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Um estudo do romance Til, de José de
Alencar
"O
ponto de vista do romance tem características intrigantes. O narrador em
terceira pessoa não é imparcial. Tem
tons distintos quando trata das duas esferas em confronto. No entanto, acima dele, percebe-se a “mão” do
escritor na organização do livro. Isto faz com que o narrador, apesar de manter características
de um narrador em terceira pessoa, que domina passado
e presente, tenha
também um estatuto
de personagem, na
medida em que sua
parcialidade o aproxima dos fazendeiros
do livro.
Chama
a atenção o fato de que seus personagens principais, Berta e Jão Fera, não façam parte da esfera social mais valorizada
pelo narrador. Ambos têm plena consciência das injustiças existentes no meio social em que
vivem e explicitam isso de muitas maneiras. Por seu lado, o narrador tem sempre um tom
condescendente e delicado quando trata da família de proprietários da Fazenda das Palmas. Além
disso, há um descompasso esquisito entre as afirmativas do narrador e a realidade esboçada
em muitas partes do livro. É como se o autor tivesse
perdido o controle
sobre sua matéria,
ou, ao contrário,
tivesse composto o
livro propositalmente de forma
dissimulada, chamando, de forma sutil, a atenção do leitor para o abismo existente entre uma realidade
brasileira vivida pela maior parte da população e uma realidade falsificada e rósea, sustentada por
uma burguesia rural enriquecida pelo mercado exportador do café e pela exploração do
trabalho escravo. Ao se ler o romance, a impressão é de que o narrador é equilibrado e almeja uma
harmonia ideal, mas o mundo a sua volta foge a seu controle. As coisas teimam em acontecer à
revelia, por mais que ele se esforce em manter as rédeas dos acontecimentos.
A
atmosfera de perigo paira sobre todo o livro. Apesar de existir um lugar
lúgubre nomeado no livro como o lugar do
perigo, a Ave Maria, lugar das emboscadas, trata-se aqui de um mal sem lugar e que toma aspectos
diferentes ao longo do romance. Essa atmosfera de mal descontrolado é muito intensa e se
transmuta a cada cena do romance, materializando-se de uma forma diferente. Isso provoca um
estranhamento no leitor, porque não se trata, apenas, do ritmo acelerado comum aos romances
românticos, cujo enredo é baseado nas peripécias das personagens (o que também existe no enredo
de Til), mas de afloramentos de um poder fora de controle, ligado à natureza ou ao
mundo sobrenatural, e também, em muitos casos, à maldade de alguns personagens, maldade
escorada nas difíceis relações sociais. No entanto, este poder funciona no livro como um dado
sempre presente, quase uma personagem – uma vez que dá origem a ações que interferem no
enredo –, mas uma personagem que não é descrita
e está fora do controle do narrador. Este, em alguns momentos, parece mais à
vontade e mantém um tom seguro e
conciliado de quem fala com seus pares. No entanto, esse tom não se mantém homogêneo durante toda a narrativa
e, mais do que isso, a forma como o romance vai sendo montado pelo escritor vai dando
pistas contraditórias ao leitor atento.
Para
exemplificar essa mensagem dúbia e contrastante entre o narrador e o escritor, podemos pensar nos títulos dos dois capítulos
que abrem, respectivamente, as duas primeiras cenas do romance: “O Capanga” e “Monjolo”. Nos
dois casos há um contraste marcante entre o título do capítulo e o tom de sua abertura.
