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Aluísio Azevedo carnavaliza o romance de tese em Livro de uma sogra
Tal é, na sua idéia geral, este
livro, freqüentemente paradoxal e contraditório, por vezes exato e verdadeiro, desigual e difuso no
estilo e na contextura, mal inspirado na ação, que é de baixa comédia, ousado, embora sem nenhuma
originalidade nas idéias, imoral em suma,
mas sugestivo e, no meio de nossa atual produção, distinto.
O romance Livro de uma sogra, de
1895, é a última obra romanesca de Aluísio
Azevedo.
Essa obra tem suscitado
estranheza entre os críticos, sendo difícil classificá-la tendo em vista os quadros
estéticos disponíveis. Os críticos se dividem
em relação a essa obra: alguns a percebem como romance de tese, inserindo-a no universo do real - naturalismo
e outros a interpretam como distante do
universo zolista, como é o caso de Alcides Maya e de Josué Montello:
Mas, a partir daquele esboço, e
não citando os livros em que, por desfastio, o escritor se colocou entre Walter Scott e Ponson, todos os
romances de Aluísio, com excepção do derradeiro,
o Livro de uma sogra, têm a chancela do zolismo.”
“Enquanto escreveu romances,
Aluísio, que se conservava solteiro, foi um preocupado com o problema do casamento. E encheu com essa
preocupação grande parte de sua obra de romancista.
De Uma lágrima de mulher, livro romântico, ao Livro de uma sogra, romance de tese, debateu a questão ora definindo os
males de situações de família ou de preconceitos
sociais burgueses, ora estabelecendo soluções de psicólogo atilado, como no último e mais estranho de seus romances, onde
procurou falar com ares de experiente através
de supostos pensamentos e recordações de uma sogra.
O romance se constitui a partir
de um discurso em primeira pessoa, feminino,
de uma sogra, Olímpia, que sem conhecimentos filosóficos, científicos ou acadêmicos, escreve uma tese sobre o
casamento, para ser lida e seguida por sua
filha e genro. A tese, na realidade, é um receituário que define uma economia das relações conjugais no intuito de preservar
o casamento do tédio. Os cônjuges devem
seguir a monogamia, mas viverem de tempos em tempos separados a fim de preservarem o interesse mútuo que com a
convivência diária fenece. De início podemos verificar na obra uma crítica ao
discurso de tese cientificista tão apregoado
pelo naturalismo, pois já não temos mais o narrador observador cientista ou a figura típica do médico, munido
de arsenal científico, afirmando e estabelecendo
verdades. A personagem, Olímpia, partindo da observação social e da própria vivência conjugal, passa a
desenvolver sua tese, seu programa, sua receita
do bem viver a dois, aplicando-os em suas duas cobaias: sua filha e seu genro. Coloca em prática o que pensa ser um
casamento perfeito: os cônjuges não devem
viver sempre sobre o mesmo teto. O amor sexual definha, porque sobrevém o tédio. Embora Olímpia não tenha uma
teoria de background, há a Bíblia,
especialmente o Levítico, em que se apregoa o afastamento do homem em relação à mulher imunda (estado menstrual), à
gestante e à parturiente, a que Olímpia
se reporta constantemente para dar sustentação à sua tese prática de distanciamento temporário dos cônjuges. Há
também a figura do médico, na personagem
Cézar, que a acompanha e a auxilia. Aqui, porém, o saber médico é um acessório, e não parte essencial, como
ocorre em Girândola de amores, A mortalha
de Alzira e O homem, romances do mesmo autor, por exemplo. Aluísio Azevedo está afastado da escrita naturalista
em que a literatura passa pela legitimação
cientificista. Em Livro de uma sogra, o tratado de Olímpia é apenas acompanhado pelo discurso médico que o
ratifica.
Em Livro de uma sogra, temos um
estudo filosófico satírico sobre os males e as virtudes do casamento assemelhado, em
parte, à obra Fisiologia do casamento de
Honoré de Balzac.
