28/10/2013

Livro de uma Sogra, de Aluísio Azevedo

 Aluísio Azevedo - Livro de uma Sogra - Iba Mendes
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Aluísio Azevedo carnavaliza o romance de tese em Livro de uma sogra

Tal é, na sua idéia geral, este livro, freqüentemente paradoxal e contraditório, por vezes  exato e verdadeiro, desigual e difuso no estilo e na contextura, mal inspirado na ação, que  é de baixa comédia, ousado, embora sem nenhuma originalidade nas idéias, imoral em  suma, mas sugestivo e, no meio de nossa atual produção, distinto.

O romance Livro de uma sogra, de 1895, é a última obra romanesca de  Aluísio Azevedo.

Essa obra tem suscitado estranheza entre os críticos, sendo difícil  classificá-la tendo em vista os quadros estéticos disponíveis. Os críticos se  dividem em relação a essa obra: alguns a percebem como romance de tese,  inserindo-a no universo do real - naturalismo e outros a interpretam como distante  do universo zolista, como é o caso de Alcides Maya e de Josué Montello:
  
Mas, a partir daquele esboço, e não citando os livros em que, por desfastio, o escritor se  colocou entre Walter Scott e Ponson, todos os romances de Aluísio, com excepção do  derradeiro, o Livro de uma sogra, têm a chancela do zolismo.”

“Enquanto escreveu romances, Aluísio, que se conservava solteiro, foi um preocupado com  o problema do casamento. E encheu com essa preocupação grande parte de sua obra de  romancista. De Uma lágrima de mulher, livro romântico, ao Livro de uma sogra, romance  de tese, debateu a questão ora definindo os males de situações de família ou de  preconceitos sociais burgueses, ora estabelecendo soluções de psicólogo atilado, como no  último e mais estranho de seus romances, onde procurou falar com ares de experiente  através de supostos pensamentos e recordações de uma sogra.  

O romance se constitui a partir de um discurso em primeira pessoa,  feminino, de uma sogra, Olímpia, que sem conhecimentos filosóficos, científicos  ou acadêmicos, escreve uma tese sobre o casamento, para ser lida e seguida por  sua filha e genro. A tese, na realidade, é um receituário que define uma economia  das relações conjugais no intuito de preservar o casamento do tédio. Os cônjuges  devem seguir a monogamia, mas viverem de tempos em tempos separados a fim  de preservarem o interesse mútuo que com a convivência diária fenece. De início podemos verificar na obra uma crítica ao discurso de tese cientificista tão  apregoado pelo naturalismo, pois já não temos mais o narrador observador  cientista ou a figura típica do médico, munido de arsenal científico, afirmando e  estabelecendo verdades. A personagem, Olímpia, partindo da observação social e  da própria vivência conjugal, passa a desenvolver sua tese, seu programa, sua  receita do bem viver a dois, aplicando-os em suas duas cobaias: sua filha e seu  genro. Coloca em prática o que pensa ser um casamento perfeito: os cônjuges  não devem viver sempre sobre o mesmo teto. O amor sexual definha, porque  sobrevém o tédio. Embora Olímpia não tenha uma teoria de background, há a  Bíblia, especialmente o Levítico, em que se apregoa o afastamento do homem em  relação à mulher imunda (estado menstrual), à gestante e à parturiente, a que  Olímpia se reporta constantemente para dar sustentação à sua tese prática de  distanciamento temporário dos cônjuges. Há também a figura do médico, na  personagem Cézar, que a acompanha e a auxilia. Aqui, porém, o saber médico é  um acessório, e não parte essencial, como ocorre em Girândola de amores, A  mortalha de Alzira e O homem, romances do mesmo autor, por exemplo. Aluísio  Azevedo está afastado da escrita naturalista em que a literatura passa pela  legitimação cientificista. Em Livro de uma sogra, o tratado de Olímpia é apenas  acompanhado pelo discurso médico que o ratifica.

Em Livro de uma sogra, temos um estudo filosófico satírico sobre os males  e as virtudes do casamento assemelhado, em parte, à obra Fisiologia do  casamento de Honoré de Balzac.

