teria, ainda de acordo com Todorov, perdido a vitalidade. O lugar do sobrenatural, no século XX, teria sido ocupado por um fantástico “moderno”, que se aproxima do absurdo. Nota-se a naturalização do sobrenatural, uma vez que acontecimentos absurdos são encarados como normais. Em Metamorfose, de Kafka, por exemplo, há uma ausência de surpresa diante do extraordinário. Neste novo fantástico, a hesitação não seria mais a condição essencial, e o personagem principal, que antes era um ser normal, torna-se fantástico. Sobre as narrativas de Blanchot ou Kafka, Sartre afirma: “já não procuram pintar seres extraordinários; para eles, não existe senão um objeto fantástico: o homem. O homem ‘normal’ é precisamente o ser fantástico; o fantástico torna-se a regra, não a exceção” (Sartre apud Todorov, 2004: 181).
O século XIX vivia, é verdade, numa metafísica do real e do imaginário, e a literatura fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX positivista. Mas hoje, não se pode mais acreditar numa realidade imutável, externa, nem em uma literatura que não fosse senão a transcrição desta realidade. As palavras ganharam uma autonomia que as coisas perderam. A literatura que sempre afirmou esta outra visão é sem dúvida um dos móveis da evolução. A literatura fantástica, ela mesma, que subverteu ao longo de todas as suas páginas, as categorizações lingüísticas, recebeu com isso um golpe fatal; mas desta morte, deste suicídio nasceu uma nova literatura (Todorov, 2004: 176-177).
Ao contrário do que se observa na literatura hispano-americana, que desenvolveu uma ficção não-realista, o “realismo mágico”, na literatura brasileira, o fantástico sofreu uma espécie de obstrução (Gabrielli, 2004: 67). Esta neutralização dificulta um conhecimento específico sobre a trajetória do fantástico entre nós. O espaço a ele destinado nas histórias da literatura brasileira nos mostra o quanto esse gênero foi pouco examinado e freqüentemente subestimado pela crítica literária e pelo leitor comum. O fato de nosso sistema literário ter certa propensão para a literatura realista de cunho documental parece oferecer ao menos uma primeira explicação para a ausência do registro da literatura fantástica pela crítica hegemônica. A concepção de uma literatura nacionalista, sobretudo a romântica, marcada pela busca da cor local, direcionou o gosto de nossa literatura pelo documental: “O serviço à pátria, tal como entendido, implicava o culto do documental, do verídico, do factual, a pretexto de que só assim se compreenderia e formularia a diferença da natureza e da sociedade nossas” (Lima, 1986: 206).
No Brasil, no entanto, alguns escritores, sobretudo os românticos, já usavam elementos fantásticos em suas narrativas. Há uma certa afinidade entre os românticos, certamente por influência de escritores europeus, e a atmosfera de penumbra, o crepúsculo, o medo, o mistério, comum nas narrativas fantásticas. O exemplo mais evidente é Noites na taberna (1855), de Álvares Azevedo, onde acontecimentos inauditos são narrados, num discurso romântico, por jovens amigos numa taberna. O sono e o álcool que os evolvem atuam na ambigüidade da narrativa. Aluísio Azevedo e Machado de Assis também fornecem exemplos do fantástico no século XIX.
O conto “Demônios”, de Aluísio Azevedo, apresenta, como em geral todas as manifestações fantásticas de nossa literatura no século XIX, uma qualidade duvidosa. Permeado de clichês, muito próximo dos artifícios românticos folhetinescos, o conto aponta para um ideal romântico. É preciso lembrar que, ao contrário do que a princípio se poderia imaginar, Aluísio teve uma grande produção romântica. Além de seu romance de estréia, Uma lágrima de mulher(1880), ele escreveu açucarados romances-folhetins. Até mesmo a primeira edição de O mulato (1881), obra inaugural do Naturalismo no Brasil, é recheada de traços românticos. O discurso romântico foi para Aluísio uma constante, e assim nada mais natural que a presença desses elementos em outras produções, como é o caso de “Demônios”, que, embora escrito em 1893, depois de Aluísio ter publicado sua tríade naturalista, ainda apresenta muitos resquícios românticos.
Em “Demônios” (1893), surpreendentemente, encontramos uma narrativa en abîme, na qual narrativas diferentes, pela técnica do encaixe, vão permeando-se. É exatamente uma destas narrativas do conto que se caracteriza como fantástica. Em “Demônios”, todavia, há inegavelmente um hibridismo entre os discursos romântico, fantástico e realista/naturalista.