Nessa obra, o escritor francês introduz personagens, fábulas, peripécias e toda sorte
de gêneros de discurso (cartas, anedotas,
máximas, parábolas, narrativas secundárias, intertextualidade literária etc) no sentido de dar sustentação à sua tese
que consiste também em um tipo de receituário
para o sucesso do matrimônio. Tal qual a obra de Aluísio Azevedo, o discurso predominante é o analítico satírico
que vai desvendando os vícios, a falsa moral,
as hipocrisias, os jogos de interesse que se manifestam nas relações entre os cônjuges, apresentando uma radiografia bem
humorada e crítica da instituição matrimonial.
Ambas as narrativas, elaboram um receituário pormenorizado e detalhado de
atitudes maritais que podem contribuir para a felicidade conjugal.
Entretanto, esse receituário se
torna risível em virtude de que se mostra sempre limitado em relação às possibilidades sempre
novas e variadas de infelicidade, revelando
a complexidade e a incompletude das relações sociais. Nesse sentido, essas obras apresentam uma atitude crítica em
relação aos discursos monológicos,
elaborados em forma de tratados, respaldados em análise científica, que visam descrever o objeto fielmente,
levantar os problemas e apontar soluções definitivas. Os pseudotratados sobre o
casamento tanto em Honoré de Balzac quanto
em Aluísio Azevedo não logram trazer a felicidade conjugal a que se propunham, revelando-se discursos limitados.
Uma série de situações comuns são
tratadas de modo jocoso nas obras tanto
do escritor francês quanto do brasileiro, tais como: a lua-de-mel se transformando em lua-de-fel e em armadilha
para o casal (LUS, p.126-131; em Balzac,
Meditação VII, Da lua-de-mel) ; o romantismo das mulheres que idealizam a vida marital e que não encontra respaldo na
realidade; o uso do mesmo quarto de
dormir como proibitivo porque banaliza o desejo e revela o grotesco corporal (“O olfato tem suas idiossincrasias, tem as
suas antipatias e as suas inclinações (...).
Nos esponsais, os direitos desse sentido (...), são perfeitamente ludibriados pela perfumaria de toucador, sem calcularem os
noivos o perigo que com isso corre a sua
futura felicidade conjugal. (...) Já não escondem absolutamente um para o outro os seus bocejos e as suas
repulsivas expansões corporais” LUS, p. 80-81;
em Balzac, Meditação XVII, Teoria do leito); a análise satírica da peripécia usada para avivar o amor (“Ah! – não se
sustenta o amor sem o elemento dramático,
e não há drama sem lágrimas”, LUS, p.177; em Balzac, Meditação XXII, Das peripécias); os enfeites de toda
sorte de maquiagem e de toalete e o seu
desmascaramento no casamento (“Quando um moço, ou uma moça, quer casar, qual é o seu primeiro cuidado? –
Enfeitar-se; ou melhor – disfarçar-se.” LUS,
p.77; em Balzac, p.400); a prostituição dentro do casamento (“Oh! quanto me prostituí nos braços de meu marido!”, LUS,
p.27; em Balzac, V- Do orçamento, p.421);
a dessacralização do amor pelo tédio (“Não há estômago que resista a faisão-dourado todos os dias; o melhor
acepipe, se não for discretamente servido, enfastiará no fim de algum tempo. O
mesmo acontece no matrimônio: os cônjuges acabam invariavelmente por se enfararem um do
outro, não pelo uso que fazem do seu
amor, mas pelo abuso mútuo da convivência e da ternura.” LUS, p.72; em Balzac, “O casamento deve incessantemente
combater um monstro que devora tudo: o
hábito” p.291); a tese do marido medíocre que se ajusta mais à felicidade conjugal porque não é desviado
pela consagração e incenso público (“Até a sua própria mediocridade de inteligência se me
afigurava o belo complemento da sua perfeição
de animal humano: - o talento elevado a certo grau é sempre, no amor, uma anormalidade perigosa”, LUS, p.103; em
Balzac, Introdução, p. 243) e, finalmente,
a conclusão de que o sentimento amoroso é uma construção social, engenhosa, caprichosa, de mentes intoxicadas
de romantismo, tendo um forte componente
de classe social, vinculando-se à elite, e não um dado natural que possa ser desposado por todos os segmentos
sociais (“Olhai o casamento entre a gente
do campo. Por que razão o camponês é mais feliz no casamento do que a gente civilizada da cidade? É que lá na roça
quando o João da Horta vai casar com a
Joana dos Porcos já lhe conhece a medida justa da cintura, e já lhe viu os pés descalços, as unhas sujas e a cabeça
despenteada (...) LUS, p. 83; em Balzac,
p.257; 385; 501). Outro dado que aproxima as narrativas é a orientação do discurso para a classe social
privilegiada que pode lançar mão de vários dispositivos materiais para incrementar a vida
conjugal.