 Nessa obra, o escritor francês introduz  personagens, fábulas, peripécias e toda sorte de gêneros de discurso (cartas,  anedotas, máximas, parábolas, narrativas secundárias, intertextualidade literária  etc) no sentido de dar sustentação à sua tese que consiste também em um tipo de  receituário para o sucesso do matrimônio. Tal qual a obra de Aluísio Azevedo, o  discurso predominante é o analítico satírico que vai desvendando os vícios, a falsa  moral, as hipocrisias, os jogos de interesse que se manifestam nas relações entre  os cônjuges, apresentando uma radiografia bem humorada e crítica da instituição  matrimonial. Ambas as narrativas, elaboram um receituário pormenorizado e detalhado de atitudes maritais que podem contribuir para a felicidade conjugal.

Entretanto, esse receituário se torna risível em virtude de que se mostra sempre  limitado em relação às possibilidades sempre novas e variadas de infelicidade,  revelando a complexidade e a incompletude das relações sociais. Nesse sentido,  essas obras apresentam uma atitude crítica em relação aos discursos  monológicos, elaborados em forma de tratados, respaldados em análise científica,  que visam descrever o objeto fielmente, levantar os problemas e apontar soluções  definitivas. Os pseudotratados sobre o casamento tanto em Honoré de Balzac  quanto em Aluísio Azevedo não logram trazer a felicidade conjugal a que se  propunham, revelando-se discursos limitados.

Uma série de situações comuns são tratadas de modo jocoso nas obras  tanto do escritor francês quanto do brasileiro, tais como: a lua-de-mel se  transformando em lua-de-fel e em armadilha para o casal (LUS, p.126-131; em  Balzac, Meditação VII, Da lua-de-mel) ; o romantismo das mulheres que idealizam  a vida marital e que não encontra respaldo na realidade; o uso do mesmo quarto  de dormir como proibitivo porque banaliza o desejo e revela o grotesco corporal  (“O olfato tem suas idiossincrasias, tem as suas antipatias e as suas inclinações  (...). Nos esponsais, os direitos desse sentido (...), são perfeitamente ludibriados  pela perfumaria de toucador, sem calcularem os noivos o perigo que com isso  corre a sua futura felicidade conjugal. (...) Já não escondem absolutamente um  para o outro os seus bocejos e as suas repulsivas expansões corporais” LUS, p.  80-81; em Balzac, Meditação XVII, Teoria do leito); a análise satírica da peripécia  usada para avivar o amor (“Ah! – não se sustenta o amor sem o elemento  dramático, e não há drama sem lágrimas”, LUS, p.177; em Balzac, Meditação  XXII, Das peripécias); os enfeites de toda sorte de maquiagem e de toalete e o  seu desmascaramento no casamento (“Quando um moço, ou uma moça, quer  casar, qual é o seu primeiro cuidado? – Enfeitar-se; ou melhor – disfarçar-se.”  LUS, p.77; em Balzac, p.400); a prostituição dentro do casamento (“Oh! quanto me  prostituí nos braços de meu marido!”, LUS, p.27; em Balzac, V- Do orçamento,  p.421); a dessacralização do amor pelo tédio (“Não há estômago que resista a  faisão-dourado todos os dias; o melhor acepipe, se não for discretamente servido, enfastiará no fim de algum tempo. O mesmo acontece no matrimônio: os cônjuges  acabam invariavelmente por se enfararem um do outro, não pelo uso que fazem  do seu amor, mas pelo abuso mútuo da convivência e da ternura.” LUS, p.72; em  Balzac, “O casamento deve incessantemente combater um monstro que devora  tudo: o hábito” p.291); a tese do marido medíocre que se ajusta mais à felicidade conjugal porque não é desviado pela consagração e incenso público (“Até a sua  própria mediocridade de inteligência se me afigurava o belo complemento da sua  perfeição de animal humano: - o talento elevado a certo grau é sempre, no amor,  uma anormalidade perigosa”, LUS, p.103; em Balzac, Introdução, p. 243) e,  finalmente, a conclusão de que o sentimento amoroso é uma construção social,  engenhosa, caprichosa, de mentes intoxicadas de romantismo, tendo um forte  componente de classe social, vinculando-se à elite, e não um dado natural que  possa ser desposado por todos os segmentos sociais (“Olhai o casamento entre a  gente do campo. Por que razão o camponês é mais feliz no casamento do que a  gente civilizada da cidade? É que lá na roça quando o João da Horta vai casar  com a Joana dos Porcos já lhe conhece a medida justa da cintura, e já lhe viu os  pés descalços, as unhas sujas e a cabeça despenteada (...) LUS, p. 83; em  Balzac, p.257; 385; 501). Outro dado que aproxima as narrativas é a orientação do discurso para a classe social privilegiada que pode lançar mão de vários  dispositivos materiais para incrementar a vida conjugal.