Na primeira cena o leitor é levado pelas mãos de um narrador que usa uma linguagem cheia de
metáforas e adjetivos para falar de uma manhã radiosa e de uma natureza a um só tempo
luxuriante e apaziguada que serve de cenário para dois lindos e saudáveis jovens, “nossos
amiguinhos”. O capanga, aludido pelo título, aparece para quebrar o encanto desta cena que recende
a Infância e Paraíso, marcando, pela primeira vez, o tom de contraste presente em todo o
livro. No caso da segunda cena, trata-se do contraste também presente entre a apresentação
ampla e equilibrada que o narrador faz da Fazenda das Palmas e a continuação do
capítulo, que traz um diálogo entre um jovem escravo descrito como rude e boçal, Monjolo, e um
cavaleiro “embuçado” que trama uma emboscada para o fazendeiro. Nota-se
que, nos dois
casos, a personagem
que dá título
ao capítulo representa uma realidade que destoa
completamente do tom e do tema da abertura de ambos. A sensação provocada no leitor pela escolha do
escritor é a de um ruído que quebra uma harmonia
esperada. Isso porque o título do capítulo indica importância e centralidade, e
o que vemos, nos dois casos, são
personagens marginais à cena narrada e que trazem para dentro dela uma violência que quebra uma harmonia
almejada pelo narrador. Esse descompasso pode passar despercebido ao leitor,
que também é posto em situação ambígua e segue acompanhando o enredo, apenas pressentindo
ruídos que não se encaixam na linha principal do romance. O interessante é que isto é um dos
temas do livro, e o fato de que este tema – a dissimulação
de uma realidade
violenta – concretize-se também
na recepção do livro, demonstra, a meu ver, um
engenho literário do escritor.
Um
bom exemplo da diferença de tratamento dado, por parte do narrador, à família
de fazendeiros e aos homens pobres é o
capítulo “Pousada”, no qual o narrador descreve a venda de Chico Tinguá, amigo de Jão Fera. A venda é
um estabelecimento muito importante na sociedade
brasileira do século XIX, principalmente antes da construção das estradas de
ferro, pois proporcionava pouso e
alimentação aos tropeiros, responsáveis pela rede de troca de mercadorias, inclusive pelo escoamento do café
para os portos. Além disso, é o lugar de encontro
que está fora
dos domínios do
poder senhorial, e por
isso considerado pelos fazendeiros como lugar perigoso, onde, por
exemplo, os escravos podiam negociar objetos roubados de seus senhores. O vendeiro tem
papel especial na sociedade rural por ser o “único
agente ocupado em
atividades comerciais e
ao mesmo tempo
inserido na vida comunitária.
No
capítulo em questão, o narrador descreve com minúcia o ambiente da venda de forma
muito distanciada e
preconceituosa, chamando a
atenção para a
modorra de
seus proprietários. O descompasso
entre trabalho efetivo e desprestígio deste trabalho aos olhos do narrador faz com essa cena demonstre bem a
ética da desvalorização do trabalho que alicerça o romance.
O vendeiro
é apresentado cochilando
sobre o balcão:
“ainda moço e
robusto, derramava-se, não
obstante, no físico
desse homem certo
ar de indolência,
que nesse momento
mais se carregava
com a sonolenta
expressão do rosto
seco, pálido, baço,
e levemente sombreado
por alguns raros
fios de barba”.
Sua companheira, Nhanica, prostrada, observa a água fervente enquanto “a
louça ainda suja do serviço da véspera” se acumula à sua frente:
(...) alongava depois a vista pela porta afora
até lá embaixo no brejal, onde
passava o rego
da água, e
media a distância
a percorrer. Abria então um
bocejo, espreguiçava o lombo estirando
os braços; e, quando parecia levantar-se para cuidar na lavagem dos pratos, achatava-se ainda mais no chão,
murmurando: - Tem tempo!
No desenrolar da cena, a pousada vai se
enchendo com moradores locais e forasteiros e
o casal de
vendeiros serve café
e refeições para
todos. Mesmo quando
vai narrar um movimento produtivo
de Nhanica, o
narrador não deixe
que o leitor
se esqueça de
sua presumida indolência:
“Ergueu-se então a rapariga e sem
espreguiçar-se; tirou do trempe a panela
de feijão para deitar o boião d’água; e arranjando o saco, onde ainda estava o
polme da véspera, que servia para dous
dias, correu a buscar água para lavar a louça”.