A narrativa de “Demônios”, em primeira pessoa, começa com a descrição do quarto de uma casa de pensão da rua do Riachuelo — ambiente já conhecido e explorado por Aluísio em um dos seus livros mais conhecidos —, onde vive o personagem principal do conto. Esse narrador, de quem não sabemos o nome, se apresenta logo no início do conto como um escritor que contrapõe a banalidade da arte à riqueza e completude da realidade: “a arte me parecia mesquinha e banal em confronto com aquela fascinante realidade, tão simples, tão despretensiosa, mas tão rica e tão completa.” (Azevedo, 961: 2005). Encaramos tal afirmativa como uma estratégia discursiva que visa a dar credibilidade à narrativa fantástica que na seqüência será desenvolvida, contribuindo para a hesitação do leitor diante dos fatos narrados. Já na primeira página do conto, encontramos dois traços da narrativa que colocam sob suspeita os acontecimentos insólitos que serão narrados: a narrativa em primeira pessoa, que, apresentando uma visão parcial dos fatos, configura um relato ambíguo, e a condição de romancista do narrador, que nos coloca em estado de alerta perante a narrativa que segue.
O discurso romântico presente na descrição da natureza e do retrato da noiva que o escritor mantém na cabeceira de sua cama está presente desde o início do conto e permeia toda a narrativa, entremeando-se ao fantástico:
(...) o sol, através da atmosfera, tirava, nos seus sonhos dourados, os mais belos efeitos de luz. Os morros, mais perto, mais longe, erguiam-se alegres e verdejantes, ponteados de casinhas brancas, e lá iam desdobrando, a fazer-se cada vez mais azuis e vaporosos, até que se perdiam de todo, muito além, nos segredos do horizonte, confundidos com as nuvens, numa só coloração de tintas ideais e castas (Azevedo, 2005: 961).
A narrativa prossegue no segundo capítulo e o escritor, que raramente trabalhava à noite, conta que em noites de insônia costumava escrever. Neste momento, a narrativa se modifica, e, sem que nem sequer o leitor mais perspicaz perceba, uma nova escrita se apresenta. A escrita do personagem/escritor se encaixa na primeira narrativa, somente ao fim do conto, todavia esta mudança será revelada ao leitor. Ao acordar, “sem consciência de nada, como se viesse de um desses longos sonos de doente” (Azevedo, 2005: 962), ele percebe que tudo está aparentemente diferente. O fato de esse narrador-personagem ser escritor, acordar no meio da noite, sem noção exata do tempo que dormiu, e começar a narrar uma estória, aponta explicitamente para a ambigüidade do texto. Parece-nos pertinente ressaltar que o estágio intermediário entre a vigília e o sono, ou ainda a passagem em que o personagem passa a madrugada acordado e ao despertar, de fato, não sabe se o que aconteceu deve-se ao real ou ao onírico, constituem traços recorrentes na literatura fantástica. O primeiro fato insólito dá-se quando o dia não amanhece. O personagem, então, reage ao inesperado: “Sim! Não havia dúvida que era bem singular não ter amanhecido!” (Azevedo, 2005: 962), repetindo algumas vezes a frase: “Oh! Era singular, muito singular!” (Azevedo, 2005: 962). O relógio marcando meia-noite, o amortecimento das estrelas, o léxico empregado (“estranha”, “surdo”, “entorpecido”, “morto”, “catacumbas”, “cataclismos”...) contribuem, assim como o silêncio da noite e a ausência total de pessoas na rua, para a elaboração de um quadro de horror. Diante de tal estranhamento, o personagem hesita, buscando entender o que pode ter acontecido durante seu “maldito sono”.
E veio-me a dúvida de que eu tivesse perdido a faculdade de ouvir, durante aquele maldito sono de tantas horas; fulminado por essa idéia, precipitei-me sobre o tímpano da mesa e vibrei-o com toda força (Azevedo, 2005: 963).
– Ilusão minha, com certeza! Que louca és tu, minha pobre fantasia! Daqui a nada estará amanhecendo, e todos estes teus caprichos, teus ou da noite, essa outra doida, desaparecerão aos primeiros raios do sol (Azevedo, 2005: 963).