Como último romance de Aluísio Azevedo, essa obra nos parece uma  paródia dos romances de tese naturalistas. O escritor parece se divertir em criar  Olímpia, personagem autoritária, voz feminina em uma sociedade patriarcal, cuja  tese e programa conjugal se embasa no discurso religioso e no empírico privado  (a vida matrimonial de Olímpia). Longe estamos do narrador cientista, masculino,  observando a mulher histérica e a definindo de modo monológico, utilizando-se de  argumentação científica. O discurso de Olímpia não se esconde por trás de teses  científicas, antes não oculta as suas limitações; incongruências; insanidade;  autoritarismo e, também, boa vontade.

Olímpia justifica o seu procedimento, distanciando os cônjuges  temporariamente, asseverando que o seu objetivo primordial é preservar a felicidade conjugal, afastando o tédio. Vira uma idéia fixa para Olímpia. É a  ditadura da felicidade que ela impõe. Olímpia é autoritária. A filha e o genro se  submetem ao tratamento, aquela por ser dominada pela mãe e este por ser pobre.  A personagem escolhe as suas cobaias a fim de poder validar a sua tese. O  processo de escolha do genro-cobaia é bastante cômico e problematizador de  várias questões sociais. Os oficiais da marinha são os primeiros pretendentes  porque, em virtude da profissão, se ausentam do lar e isso é ponto positivo para  que o tédio não se fortaleça. Porém, não há sucesso nessa empreitada porque  Palmira, a futura noiva, não demonstrou interesse por nenhum pretendente.  Olímpia refuta os políticos renomados e os cientistas ilustres porque são vaidosos  e vencedores e se sentiriam superiores a sua filha e, com certeza, não seriam tão  facilmente manipulados por Olímpia. Ocorre a retomada da tese do marido vulgar,  ordinário, já exposta em Condessa Vésper, quando Ambrosina não desejava o  “herói da moda” para ser seu cônjuge. Em Livro de uma sogra, entretanto, essa  tese é a espinha mestre da obra; já no folhetim anterior é uma tese lateral.

O experimento de Olímpia requer uma “cobaia” que precisa ser alguém  simplório, de inteligência regular e, sobretudo, pobre. Opta, então, por um  funcionário público, um amanuense de Secretaria de Estado. O mocinho aqui,  portanto, tem que ser medíocre e nada extraordinário. Longe estamos do universo  romântico em que o herói apresenta todos os atributos de um verdadeiro Hércules.  O marido deve ser inferior à mulher. O único atributo positivo do noivo é sua  beleza e higidez física, qualidades fundamentais para satisfazer a amada  sexualmente. Olímpia, porém, transforma o genro em um negociante, já que, para  ela, todos os comerciantes eram de inteligência regular, semi-analfabetos e essas  características tornariam esse tipo social mais fácil de ser gerenciado. Nesse  ponto, há uma definição de um tipo social bastante recorrente na obra de Aluísio Azevedo. O português pobre que se transforma em rico negociante, consagrando- se socialmente como Comendador. O título é o seu objetivo último (“O mercador  no Brasil, quando não sonha outras quimeras, com uma nunca deixa de sonhar –  é a comenda. E, mal a suponha realizada, começa a sonhar com o título de barão,  e depois com o de visconde ou conde” LUS, p. 145). A fala de Olímpia é longa e comporta uma crítica bem humorada e contundente à atividade especulativa do  comércio que, segundo a personagem, nada produz, nada gera, mas apenas  especula, sendo uma atividade desprezível (“O indivíduo sem técnica ou  habilitação para produzir qualquer trabalho, o indivíduo intelectualmente nulo,  pode abraçar, de um dia para outro, a carreira comercial, e pode ser feliz” LUS,  p.140). O negociante português enriquece nessa prática especulativa, sem  adquirir cultura e visão de mundo mais complexa (“Não são raros os exemplos de  negociantes ricos, considerados e poderosos, absolutamente rasos de  inteligência”.LUS, p.140). A única cultura que adquire é a romântica açucarada e  infantilizada (“Todo homem de vida material detesta em questões de arte, o  naturalismo e a verdade, encontre-os na estatuária, na pintura, no romance ou no  teatro, e adora o maravilhoso e o fantástico. São como as crianças.” LUS, p.145).