Como último romance de Aluísio
Azevedo, essa obra nos parece uma paródia
dos romances de tese naturalistas. O escritor parece se divertir em criar Olímpia, personagem autoritária, voz feminina
em uma sociedade patriarcal, cuja tese e
programa conjugal se embasa no discurso religioso e no empírico privado (a vida matrimonial de Olímpia). Longe estamos
do narrador cientista, masculino, observando
a mulher histérica e a definindo de modo monológico, utilizando-se de argumentação científica. O discurso de Olímpia
não se esconde por trás de teses científicas,
antes não oculta as suas limitações; incongruências; insanidade; autoritarismo e, também, boa vontade.
Olímpia justifica o seu
procedimento, distanciando os cônjuges temporariamente,
asseverando que o seu objetivo primordial é preservar a felicidade conjugal,
afastando o tédio. Vira uma idéia fixa para Olímpia. É a ditadura da felicidade que ela impõe. Olímpia
é autoritária. A filha e o genro se submetem
ao tratamento, aquela por ser dominada pela mãe e este por ser pobre. A personagem escolhe as suas cobaias a fim de
poder validar a sua tese. O processo de
escolha do genro-cobaia é bastante cômico e problematizador de várias questões sociais. Os oficiais da
marinha são os primeiros pretendentes porque,
em virtude da profissão, se ausentam do lar e isso é ponto positivo para que o tédio não se fortaleça. Porém, não há
sucesso nessa empreitada porque Palmira,
a futura noiva, não demonstrou interesse por nenhum pretendente. Olímpia refuta os políticos renomados e os
cientistas ilustres porque são vaidosos e
vencedores e se sentiriam superiores a sua filha e, com certeza, não seriam tão
facilmente manipulados por Olímpia.
Ocorre a retomada da tese do marido vulgar, ordinário, já exposta em Condessa Vésper,
quando Ambrosina não desejava o “herói
da moda” para ser seu cônjuge. Em Livro de uma sogra, entretanto, essa tese é a espinha mestre da obra; já no folhetim
anterior é uma tese lateral.
O experimento de Olímpia requer
uma “cobaia” que precisa ser alguém simplório,
de inteligência regular e, sobretudo, pobre. Opta, então, por um funcionário público, um amanuense de
Secretaria de Estado. O mocinho aqui, portanto,
tem que ser medíocre e nada extraordinário. Longe estamos do universo romântico em que o herói apresenta todos os
atributos de um verdadeiro Hércules. O
marido deve ser inferior à mulher. O único atributo positivo do noivo é sua beleza e higidez física, qualidades
fundamentais para satisfazer a amada sexualmente.