Em Til, como em muitos romances regionalistas
posteriores, a fala das personagens traz
a marca de exotismo e peculiaridade regional, principalmente nas cenas que
tratam dos homens que
não são da
elite – livres
ou escravos –,
nem fazem parte
do núcleo de personagens
protagonistas: Berta, Miguel e Jão Fera. Quando trata das personagens menos importantes
que povoam o romance, o narrador usa uma linguagem
direta e os diálogos trazem termos regionais, como nos diálogos
entre os frequentadores da venda, ou em algumas cenas no terreiro da fazenda, onde se
relacionam camaradas, mucamas, pajens, escravos do eito, escravos crioulos (nascidos no Brasil),
escravos africanos e mulatos. O relacionamento entre estas personagens do romance,
entrevisto, principalmente, pelo diálogo que mantêm entre si, esboça um “espírito rixoso” e violento, que se desdobra em uma
necessidade de encobrimento das motivações
das ações, o
que torna as
relações interpessoais, além
de violentas, dissimuladas. A
família de Berta, Miguel e Nhá Tudinha não é tratada da mesma maneira preconceituosa pelo narrador, nem as
relações interpessoais destas personagens são mostradas como violentas.
Nestas
cenas que tratam das personagens secundárias, o tom do narrador é direto e homogêneo, pois o contraste e o hibridismo que
embasam o romance são mantidos à parte quando
não há o confronto, na cena, das duas esferas polarizadas. O mesmo efeito
existe, também, na esfera da elite,
quando o casal de fazendeiros é apresentado. No entanto, há cenas em que as contradições são postas em presença,
e nestas o contraste fica patente. Estas cenas vinculam-se,
frequentemente, às quatro
personagens jovens, ou
aos dois pares:
Berta e Miguel,
moradores dos arredores,
e Linda e
Afonso, habitantes da
casa-grande. O relacionamento entre os dois casais
representantes dos espaços polarizados é marcado por grande tensão, causada, em grande parte, pela
afinidade existente entre esta esfera do livro e o enredo amoroso dos romances urbanos
alencarinos. A impossibilidade da materialização de um
enredo sentimental –
flertes, paixões, complicações amorosas,
casamento –, que
é esboçado, mas esvaziado, faz
com que, nessas cenas, o tom do narrador fique instável e a sua parcialidade apareça de forma mais clara.
Um
aspecto que temos que sublinhar em Til é a importância da dimensão espacial no romance. Já nos referimos anteriormente à
hierarquização do espaço que o livro compartilha com O Guarani, hierarquização que é paralela à
hierarquia social. Em outras palavras, cada espaço do romance vincula-se a determinadas
personagens. Deste modo, os dois polos em confronto
de que temos
tratado, tão essencial
na obra, são,
também, dois espaços
em confronto. Um deles é a
casa-grande, espaço central, lugar da riqueza e do poder. O outro polo, periférico – que na verdade é tudo que
não é a casa-grande –, espraia-se do terreiro da casa-grande até a floresta virgem, mas é muito
mais marcado na região dos arredores, locais fora dos domínios da fazenda.
Há
um capítulo, no primeiro volume, que exemplifica bem o que estamos tentando apontar – a tensão que se forma quando
aspectos diferentes são postos lado a lado. No caso, não se trata de uma cena violenta, ao
contrário. É justamente a sua vocação para o idílio que faz com que, na impossibilidade de sua
configuração, sobressaia a
tensão. Na cena
em questão, as quatro personagens
jovens estão em um lugar que – segundo a lógica simbólica dos lugares que funciona no livro – simboliza,
por um lado, a intersecção dos dois mundos, o da fazenda e o dos arredores – uma vez que é
um pedaço periférico da fazenda que se limita com a floresta e local habitual
de encontro dos quatro amigos –, e por outro, a ilusão bucólica e idílica que une, em alguns momentos do
enredo, o narrador e os quatro jovens, e que, como veremos, não se sustenta, no ambiente social
da fazenda."
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Fonte:
Paula Maciel Barbosa: "O idílio degradado: um estudo do romance Til, de José de Alencar". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras - Orientador: Prof. Dr. José Antonio Pasta Jr.). Universidade de São Paulo, 2012.
Paula Maciel Barbosa: "O idílio degradado: um estudo do romance Til, de José de Alencar". (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras - Orientador: Prof. Dr. José Antonio Pasta Jr.). Universidade de São Paulo, 2012.
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