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O processo narrativo folhetinesco e o romance Senhora
A produção do romance-folhetim no Brasil se
inicia sob a influência francesa. As personagens dessas histórias seguiam uma
padronização, para Ribeiro (1996) ― “os personagens
da narrativa folhetinesca
são conduzidos de acordo com a vontade
do escritor (...), obedecendo
exigência de provocar o máximo de interesse” aos leitores, além de apresentar personagens que ― “não têm
um caráter ligado às necessidades
pessoais interiores” e o escritor não apresenta a análise psicológica dos
personagens.
O romance-folhetim, segundo Ribeiro (1996, p.30), ao citar Régis
Méssac, seria um ―melodrama narrado, por isso se faz
necessário abordar as personagens e
alguns aspectos presentes nos
dois gêneros.
O melodrama, como peça teatral,
é composto por quatro personagens
fundamentais,
que são geralmente
um homem
honesto protetor dos inocentes;
uma mulher virtuosa, porém
desafortunada; um traidor
que tem muitos vícios e um homem tolo ou engraçado que provoca
o riso em meio às lágrimas copiosas que surgem durante a peça. A essência da trama desenvolve-se
em torno da luta entre o fraco e
o forte. O traidor persegue a mulher virtuosa, conduzindo-a ao
máximo de sofrimento. (RIBEIRO, 1996, p. 31)
Alguns dos personagens do
melodrama estão presentes no romance Senhora:
― “uma mulher virtuosa, por m desafortunada”: Aurélia não mais desafortunada, mas virtuosa, pois deseja que Seixas se
redima por tê-la trocado por
dinheiro; ― “traidor”: Seixas trocou um dote de cinquenta conto de réis por um
maior; ― “um homem tolo ou engraçado”:
Lemos seria esse homem que faz
Aurélia rir; e, apesar de o ― “homem honesto” não existir, Alencar cria a personagem
Lemos, indicando essa característica, pois, ao mesmo tempo em que Lemos ajuda
Aurélia está, evidentemente, interessado na vida confortável que ele pode ter com o
dinheiro dela.
As personagens do teatro se
revelam aos poucos como nesse romance.
Além disso, é por meio da
descrição de suas ações que conhecemos seus caracteres. A descrição tem grande importância na narrativa
do romance Senhora. Além de trazer
a visualização da cena, como no teatro, Genette (2008, p.274)
apresenta outra característica
que ―explicativa e simbólica‖ e
justifica ―a psicologia‖ das personagens.
Percebemos no romance de
Alencar que as descrições das personagens estabelecem caracterizações de caráter, ou seja, traços
psicológicos.
O narrador descreve a casa de Fernando para contrastar com a vida
de aparências que ele levava, ― “era o frisante contraste que faziam com pobreza carranca
dos dois aposentos certos objetos, aí colocados, e de uso do morador” (ALENCAR,
2009, p.35).
As descrições apresentavam o contraste de
pobreza: ― “papel de parede de branco passara
a amarelo”, ― “das velhas
cadeiras de jacarandá”, ― “ar de velhice
dos móveis”, ― “velho sofá e
da riqueza: ―casaca preta”, ― “chique”, ― “finíssimo chapéu”, ― “de Paris”, ― “charutos de Havana”, ― “almofada
de cetim azul bordada a froco e ouro”. Assim o perfil psicológico de Seixas poderia ser traçado, não
se preocupava com a família apenas com seu luxo pessoal.
O romance-folhetim explorou a
ideia do ― “maniqueísmo inato”,
segundo Jean Tortel, pois ― tudo funda-se sobre o algarismo
dois”. O gênero folhetinesco está ligado a
(...) à temática uma
contraposição entre o bem e mal, a felicidade e a desgraça,
o herói e a sociedade, a alta sociedade
e a sociedade dos bandidos
organizados, a fortuna e a miséria,
a castidade e a devassidão, os rostos angélicos e as carrancas
horríveis, a polícia e a sociedade
secreta; até mesmo a topografia não
escapa disto, pois as aventuras
geralmente acontecem em Paris ou em Londres.( IBEIRO, 1996, p.37)
A produção folhetinesca
de Alencar apresenta esse
maniqueísmo, inclusive na topografia: em
Cinco minutos, há o amor possível versus o impossível, o ambiente
é a cidade do Rio de Janeiro, em O
Guarani além do mesmo tema ― “amor”, temos o branco, como o ― “invasor”, o
mal e a personagem do índio representa o
herói, o bem; o espaço é o campo. O
espaço usado por Alencar demonstra o
maniqueísmo, tanto nos folhetins como
nos romances, a cidade será o lugar em que o homem tem que vencer a si próprio, pois em sua natureza é boa, mas ao ser
influenciado pelo dinheiro, muda seu caráter.
Tortel em seu ensaio, segundo Ribeiro (1996) caracteriza o ―herói
folhetinesco como uma ―personagem com
traços exagerados e simplificados ao extremo, para ele, há duas fases fixas para o papel do herói:
(...) a primeira liga-se ao período romântico em que a narrativa popular
é nutrida por mitos e possui o tipo de herói exagerado que indicamos anteriormente; a segunda fase seria aquela após
o romantismo em que o personagem central
perde a onipotência e aparece buscando conquistar uma mulher ou uma
boa posição social. (RIBEIRO, 1996,
p.38)
Conforme aponta Meyer (1996, p.100), o gosto melodramático
por essas histórias atrai o público que
as acompanha como se participassem delas.