Olímpia, porém, transforma o genro em um negociante, já que, para ela, todos os comerciantes eram de
inteligência regular, semi-analfabetos e essas características tornariam esse tipo social
mais fácil de ser gerenciado. Nesse ponto,
há uma definição de um tipo social bastante recorrente na obra de Aluísio Azevedo.
O português pobre que se transforma em rico negociante, consagrando- se
socialmente como Comendador. O título é o seu objetivo último (“O mercador no Brasil, quando não sonha outras quimeras,
com uma nunca deixa de sonhar – é a
comenda. E, mal a suponha realizada, começa a sonhar com o título de barão, e depois com o de visconde ou conde” LUS, p.
145). A fala de Olímpia é longa e comporta uma crítica bem humorada e
contundente à atividade especulativa do comércio
que, segundo a personagem, nada produz, nada gera, mas apenas especula, sendo uma atividade desprezível (“O
indivíduo sem técnica ou habilitação
para produzir qualquer trabalho, o indivíduo intelectualmente nulo, pode abraçar, de um dia para outro, a carreira
comercial, e pode ser feliz” LUS, p.140).
O negociante português enriquece nessa prática especulativa, sem adquirir cultura e visão de mundo mais complexa
(“Não são raros os exemplos de negociantes
ricos, considerados e poderosos, absolutamente rasos de inteligência”.LUS, p.140). A única cultura que
adquire é a romântica açucarada e infantilizada
(“Todo homem de vida material detesta em questões de arte, o naturalismo e a verdade, encontre-os na
estatuária, na pintura, no romance ou no teatro, e adora o maravilhoso e o fantástico.
São como as crianças.” LUS, p.145).
Cria seus filhos uns “mimalhos”,
despreparados para o trabalho produtivo. Fá-los bacharéis e eis aí uma geração que se torna
improdutiva e incompetente, não raras
vezes, perdendo toda a fortuna herdada (“E o mimalho acabará fatalmente por apresentar ao mundo mais uma espécie
desses milhões de bacharéis inúteis, pretenciosos
e tristes, incapazes de obra mais significante.” LUS, p.148). A terceira geração vira mendiga, pois o referido
“mimalho” só dilapida a fortuna herdada
do Comendador (“Mantendo-se à custa da família ou da herança até a velhice, e só vivendo para desorganizar o meio
em que vegetam”. LUS, p.148). Olímpia,
servindo de porta-voz ao verdadeiro autor, apresenta um diagnóstico da família brasileira, atribuindo a decadência à
ignorância da base, do patriarca (“E eis
por que, para sintetizar a escala geral da família brasileira feita pelos portugueses, formei este axioma: Pais –
comendadores; filhos – bacharéis; netos –
mendigos.” LUS, p. 148). Essa síntese crítica sobre as relações familiares e a decadência das fortunas herdadas por filhos
perdulários, pode ser aplicada retrospectivamente,
iluminando várias personagens de sua produção literária anterior, como Amâncio de Casa de pensão,
Gabriel de Condessa Vésper e João Romão
de O cortiço, personagens que se inserem nessa tipologia levantada. A escolha de um comerciante para marido de
Palmira, filha de Olímpia, problematiza
também as relações de gênero à medida que o comerciante inculto, vindo de
extratos pobres da população e enriquecendo às custas de especulação, passa a ser manipulado pelo elemento feminino,
de extrato social alto cuja cultura ocidentalizada
e europeizada se impõe ao elemento masculino. Essa relação desigual de gênero é detalhadamente narrada e
ficcionalizada em O Cortiço a partir das
personagens João Romão e Zulmira. Aluísio Azevedo enfoca o discurso feminino urbano culto que se impõe em um meio
escravocrata patriarcal inculto. Esse
discurso, à primeira vista, pode parecer inverossímil, mas apresenta referencialidade social, atestada por José
Veríssimo em seu artigo sobre Livro de uma
Sogra.