Cria seus filhos uns “mimalhos”, despreparados para o trabalho produtivo. Fá-los  bacharéis e eis aí uma geração que se torna improdutiva e incompetente, não  raras vezes, perdendo toda a fortuna herdada (“E o mimalho acabará fatalmente  por apresentar ao mundo mais uma espécie desses milhões de bacharéis inúteis,  pretenciosos e tristes, incapazes de obra mais significante.” LUS, p.148). A  terceira geração vira mendiga, pois o referido “mimalho” só dilapida a fortuna  herdada do Comendador (“Mantendo-se à custa da família ou da herança até a  velhice, e só vivendo para desorganizar o meio em que vegetam”. LUS, p.148).  Olímpia, servindo de porta-voz ao verdadeiro autor, apresenta um diagnóstico da  família brasileira, atribuindo a decadência à ignorância da base, do patriarca (“E  eis por que, para sintetizar a escala geral da família brasileira feita pelos  portugueses, formei este axioma: Pais – comendadores; filhos – bacharéis; netos  – mendigos.” LUS, p. 148). Essa síntese crítica sobre as relações familiares e a  decadência das fortunas herdadas por filhos perdulários, pode ser aplicada  retrospectivamente, iluminando várias personagens de sua produção literária  anterior, como Amâncio de Casa de pensão, Gabriel de Condessa Vésper e João  Romão de O cortiço, personagens que se inserem nessa tipologia levantada.  A escolha de um comerciante para marido de Palmira, filha de Olímpia,  problematiza também as relações de gênero à medida que o comerciante inculto, vindo de extratos pobres da população e enriquecendo às custas de especulação,  passa a ser manipulado pelo elemento feminino, de extrato social alto cuja cultura  ocidentalizada e europeizada se impõe ao elemento masculino. Essa relação  desigual de gênero é detalhadamente narrada e ficcionalizada em O Cortiço a  partir das personagens João Romão e Zulmira. Aluísio Azevedo enfoca o discurso  feminino urbano culto que se impõe em um meio escravocrata patriarcal inculto.  Esse discurso, à primeira vista, pode parecer inverossímil, mas apresenta  referencialidade social, atestada por José Veríssimo em seu artigo sobre Livro de  uma Sogra.

À crítica ao negociante especulativo, segue-se o elogio do trabalho, tema  recorrente em Aluísio Azevedo, atendendo a certo projeto ilustrado do escritor em  fazer da literatura um discurso emancipatório e crítico.
O discurso de Olímpia, ao tentar definir um bom marido para sua filha, problematiza a mediocridade dos estratos médios do funcionalismo público brasileiro; a decadência da família patriarcal; o setor comercial português especulativo e o autoritarismo da classe dominante sobre os pobres, perfazendo-se como um discurso sociológico-crítico. Leandro a tudo se submete por gostar de Palmira, a filha de Olímpia, mas também por ser pobre e, a partir do casamento, assumir uma boa posição material e social. O casamento de Leandro e Palmira é dado sob duas perspectivas: pela ótica do amor e pela venal. Entretanto, Aluísio Azevedo não destaca esta última, fazendo dela um fator degradante e humilhante ao extremo para o noivo. O casamento pode se realizar, atendendo a mais de um objetivo. Longe estamos das idealizações e abstrações românticas que elevam o amor e desvalorizam o interesse material nos consórcios amorosos. Livro de uma sogra funciona como contraponto ao livro Senhora6 de José de Alencar, em que a compra de um marido é demonizada e deve ser purgada por sentimentos mais elevados no decorrer da narrativa. Em Livro de uma sogra, a questão material é tratada sem grandes dramatizações e é uma das causas ordinárias do casamento.