As personagens, por meio de suas ações, levarão o leitor a se
envolver na intriga da história, para Ribeiro
(1996) essa intriga ― “a história torna-se quase
interminável, provocando um
interesse decrescente, um desfecho sem
muita importância”. Assim, como no
teatro a ação da personagem será a responsável pelo desenrolar da intriga.
Nos folhetins, as personagens se mostravam semelhantes a pessoas
da realidade. Segundo Arnt (2001, p.97),
― “Balzac e Dickens
foram grandes pintores da
sociedade francesa e inglesa do
século XIX”; no Brasil o folhetim Memórias
de um sargento de milícias, de
Manuel Antonio de Almeida ― “traça o quadro da sociedade em formação no princípio do século XIX no Rio
de Janeiro: artesãos, pequenos
funcionários, ciganos, portugueses
e brasileiros pobres”, para ele esse romance ― “escapa
dos padrões folhetinescos
importados”. Para nós, é o
que acontece no romance
Senhora, que começa a se
distanciar do romance romântico.
Como neste capítulo, nosso corpus Senhora, é demonstrativo,
acentuando dessas características, tanto
do processo narrativo quanto das
personagens, expomos uma síntese do romance.
Na primeira parte, O Preço,
Aurélia Camargo surge na sociedade fluminense e para o leitor: jovem de 18 anos, linda e
debutando nos bailes. Nesta parte, Aurélia pede ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas o
dote de cem contos de réis ou mais, para que ele se case com ela. O intrigante é que
Seixas não poderia saber quem era a noiva, somente no casamento. Como Seixas se encontrava
em dificuldades financeira, pois gastara o espólio deixado
pelo pai e precisava devolvê-lo à família, e sua irmã precisava do dinheiro para a compra do enxoval. Seixas
aceita a proposta, mas a surpresa acontece na noite de núpcias, em que Aurélia acusa-o de
mercenário e venal, enquanto mostra o recibo de um adiantamento do dote
assinado por ele.
A Quitação é a parte em que o narrador volta ao passado das
personagens para explicar o que levou
Aurélia a comprar o marido. Vemos o amor que havia entre os dois e como a
protagonista se sentiu ferida ao ser trocada por outra mulher por causa do
dote. Fernando aparece como o homem
que gosta da ― “vida boa”
da sociedade burguesa fluminense.
Na terceira parte, Posse, o casal está no quarto. Fica explícita
a ideia de que
Aurélia, de maneira cínica, mostra para
Fernando que ele se vendera. Esse período do romance, o casal vive de maneira
hipócrita, pois fingem que têm um casamento feliz, mas em casa eles optam pelo silêncio e frieza
conjugal.
A quarta e última parte,
Resgate, é o momento em que a intriga se desenrola. Aurélia torna-se mais ferina, mordaz com
desejo de vingança, mas com doses de doçura e
ainda demonstra amor por Seixas. Fernando mostra-se
indiferente à riqueza
de Aurélia. Ele não se
importa mais com a elegância da
sociedade, apesar de continuar sendo
elegante. Diferente de antes do
casamento, agora ela preocupa-se
com seu trabalho na repartição,
mostrando-se um homem honesto e trabalhador.
O final como o título indica, Fernando tenta negociar o seu
resgate, após um ano trabalhando consegue devolver o dinheiro que pegara como
adiantamento, vinte contos de réis, e o
cheque de oitenta contos de réis que nem usara. No momento previsto pela separação,
Aurélia mostra seu testamento, em que ele seria o único herdeiro, isso para dizer que ele era seu grande amor e a riqueza
não mais a satisfazia. Ele ― “com os olhos rasos de água”, aceita seu amor.
Alencar, no romance Senhora, apresenta traços folhetinescos, mas também começa a se afastar desses padrões
estruturais da forma. Uma
dessas mudanças é a protagonista
Aurélia que é
descrita de maneira figurada:
A ferocidade da
mulher enganada, sanha da leoa ferida,
(...) exímia cantora, uma voz mais bramida, um gesto
mais sublime. (...) lábios de Aurélia,
possantes de vigor e harmonia, (...)
frêmito, que lembrava o silvo
da serpente, (...) braço mimoso e
torneado (ALENCAR, 2009, p.24).
(Grifos nossos)
A personagem Aurélia possui um lado sublime, mas também é feroz
como uma leoa ou uma serpente, por saber como envolver as pessoas
em sua graça. No entanto, anjo e
demônio parecem conviver na personalidade dessa personagem: ― “anjo despira as asas
celestes, e vestira o fulgor
lucífero” (p. ALENCAR, 2009, p.
190). O narrador indica
em algumas passagens o caráter excêntrico de Aurélia,
mostrando-nos os dois lados da
personagem: ― “D. Firmina, apesar
de habituada desde muito ao caráter excêntrico de Aurélia”(p.24);
― “meu gênio excêntrico” (p.149-50)
confirmando que as descrições
apontam para uma personagem com traços duplos. Isso
nos direciona às personagens duais da sociedade capitalista.
A destruição é
apresentada sobre o fundo do centro capitalista de um idealismo ou de um romantismo provincianos dos personagens, que não são de modo algum idealizados; também o
mundo capitalista não é idealizado:
revela-se a sua inumanidade, a destruição no seu interior de todos os
princípios morais (...) O
homem positivo do mundo idílico torna-se cômico, lamentável e supérfluo, ou ele
perece, ou transforma-se num
abutre egoísta. (BAKHTIN, 1993, p. 341)
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Fonte:
Catarina Reis Matos da Cruz: “Senhora, de José de Alencar: do folhetim ao
romance”. (Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em
Literatura e Crítica Literária
sob a orientação da
Profª. Drª. Maria José G. Paulo).
São Paulo, 2010
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