05/10/2013

Til, de José de Alencar

 Jose de Alencar - Til - Iba Mendes
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Um estudo do romance Til, de José de Alencar

"O ponto de vista do romance tem características intrigantes. O narrador em terceira  pessoa não é imparcial. Tem tons distintos quando trata das duas esferas em confronto. No  entanto, acima dele, percebe-se a “mão” do escritor na organização do livro. Isto faz com que  o narrador, apesar de manter características de um narrador em terceira pessoa, que domina  passado   e   presente,   tenha   também   um   estatuto   de   personagem,   na   medida   em   que   sua  parcialidade o aproxima dos fazendeiros do livro.

Chama a atenção o fato de que seus personagens principais, Berta e Jão Fera, não  façam parte da esfera social mais valorizada pelo narrador. Ambos têm plena consciência das  injustiças existentes no meio social em que vivem e explicitam isso de muitas maneiras. Por  seu lado, o narrador tem sempre um tom condescendente e delicado quando trata da família  de proprietários da Fazenda das Palmas. Além disso, há um descompasso esquisito entre as afirmativas do narrador e a realidade esboçada em muitas partes do livro. É como se o autor  tivesse   perdido   o   controle   sobre   sua   matéria,   ou,   ao   contrário,   tivesse   composto   o   livro  propositalmente de forma dissimulada, chamando, de forma sutil, a atenção do leitor para o  abismo existente entre uma realidade brasileira vivida pela maior parte da população e uma  realidade falsificada e rósea, sustentada por uma burguesia rural enriquecida pelo mercado  exportador do café e pela exploração do trabalho escravo. Ao se ler o romance, a impressão é  de que o narrador é equilibrado e almeja uma harmonia ideal, mas o mundo a sua volta foge a  seu controle. As coisas teimam em acontecer à revelia, por mais que ele se esforce em manter  as rédeas dos acontecimentos.

A atmosfera de perigo paira sobre todo o livro. Apesar de existir um lugar lúgubre  nomeado no livro como o lugar do perigo, a Ave Maria, lugar das emboscadas, trata-se aqui  de um mal sem lugar e que toma aspectos diferentes ao longo do romance. Essa atmosfera de  mal descontrolado é muito intensa e se transmuta a cada cena do romance, materializando-se  de uma forma diferente. Isso provoca um estranhamento no leitor, porque não se trata, apenas,  do ritmo acelerado comum aos romances românticos, cujo enredo é baseado nas peripécias  das personagens (o que também existe no enredo de Til), mas de afloramentos de um poder   fora de controle, ligado à natureza ou ao mundo sobrenatural, e também, em muitos casos, à  maldade de alguns personagens, maldade escorada nas difíceis relações sociais. No entanto,  este poder funciona no livro como um dado sempre presente, quase uma personagem – uma  vez que dá origem a ações que interferem no enredo –, mas uma personagem que não é  descrita e está fora do controle do narrador. Este, em alguns momentos, parece mais à vontade  e mantém um tom seguro e conciliado de quem fala com seus pares. No entanto, esse tom não  se mantém homogêneo durante toda a narrativa e, mais do que isso, a forma como o romance  vai sendo montado pelo escritor vai dando pistas contraditórias ao leitor atento.