À crítica ao negociante
especulativo, segue-se o elogio do trabalho, tema recorrente em Aluísio Azevedo, atendendo a
certo projeto ilustrado do escritor em fazer
da literatura um discurso emancipatório e crítico.
O discurso de Olímpia, ao tentar definir um bom marido para
sua filha, problematiza a mediocridade dos estratos médios do funcionalismo
público brasileiro; a decadência da família patriarcal; o setor comercial
português especulativo e o autoritarismo da classe dominante sobre os pobres, perfazendo-se
como um discurso sociológico-crítico. Leandro a tudo se submete por gostar de
Palmira, a filha de Olímpia, mas também por ser pobre e, a partir do casamento,
assumir uma boa posição material e social. O casamento de Leandro e Palmira é
dado sob duas perspectivas: pela ótica do amor e pela venal. Entretanto,
Aluísio Azevedo não destaca esta última, fazendo dela um fator degradante e
humilhante ao extremo para o noivo. O casamento pode se realizar, atendendo a
mais de um objetivo. Longe estamos das idealizações e abstrações românticas que
elevam o amor e desvalorizam o interesse material nos consórcios amorosos. Livro
de uma sogra funciona como contraponto ao livro Senhora6
de José de Alencar, em que a compra de um marido é
demonizada e deve ser purgada por sentimentos mais elevados no decorrer da
narrativa. Em Livro de uma sogra, a questão material é tratada sem
grandes dramatizações e é uma das causas ordinárias do casamento.
O material e o
sentimental convivem sem pejo e sem grandes dramas de consciência para as
personagens.
Outro argumento que sustenta a tese de Olímpia é a necessidade de
reprodução de seres humanos mais perfeitos. Para ela, o primeiro filho, fruto
do amor-paixão, é melhor gerado; já o nascimento do segundo, quando o casal já se
entedia do matrimônio, é um verdadeiro atentado à natureza. Olímpia dá
explicações não científicas para essa diferença de nascimento e, em prol da
preservação da melhor espécie, continua aplicando o seu receituário.
Instaura-se, aqui, claramente, um diálogo com as teses cientificistas,
manipulando-as pelo avesso e ridicularizando-as.
A tese também se reporta à Bíblia, sendo portanto validada
moral e eticamente. Não é somente de origem laica, como o discurso
cientificista naturalista. Esse background religioso provoca estranheza,
pois em vez de citações científicas, correntes na época, traz para o interior
do texto um referencial discursivo diverso.
Outro argumento usado
por Olímpia é a sua própria decepção amorosa e matrimonial. O casamento dela começou bem e
logo se transformou, pois os cônjuges se desiludiram um do outro. A prática
sexual, antes tão ambicionada, transformou-se em obrigação. Introduz-se aí
certa comicidade no ato sexual, retirando-o tanto da chave naturalista em que
imperam os instintos quanto da chave romântica em que ocorre a idealização.
Seguindo-se um certo projeto ilustrado do escritor, ataca-se
o romantismo, pois, apesar de Olímpia atribuir a dissolução do seu casamento
apenas ao tédio que naturalmente sobrevém à convivência ininterrupta, critica a
postura romântica ao afirmar que quando se casara, não se achava “infectada”
pelo romantismo. Olímpia assegura não ter sido ultra-romântica, esperando um
verdadeiro herói romântico para se casar. Era já mais objetiva, não caindo na
moda da época, ou seja, a visão romântica. Esta, segundo ela, idealiza os
amantes, e a convivência conjugal contínua desmonta a idealização.
Olímpia, antes de optar pela monogamia, mas com intervalos
de afastamento dos cônjuges, analisa vários tipos de união, construindo uma
fala bem humorada e sem preconceitos, levantado vantagens e desvantagens à
série de uniões que lista. O concubinato permite permanecer com o marido e ter
um amante, mas pode ser prejudicial à mulher uma vez que ela não pode transitar
publicamente com o amante e o brilho social é imprescindível para a felicidade
da mulher. Como vantagem, assegura que a mulher será sempre amada pelo amante
em virtude de que a relação não é constante e diuturna.