O silêncio absoluto o faz pensar que está surdo, da mesma forma que atribui a sua fantasia tais acontecimentos insólitos. Como podemos perceber, a hesitação, exigência sine qua non do fantástico, para Todorov, está fortemente caracterizada. O leitor, que ainda não sabe que essa narrativa é, na verdade, uma produção ficcional do personagem escritor, também hesita diante do que lê. Estabelece-se o embate entre a razão e o mistério, marca fundamental do fantástico. Por sua natureza ambígua e contraditória, o relato fantástico extrai seu argumento do casamento entre a razão e aquilo que a razão refuta habitualmente. A hesitação representada no texto pelo personagem, traço da maioria das narrativas fantásticas, também está aqui igualmente caracterizada. Embora o conto não sustente a ambigüidade até o final, conforme veremos adiante, não configurando o fantástico puro, os momentos de hesitação do leitor vividos no início da narrativa nos permitem afirmar que “Demônios” é, sem dúvida, uma narrativa fantástica.
No terceiro segmento deparamo-nos com a metalinguagem. O personagem escritor narra o próprio processo da escritura. Em uma espécie de transe sobrenatural, o romancista perde a consciência, e, sem nenhum controle sobre si mesmo, se põe a escrever, num ritmo vertiginoso. O ato de escrever torna-se acontecimento fantástico, uma verdadeira luta travada com demônios. Aqui, o título do conto ganha contornos mais definidos, remetendo diretamente ao processo de criação ficcional:
E páginas e páginas se sucederam. E as idéias, que nem um bando de demônios, vinham em borbotão, evorando-as umas às outras, num delírio de chegar primeiro; e as frases e as imagens acudiam-me como relâmpagos, fuzilando, já prontas e armadas da cabeça aos pés. E eu, sem tempo de molhar a pena, nem tempo de desviar os olhos do campo da peleja, ia arremessando para trás de mim, uma após outra, as tiras escritas, suando, arfando, sucumbido nas garras daquele feroz inimigo que se aniquilava.
E lutei! E lutei! E lutei!
De repente, acordo desta vertigem (...) (Azevedo, 2005: 964; grifo nosso).
Ao despertar, ele percebe que ainda não amanheceu, vai até a varanda e constata que as plantas estavam fanadas, as estrelas se apagavam, a chama da vela era ainda mais lívida. O personagem mais uma vez hesita. Buscando compreender a situação e encontrar explicações, cogita a possibilidade de ter enlouquecido: “Teria eu enlouquecido? ...” (Azevedo, 2005: 965). Suas sensações físicas se exacerbam — ele tem fome, sede —, a natureza parece morrer, o som se extingue. O medo, que, de acordo com outros teóricos, conceitua o fantástico, também está presente: “E um violento calafrio percorreu-me o corpo. Principiei a ter medo de tudo” (Azevedo, 2005: 965). Desesperado, ele vai aos outros quartos da casa de pensão e percebe que todos os hóspedes estão mortos. Lembra-se de Laura, sua noiva, e decide partir ao seu encontro. O discurso romântico novamente se apresenta, agora de forma mais explícita. Percebe-se, nos trechos que seguem, uma concepção de amor romântica, segundo a qual dois amantes isolados assistirão à criação do mundo. Norteando o conto, esse romantismo caracteriza, juntamente com o discurso realista/naturalista encontrado na descrição dos corpos mortos e com o fantástico, o hibridismo discursivo de “Demônios”.
Meu Deus! E se nós ficássemos os dois sozinhos na Terra, sem mais ninguém, ninguém ? ... Se nós víssemos a sós, ela e eu, estreitados um contra o outro, num eterno egoísmo paradisíaco, assistindo recomeçar a criação em torno do nosso isolamento? ... assistindo, ao som dos nossos beijos de amor, formar-se de novo o mundo, brotar de novo a vida, acordando toda a natureza, estrela por estrela, asa por asa, pétala por pétala?... (Azevedo, 2005: 967).
Penetrei na sala de jantar. À porta tropecei no cadáver de um cão; passei adiante. O criado espumando pela boca e pelas ventas; não fiz caso. Do fundo dos quartos vinha já um bafo enjoativo de putrefação ainda recente (Azevedo, 2005: 968).
