16/10/2013

Senhora, de José de Alencar

 Jose de Alencar - Senhora - Iba Mendes
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O processo narrativo folhetinesco e o romance Senhora 
  
A produção do romance-folhetim no Brasil  se  inicia  sob a  influência francesa.  As personagens dessas histórias seguiam uma padronização, para  Ribeiro (1996) ― “os personagens da  narrativa  folhetinesca  são conduzidos de  acordo com a  vontade  do escritor (...), obedecendo   exigência de provocar o máximo de interesse” aos leitores, além de  apresentar personagens que  ― “não têm  um caráter ligado às  necessidades pessoais interiores” e o escritor não apresenta a análise psicológica dos personagens. 

O romance-folhetim, segundo Ribeiro (1996, p.30), ao citar Régis Méssac, seria  um ―melodrama  narrado, por isso se  faz  necessário abordar as personagens e  alguns  aspectos presentes nos dois gêneros.  

O melodrama,  como peça  teatral,  é  composto por quatro personagens  fundamentais,

que são geralmente um  homem  honesto protetor  dos  inocentes;  uma mulher  virtuosa,  porém  desafortunada;  um  traidor  que tem  muitos  vícios e um homem tolo ou engraçado que provoca o riso em meio às  lágrimas  copiosas que surgem  durante a peça. A  essência da trama  desenvolve-se  em  torno da luta entre o fraco e o forte. O  traidor  persegue a mulher virtuosa, conduzindo-a ao máximo de sofrimento.  (RIBEIRO, 1996, p. 31)

Alguns dos personagens  do melodrama estão presentes no romance  Senhora: ― “uma mulher virtuosa, por m desafortunada”: Aurélia  não mais desafortunada, mas  virtuosa, pois deseja que  Seixas se  redima  por tê-la trocado por dinheiro; ― “traidor”: Seixas trocou um dote de cinquenta conto de réis por um maior; ― “um homem tolo ou  engraçado”: Lemos seria  esse homem que  faz  Aurélia  rir; e, apesar de  o ― “homem  honesto” não existir, Alencar cria  a personagem  Lemos, indicando  essa  característica,  pois, ao mesmo tempo em que Lemos ajuda Aurélia está, evidentemente, interessado na  vida confortável que ele pode ter com o dinheiro dela.

As personagens do teatro se  revelam aos poucos como nesse romance.  Além  disso, é por meio da descrição de suas ações que conhecemos seus caracteres.  A descrição tem grande importância na narrativa do romance Senhora. Além de  trazer a  visualização da  cena, como no teatro, Genette  (2008, p.274)  apresenta outra  característica que   ―explicativa e simbólica‖ e justifica ―a psicologia‖ das personagens.

Percebemos  no romance  de  Alencar que  as descrições  das personagens  estabelecem  caracterizações de caráter, ou seja, traços psicológicos.

O narrador descreve a casa de Fernando para contrastar com a vida de aparências  que  ele levava, ― “era  o frisante contraste que  faziam com pobreza  carranca  dos dois aposentos certos objetos, aí colocados, e de uso do morador” (ALENCAR, 2009, p.35).

  As descrições apresentavam o contraste de pobreza: ― “papel de parede de branco passara  a  amarelo”, ― “das velhas cadeiras de  jacarandá”, ― “ar de  velhice  dos móveis”,  ― “velho sofá  e  da  riqueza: ―casaca  preta”, ― “chique”, ― “finíssimo chapéu”, ― “de  Paris”, ― “charutos de Havana”, ― “almofada de cetim azul bordada a froco e ouro”. Assim o perfil  psicológico de Seixas poderia ser traçado, não se preocupava com a família apenas com seu luxo pessoal.