Para exemplificar essa mensagem dúbia e contrastante entre o narrador e o escritor,  podemos pensar nos títulos dos dois capítulos que abrem, respectivamente, as duas primeiras  cenas do romance: “O Capanga” e “Monjolo”. Nos dois casos há um contraste marcante entre  o título do capítulo e o tom de sua abertura. Na primeira cena o leitor é levado pelas mãos de um narrador que usa uma linguagem cheia de metáforas e adjetivos para falar de uma manhã  radiosa e de uma natureza a um só tempo luxuriante e apaziguada que serve de cenário para  dois lindos e saudáveis jovens, “nossos amiguinhos”. O capanga, aludido pelo título, aparece  para quebrar o encanto desta cena que recende a Infância e Paraíso, marcando, pela primeira vez, o tom de contraste presente em todo o livro.  No caso da segunda cena,  trata-se do  contraste também presente entre a apresentação ampla e equilibrada que o narrador faz da  Fazenda das Palmas e a continuação do capítulo, que traz um diálogo entre um jovem escravo  descrito como rude e boçal, Monjolo, e um cavaleiro “embuçado” que trama uma emboscada  para o   fazendeiro.   Nota-se   que,   nos   dois   casos,   a   personagem   que dá título   ao   capítulo   representa uma realidade que destoa completamente do tom e do tema da abertura de ambos.  A sensação provocada no leitor pela escolha do escritor é a de um ruído que quebra uma harmonia esperada. Isso porque o título do capítulo indica importância e centralidade, e o que  vemos, nos dois casos, são personagens marginais à cena narrada e que trazem para dentro  dela uma violência que quebra uma harmonia almejada pelo narrador. Esse descompasso pode  passar despercebido   ao   leitor,   que   também é posto em  situação  ambígua e   segue  acompanhando o enredo, apenas pressentindo ruídos que não se encaixam na linha principal  do romance. O interessante é que isto é um dos temas do livro, e o fato de que este tema – a  dissimulação   de   uma   realidade   violenta   –   concretize-se   também   na   recepção do livro, demonstra, a meu ver, um engenho literário do escritor.

Um bom exemplo da diferença de tratamento dado, por parte do narrador, à família de  fazendeiros e aos homens pobres é o capítulo “Pousada”, no qual o narrador descreve a venda  de Chico Tinguá, amigo de Jão Fera. A venda é um estabelecimento muito importante na  sociedade brasileira do século XIX, principalmente antes da construção das estradas de ferro,  pois proporcionava pouso e alimentação aos tropeiros, responsáveis pela rede de troca de mercadorias, inclusive pelo escoamento do café para os portos. Além disso, é o lugar de  encontro   que   está   fora   dos   domínios   do   poder   senhorial,   e   por   isso   considerado   pelos  fazendeiros como lugar perigoso, onde, por exemplo, os escravos podiam negociar objetos  roubados de seus senhores. O vendeiro tem papel especial na sociedade rural por ser o  “único   agente   ocupado   em   atividades   comerciais   e   ao   mesmo   tempo   inserido   na   vida  comunitária.

No capítulo em questão, o narrador descreve com minúcia o ambiente da venda de  forma   muito   distanciada   e   preconceituosa,   chamando   a   atenção   para   a   modorra   de   seus  proprietários. O descompasso entre trabalho efetivo e desprestígio deste trabalho aos olhos do  narrador faz com essa cena demonstre bem a ética da desvalorização do trabalho que alicerça  o romance.

O   vendeiro   é   apresentado   cochilando   sobre   o   balcão:   “ainda   moço   e   robusto,  derramava-se,   não   obstante,   no   físico   desse   homem   certo   ar   de   indolência,   que   nesse  momento   mais   se   carregava   com   a   sonolenta   expressão   do   rosto   seco,   pálido,   baço,   e  levemente   sombreado   por   alguns   raros   fios   de   barba”.  Sua   companheira,   Nhanica,  prostrada, observa a água fervente enquanto “a louça ainda suja do serviço da véspera” se acumula à sua frente:

 (...) alongava depois a vista pela porta afora até lá embaixo no  brejal,   onde   passava   o   rego   da   água,   e   media   a   distância   a  percorrer. Abria então um bocejo, espreguiçava o lombo estirando  os braços; e, quando parecia levantar-se para cuidar na lavagem  dos pratos, achatava-se ainda mais no chão, murmurando: - Tem tempo!

No desenrolar da cena, a pousada vai se enchendo com moradores locais e forasteiros  e   o   casal   de   vendeiros   serve   café   e   refeições   para   todos.   Mesmo   quando   vai   narrar   um  movimento   produtivo   de   Nhanica,   o   narrador   não   deixe   que   o   leitor   se   esqueça   de   sua presumida indolência: “Ergueu-se então a rapariga e  sem espreguiçar-se; tirou do trempe a  panela de feijão para deitar o boião d’água; e arranjando o saco, onde ainda estava o polme da  véspera, que servia para dous dias, correu a buscar água para lavar a louça”.