A prostituição ou a poligamia não são aceitas socialmente e
os filhos dessas uniões são considerados ilegítimos e isso constitui verdadeiro
problema para a felicidade. O celibato vai de encontro à própria fisiologia da
mulher, visto que é feita para amar e procriar. E, finalmente, o casamento
tradicional tem demonstrado pelos fatos, pela observação direta dos casais, que
não traz felicidade.
Ainda na linha da argumentação para a defesa de sua tese,
Olímpia traz para o interior do seu discurso várias críticas a valores
culturais consagrados, a partir de um tom herético, carnavalesco, grotesco e
cômico. Inicia pela constatação de que os perfumistas produzem um grande
engodo, pois encobrem o cheiro natural dos homens. No namoro, utilizam-se os
perfumes que criam um cheiro artificial; já no casamento, sem mistificações,
afloram, no cotidiano da vida a dois, os cheiros naturais que passam a ser
fonte de frustração.
Num segundo momento, afirma que a mulher consegue perceber o
homem desprovido de sensualidade; já o homem não. Para provar essa tese, se
utiliza de um exemplo herético, comparando a recepção diferenciada da
imagística da Virgem Maria e de Jesus Cristo por ambos os sexos:
Nenhum homem será capaz de
impressionar-se pelos encantos físicos de uma mulher, sem que nisso entre o
concurso de seus sentidos; ao passo que qualquer mulher pode admirar um homem
belo, sem desejá-lo sensualmente. É assim que nós mulheres amamos Jesus Cristo;
e se Maria, a formosíssima Virgem Santíssima, não tivesse, para resguardar a
sua enamorada e frágil boniteza de mulher, a celestial e sacrossanta auréola de
mãe de Deus, o que seria de ti, ó doce, poético e venerando prestígio do
Catolicismo?...
Cristo atravessa os
séculos, todo nu, de braços abertos para a humanidade, e a sua nudez de homem
jamais trouxe rubor de pejo às faces da donzela, nem acordou desejos no peito
das mulheres.
Mas se despissem
Maria das castas vestimentas que lhe escondem o divino corpo, ela deixaria de
ser a piedosa e cândida rainha dos céus, e seria Vênus, a deusa do amor e do
pecado. (LUS,
p.108)
Em outra
ocasião desmitifica a noite de núpcias, retratando-a como um verdadeiro
suplício do corpo para a mulher, utilizando-se, inclusive, do discurso
cientificista.
Livro de uma sogra opera uma crítica bem humorada ao discurso cientificista de tese,
bastante corrente entre os escritores de orientação real-naturalista. A obra se
apresenta como um pseudotratado, indo de encontro ao ideário naturalista de uma
escrita bem comportada, com bases científicas, tendo um narrador cujo saber
científico, a observação precisa e a descrição técnica o levam a comprovar uma
tese. Em Livro de uma sogra a narradora é leiga, é uma sogra autoritária
que submete o genro pobre e a filha passiva aos seus mandos. Ela impõe a
felicidade a ambos. Essa personagem ora aparece como megera, ora como sogra,
ora como santa. Essa oscilação é cômica e compromete a seriedade do discurso. O
hipercientificismo beira ao grotesco e situações de realismo cru são
elaboradas, contrastando com passagens hiper-românticas. Do contraste, irrompe
a fratura e a estrutura multiplanar do texto. O cientificismo é também
neutralizado pelo uso do discurso bíblico que é componente de sustentação para
a tese. Nesse sentido, vemos que o livro merece uma leitura mais atenta a fim
de se apreciar a multiplicidade discursiva que lhe é inerente, refletindo certa
pluridiscursividade social. Livro de uma sogra se aproxima do conceito
de romance de “segunda linha”, com o qual vimos trabalhando, apresentando uma
estrutura que problematiza os discursos sociais. José Veríssimo, embora
criticando o estilo de Aluísio Azevedo em Livro de uma sogra, na
epígrafe que encima este capítulo, destaca o que percebemos até agora como
positivo na obra do escritor: a polivalência do discurso ao enfatizar-lhe a
contradição; o paradoxo; a irregularidade estilística e a vinculação ao
universo do riso.