O romance-folhetim explorou a  ideia  do ― “maniqueísmo inato”, segundo  Jean  Tortel, pois ― tudo funda-se sobre o algarismo dois”. O gênero folhetinesco está ligado a 

(...) à temática uma contraposição entre o bem e mal, a felicidade e a  desgraça,  o  herói  e a sociedade,  a  alta  sociedade  e  a sociedade  dos  bandidos organizados, a  fortuna e a miséria, a  castidade  e  a  devassidão, os rostos angélicos e as carrancas horríveis, a polícia e a  sociedade secreta;  até mesmo a topografia não escapa disto, pois as  aventuras geralmente acontecem em Paris ou em Londres.(  IBEIRO,  1996, p.37)

A produção folhetinesca  de  Alencar apresenta esse maniqueísmo, inclusive na  topografia: em Cinco minutos, há o amor possível versus o impossível, o ambiente é a  cidade do Rio de Janeiro, em O Guarani além do mesmo tema ― “amor”, temos o branco, como o ― “invasor”, o mal e a personagem  do índio representa o herói, o bem; o espaço é  o campo. O espaço usado por Alencar demonstra  o maniqueísmo, tanto nos folhetins  como nos romances, a cidade será o lugar em que o homem tem que vencer a si  próprio,  pois em sua natureza é boa, mas ao ser influenciado pelo dinheiro, muda seu caráter.

Tortel em seu ensaio, segundo Ribeiro (1996) caracteriza o ―herói folhetinesco  como uma ―personagem com traços exagerados e simplificados ao extremo, para ele,  há duas fases fixas para o papel do herói:

(...)  a primeira liga-se  ao  período romântico em  que a narrativa  popular  é nutrida por  mitos e possui  o tipo de herói  exagerado que  indicamos anteriormente;  a segunda fase seria  aquela após  o  romantismo em  que o personagem  central  perde a  onipotência e  aparece buscando conquistar uma mulher ou uma boa posição social.  (RIBEIRO, 1996, p.38) 

Conforme aponta Meyer (1996, p.100), o gosto melodramático por  essas histórias atrai o público que as acompanha como se participassem delas.  

As personagens, por meio de suas ações, levarão o leitor a se envolver na intriga  da  história, para  Ribeiro  (1996) essa intriga    ― “a  história torna-se  quase  interminável,  provocando um interesse  decrescente, um desfecho sem muita importância”. Assim,  como no teatro a ação da personagem será a responsável pelo desenrolar da intriga.

Nos folhetins, as personagens se mostravam semelhantes a pessoas da realidade.  Segundo Arnt (2001, p.97), ― “Balzac  e  Dickens  foram grandes pintores da  sociedade  francesa e inglesa do século XIX”; no Brasil o folhetim  Memórias de um sargento de  milícias, de Manuel Antonio de Almeida ― “traça o quadro da sociedade em formação no  princípio do século XIX  no Rio  de  Janeiro: artesãos, pequenos funcionários, ciganos,  portugueses e  brasileiros pobres”, para  ele esse romance  ― “escapa  dos padrões  folhetinescos importados”. Para  nós, é  o  que  acontece  no romance  Senhora, que  começa a se distanciar do romance romântico.   

Como neste capítulo, nosso corpus Senhora, é demonstrativo, acentuando dessas características,  tanto do  processo narrativo quanto das personagens, expomos  uma  síntese do romance.  

Na primeira parte, O Preço,  Aurélia Camargo surge na sociedade fluminense e  para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. Nesta parte, Aurélia pede  ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas o dote de cem contos de réis ou mais, para  que ele se case com ela. O intrigante é que Seixas não poderia saber quem era a noiva, somente  no casamento. Como Seixas se  encontrava  em  dificuldades  financeira, pois gastara o espólio deixado pelo pai e precisava devolvê-lo à família, e sua irmã precisava  do dinheiro para a compra do enxoval. Seixas aceita a proposta, mas a surpresa acontece  na noite de núpcias, em que Aurélia acusa-o de mercenário e venal, enquanto mostra o recibo de um adiantamento do dote assinado por ele.