Em  Til, como em muitos romances regionalistas posteriores, a fala das personagens  traz a marca de exotismo e peculiaridade regional, principalmente nas cenas que tratam dos  homens   que   não   são   da   elite   –   livres   ou   escravos   –,   nem   fazem   parte   do   núcleo   de personagens protagonistas: Berta, Miguel e Jão Fera. Quando trata das personagens menos  importantes  que povoam  o romance,  o narrador usa uma  linguagem  direta  e  os diálogos  trazem termos regionais, como nos diálogos entre os frequentadores da venda, ou em algumas  cenas no terreiro da fazenda, onde se relacionam camaradas, mucamas, pajens, escravos do eito, escravos crioulos (nascidos no Brasil), escravos africanos e mulatos. O relacionamento  entre estas personagens do romance, entrevisto, principalmente, pelo diálogo que mantêm  entre si, esboça um “espírito rixoso”  e violento, que se desdobra em uma necessidade de encobrimento   das   motivações   das   ações,   o   que   torna   as   relações   interpessoais,   além   de  violentas, dissimuladas. A família de Berta, Miguel e Nhá Tudinha não é tratada da mesma  maneira preconceituosa pelo narrador, nem as relações interpessoais destas personagens são  mostradas como violentas.

Nestas cenas que tratam das personagens secundárias, o tom do narrador é direto e  homogêneo, pois o contraste e o hibridismo que embasam o romance são mantidos à parte  quando não há o confronto, na cena, das duas esferas polarizadas. O mesmo efeito existe,  também, na esfera da elite, quando o casal de fazendeiros é apresentado. No entanto, há cenas  em que as contradições são postas em presença, e nestas o contraste fica patente. Estas cenas  vinculam-se,   frequentemente,   às   quatro   personagens   jovens,   ou   aos   dois   pares:   Berta   e  Miguel,   moradores   dos   arredores,   e   Linda   e   Afonso,   habitantes   da   casa-grande.   O  relacionamento entre os dois casais representantes dos espaços polarizados é marcado por  grande tensão, causada, em grande parte, pela afinidade existente entre esta esfera do livro e o  enredo amoroso dos romances urbanos alencarinos. A impossibilidade da materialização de  um   enredo   sentimental   –   flertes,   paixões,   complicações   amorosas,   casamento   –,   que   é  esboçado, mas esvaziado, faz com que, nessas cenas, o tom do narrador fique instável e a sua  parcialidade apareça de forma mais clara.

Um aspecto que temos que sublinhar em Til é a importância da dimensão espacial no  romance. Já nos referimos anteriormente à hierarquização do espaço que o livro compartilha  com O Guarani, hierarquização que é paralela à hierarquia social. Em outras palavras, cada  espaço do romance vincula-se a determinadas personagens. Deste modo, os dois polos em  confronto   de   que   temos   tratado,   tão   essencial   na   obra,   são,   também,   dois   espaços   em  confronto. Um deles é a casa-grande, espaço central, lugar da riqueza e do poder. O outro  polo, periférico – que na verdade é tudo que não é a casa-grande –, espraia-se do terreiro da  casa-grande até a floresta virgem, mas é muito mais marcado na região dos arredores, locais  fora dos domínios da fazenda.

Há um capítulo, no primeiro volume, que exemplifica bem o que estamos tentando  apontar – a tensão que se forma quando aspectos diferentes são postos lado a lado. No caso,  não se trata de uma cena violenta, ao contrário. É justamente a sua vocação para o idílio que  faz com que,   na impossibilidade   de   sua   configuração,   sobressaia   a   tensão.   Na   cena   em  questão, as quatro personagens jovens estão em um lugar que – segundo a lógica simbólica  dos lugares que funciona no livro – simboliza, por um lado, a intersecção dos dois mundos, o  da fazenda e o dos arredores – uma vez que é um pedaço periférico da fazenda que se limita com a floresta e local habitual de encontro dos quatro amigos –, e por outro, a ilusão bucólica e idílica que une, em alguns momentos do enredo, o narrador e os quatro jovens, e que, como  veremos, não se sustenta, no ambiente social da fazenda."  

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Fonte:
Paula Maciel Barbosa: "O idílio degradado:  um estudo do romance Til, de José de Alencar". (Tese   apresentada   ao   Programa   de   Pós-Graduação  em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,  Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,   para   a   obtenção   do   título   de   Doutor   em  Letras -  Orientador: Prof. Dr. José Antonio Pasta Jr.). Universidade de São Paulo, 2012.

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