O projeto pedagógico-ilustrado de Aluísio Azevedo, que
investigamos em nossa Tese de Doutorado, cujo intuito era, a partir de
narrativas folhetinescas e românticas,
fornecer ao leitor a escrita realista, aos poucos, a fim de emancipá-lo, em Livro
de uma sogra sofre um deslocamento significativo. Aqui, o discurso
real-naturalista está na berlinda, sendo carnavalizado. Uma hipótese para
entender essa carnavalização pode ser encontrada no contexto social
extra-literário. Sabemos que Aluísio Azevedo pertencia à geração realista que
acreditava no advento da República como um novo marco, um novo período para a
sociedade brasileira. Aluísio Azevedo, literato, acreditava que a literatura,
por intermédio de uma escrita realista, pudesse colaborar com esse advento. A
República se fez, mas trouxe uma grande decepção para os jovens republicanos,
progressistas e abolicionistas. Raul Pompéia se suicidou, Olavo Bilac foi preso
e exilado, Aluísio Azevedo se fez embaixador e nunca mais escreveu ficção. A
realidade republicana foi decepcionante e o discurso progressista que a poderia
sustentar também se tornou inoperante. Daí porque a crítica a esse discurso em Livro
de uma sogra.
A geração
realista e de boêmios, à qual Aluísio Azevedo pertencia, lutou, a partir da
literatura, do jornal, das caricaturas, por um país democrático, industrial e
republicano, mas, com o advento da República, esse projeto gorou porque a
República se efetivou como antidemocrática e autoritária. Esse fato é
sobejamente destacado por José Murilo de Carvalho em Os bestializados e A formação das almas, em que o historiador
conclui que entre as várias correntes ideológicas que se debateram pela
proclamação da república - jacobinos, positivistas ortodoxos, positivistas,
liberais vinculados ao projeto norte-americano - esta última é quem se
consolidou no poder. Essa consolidação, atrelada a um projeto econômico e
cultural liberal, transforma a República em um espaço antidemocrático e
autoritário que impede a participação popular em vários níveis, inclusive
mediante eleições fraudulentas. O projeto desenvolvimentista-industrial que
poderia inserir o pobre, o negro, os intelectuais de classe média (profesores,
médicos, engenheiros, intelectuais) é boicotado por uma elite de cafeicultores
que sustentam um modelo agro-expotador e especulativo (política emissionista de
títulos do governo sem lastro real).
Nesse
contexto, os intelectuais que acreditaram em uma nova alternativa para a
sociedade brasileira se decepcionaram e esse fato pode explicar, em parte, o
porquê de Aluísio Azevedo elaborar em Livro de uma sogra um discurso que
carnavaliza a racionalidade, a objetividade e o cientificismo. Essa estrutura
mais iluminista não foi suficiente para desalojar do poder a velha elite. É
sintomático que Aluísio Azevedo, após se fazer Cônsul, abandone as letras,
pois, na nova configuração social, um fosso se abriu entre a república das
letras e a república da política e o escritor afirma esse fato por intermédio de
uma linguagem menos ingênua que desentroniza e problematiza a sua visão
iluminista e emancipatória anterior.
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Fonte:
Fonte:
Fanini, Angela
Maria Rubel: “Aluisio Azevedo carnavaliza o romance de tese em "Livro de
uma sogra" . Universidade Tecnologica Federal do Paraná. [Outra travessia,
Brasil, 2007 Vól. 2 Núm. 6 Ene-Jun, Pág. 113-123]
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