A Quitação é a parte em que o narrador volta ao passado das personagens para  explicar o que levou Aurélia a comprar o marido. Vemos o amor que havia entre os dois e como a protagonista se sentiu ferida ao ser trocada por outra mulher por causa do dote. Fernando aparece  como o homem que  gosta da  ― “vida boa”  da  sociedade  burguesa  fluminense.

Na  terceira  parte, Posse,  o casal está no quarto. Fica  explícita  a  ideia  de  que  Aurélia, de maneira cínica, mostra para Fernando que ele se vendera. Esse período do romance, o casal vive de maneira hipócrita, pois fingem que têm um casamento feliz,  mas em casa eles optam pelo silêncio e frieza conjugal.

A quarta e  última parte, Resgate, é o momento em que a intriga se desenrola.  Aurélia torna-se mais ferina, mordaz com desejo de vingança, mas com doses de doçura  e  ainda  demonstra  amor por Seixas. Fernando  mostra-se  indiferente  à  riqueza  de  Aurélia. Ele  não se  importa  mais com a  elegância da  sociedade, apesar  de  continuar  sendo  elegante. Diferente de  antes do casamento, agora  ela  preocupa-se  com seu  trabalho na repartição, mostrando-se um homem honesto e trabalhador. 

O final como o título indica, Fernando tenta negociar o seu resgate, após um ano trabalhando consegue devolver o dinheiro que pegara como adiantamento, vinte contos  de réis, e o cheque de oitenta contos de réis que nem usara. No momento previsto pela separação, Aurélia mostra seu testamento, em que ele seria o único herdeiro, isso para  dizer que ele era seu grande amor e a riqueza não mais a satisfazia. Ele ― “com os olhos  rasos de água”, aceita seu amor.

Alencar,  no romance  Senhora, apresenta  traços folhetinescos, mas   também começa a se afastar desses padrões estruturais da forma.   Uma  dessas mudanças é  a  protagonista  Aurélia  que  é  descrita de  maneira  figurada:

A ferocidade  da mulher  enganada, sanha da leoa ferida, (...)  exímia  cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. (...) lábios de  Aurélia, possantes de vigor e harmonia, (...)  frêmito, que lembrava o  silvo da serpente, (...)  braço mimoso e torneado (ALENCAR, 2009,  p.24). (Grifos nossos) 

A personagem Aurélia possui um lado sublime, mas também é feroz como uma leoa ou uma serpente, por saber como envolver  as pessoas  em sua graça. No entanto,  anjo e demônio parecem conviver na personalidade dessa personagem: ― “anjo despira as asas celestes, e  vestira  o fulgor  lucífero”  (p. ALENCAR, 2009, p. 190).  O narrador  indica  em algumas passagens o caráter excêntrico de  Aurélia,  mostrando-nos  os dois  lados da  personagem:  ― “D. Firmina, apesar de  habituada  desde muito ao caráter excêntrico de Aurélia”(p.24); ― “meu gênio excêntrico”  (p.149-50) confirmando que as  descrições apontam  para  uma personagem  com traços duplos.    Isso  nos direciona às personagens duais da sociedade capitalista.

A destruição é apresentada sobre o fundo do centro capitalista de um  idealismo ou de um  romantismo provincianos  dos personagens, que  não são de modo algum idealizados; também o mundo capitalista não  é idealizado: revela-se a sua inumanidade, a destruição no seu interior de todos os princípios  morais (...)    O  homem  positivo do mundo  idílico torna-se  cômico, lamentável  e supérfluo, ou  ele  perece, ou  transforma-se num abutre egoísta. (BAKHTIN, 1993, p. 341)

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Fonte:
Catarina Reis Matos da Cruz: “Senhora, de José de Alencar: do folhetim ao romance”. (Dissertação apresentada  à  Banca  Examinadora da  Pontifícia Universidade  Católica de  São  Paulo, como exigência  parcial  para obtenção  do título de  Mestre  em  Literatura e Crítica  Literária sob a  orientação  da  Profª. Drª. Maria José G.  Paulo). São Paulo, 2010

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