Ao sair na rua em direção à casa de Laura, encontrou apenas as trevas de uma noite úmida e fria. Sentia dores pelo corpo, frio, a boca seca, faltava-lhe o fôlego, suas forças pareciam minadas. Já na casa de Laura, ao olhar a escada, onde costumavam se despedir, ele lembra do primeiro beijo; a poltrona, onde ela costumava se sentar, lhe traz saudades. O pudor quase o impede de entrar no quarto da amada : “nunca houvera ousado penetrar naquela casta alcova de donzela, e um respeito profundo imobilizou-me junto à porta, como se pesasse profanar com a minha presença tão puro e religioso asilo de pudor” (Azevedo, 2005: 972). Laura encontrava-se fria e inanimada, parecia morta como seus pais e todos os outros, mas,“surpreendentemente”, depois de receber um beijo e ouvir apaixonado discurso, dá sinais de vida. Os amantes decidem partir e morrer juntos no fundo do mar: “Desceremos ao abismo, os dois, abraçados, certamente unidos, e lá ficaremos para sempre, como duas raízes mortas, entretecidas e petrificadas no fundo da terra!”(Azevedo, 2005: 973).
Compreendi então esse vôo etéreo de duas almas aladas na mesma fé, deslizando juntas pelo espaço em busca do paraíso. Compreendi a divinal e suprema volúpia do noivado de dois espíritos que se unem para sempre (Azevedo, 2005: 974).
Pusemo-nos a andar com extrema dificuldade, procurando a direção do mar. Tristes e mudos, como dois enxotados do paraíso (Azevedo, 2005: 975).
(...) nossas almas se estreitavam e se confundiam (Azevedo, 2005: 975).
Pouco a pouco, os amantes se adaptam ao meio e se transformam. A voz se anula, o pensar se modifica. Perdem os sapatos, as roupas. Laura se preocupa, pois em pouco tempo estará despida. Os corpos ganham traços animalescos; como feras, rosnavam e berravam ferozmente, sentiam ímpeto de lutar, correr, dominar. Na seqüência, sofrem novas metamorfoses. Passam do reino animal para o vegetal e deste para o mineral. Séculos mais tarde, atingem finalmente o estado molecular, fluídico, etéreo.
E, abraçados a princípio, soltamo-nos depois e começamos a percorrer o firmamento, girando em volta um do outro, como um casal de estrelas errantes e amorosas, que vão espaço a fora em busca do ideal (Azevedo, 2005: 982).
As sucessivas mudanças de reinos culminam com o encontro etéreo entre os amantes, idéia que parece nortear toda narrativa. Ao final da leitura, observamos que o fantástico é útil ao romantismo de “Demônios”, configurando-se também como artifício romanesco. Refutada pela razão, a idéia romântica de fusão e união eterna dos seres amados é possível somente a partir de uma ótica sobrenatural.
No último parágrafo do conto, o ponto de partida é retomado. O personagem escritor desfaz o efeito en abîme e surpreende o leitor ao apresentar toda a narrativa fantástica como os capítulos que ele mesmo havia escrito.
Ora aí fica, leitor paciente, nessa dúzia de capítulos desenxabidos, o que eu, naquela noite de insônia, escrevi no meu quarto de rapaz solteiro, esperando que Sua Alteza, o Sol, se dignasse de abrir a sua audiência matutina com os pássaros e com as flores (Azevedo, 2005: 982).
A idéia que guia o conto é romântica, mas também reconhecemos o naturalismo, na descrição de ambientes insalubres e corpos putrefatos , bem como o fantástico, embora seu efeito seja comprometido, em certa altura da narrativa, pelo exagero. O desfecho de “Demônios”, quando o autor se coloca diante de uma escolha entre estéticas/estilos, ressalta mais uma vez a coexistência do fantástico, do romantismo e do realismo no conto. Ao revelar que toda a narrativa não passava de um texto literário, Aluísio repudia a estética fantástica e a romântica, exaltando o realismo. É curioso observar como Aluísio tomou por matéria-prima elementos opostos à estética realista, como o devaneio, os sonhos, o vertiginoso mundo das imagens que povoam o imaginário do universo gótico e da fantasia, fazendo de tudo isso matéria literária que se assume deliberadamente como ficção. Assim sendo, o fantástico possibilita o deslocamento do conceito de verossimilhança e instaura o espaço da literatura assumida enquanto ficção, em oposição à estratégia discursiva realista.

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MAYA, Alcides. Romantismo e naturalismo através da obra de Aluísio Azevedo. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1926.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo, uma vida de romance. São Paulo: Martins,1958.
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MOISÉS, Massaud. Prosa. In: História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001. V. 2. p. 11-50.
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SÜSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual Romance. Uma ideologia estética e sua história: o naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
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