O material e o sentimental convivem sem pejo e sem grandes dramas de consciência para as personagens.

Outro argumento que sustenta a tese de Olímpia é a necessidade de reprodução de seres humanos mais perfeitos. Para ela, o primeiro filho, fruto do amor-paixão, é melhor gerado; já o nascimento do segundo, quando o casal já se entedia do matrimônio, é um verdadeiro atentado à natureza. Olímpia dá explicações não científicas para essa diferença de nascimento e, em prol da preservação da melhor espécie, continua aplicando o seu receituário. Instaura-se, aqui, claramente, um diálogo com as teses cientificistas, manipulando-as pelo avesso e ridicularizando-as.

A tese também se reporta à Bíblia, sendo portanto validada moral e eticamente. Não é somente de origem laica, como o discurso cientificista naturalista. Esse background religioso provoca estranheza, pois em vez de citações científicas, correntes na época, traz para o interior do texto um referencial discursivo diverso.

Outro argumento usado por Olímpia é a sua própria decepção amorosa e  matrimonial. O casamento dela começou bem e logo se transformou, pois os cônjuges se desiludiram um do outro. A prática sexual, antes tão ambicionada, transformou-se em obrigação. Introduz-se aí certa comicidade no ato sexual, retirando-o tanto da chave naturalista em que imperam os instintos quanto da chave romântica em que ocorre a idealização.

Seguindo-se um certo projeto ilustrado do escritor, ataca-se o romantismo, pois, apesar de Olímpia atribuir a dissolução do seu casamento apenas ao tédio que naturalmente sobrevém à convivência ininterrupta, critica a postura romântica ao afirmar que quando se casara, não se achava “infectada” pelo romantismo. Olímpia assegura não ter sido ultra-romântica, esperando um verdadeiro herói romântico para se casar. Era já mais objetiva, não caindo na moda da época, ou seja, a visão romântica. Esta, segundo ela, idealiza os amantes, e a convivência conjugal contínua desmonta a idealização.

Olímpia, antes de optar pela monogamia, mas com intervalos de afastamento dos cônjuges, analisa vários tipos de união, construindo uma fala bem humorada e sem preconceitos, levantado vantagens e desvantagens à série de uniões que lista. O concubinato permite permanecer com o marido e ter um amante, mas pode ser prejudicial à mulher uma vez que ela não pode transitar publicamente com o amante e o brilho social é imprescindível para a felicidade da mulher. Como vantagem, assegura que a mulher será sempre amada pelo amante em virtude de que a relação não é constante e diuturna.

A prostituição ou a poligamia não são aceitas socialmente e os filhos dessas uniões são considerados ilegítimos e isso constitui verdadeiro problema para a felicidade. O celibato vai de encontro à própria fisiologia da mulher, visto que é feita para amar e procriar. E, finalmente, o casamento tradicional tem demonstrado pelos fatos, pela observação direta dos casais, que não traz felicidade.

Ainda na linha da argumentação para a defesa de sua tese, Olímpia traz para o interior do seu discurso várias críticas a valores culturais consagrados, a partir de um tom herético, carnavalesco, grotesco e cômico. Inicia pela constatação de que os perfumistas produzem um grande engodo, pois encobrem o cheiro natural dos homens. No namoro, utilizam-se os perfumes que criam um cheiro artificial; já no casamento, sem mistificações, afloram, no cotidiano da vida a dois, os cheiros naturais que passam a ser fonte de frustração.

Num segundo momento, afirma que a mulher consegue perceber o homem desprovido de sensualidade; já o homem não. Para provar essa tese, se utiliza de um exemplo herético, comparando a recepção diferenciada da imagística da Virgem Maria e de Jesus Cristo por ambos os sexos:

Nenhum homem será capaz de impressionar-se pelos encantos físicos de uma mulher, sem que nisso entre o concurso de seus sentidos; ao passo que qualquer mulher pode admirar um homem belo, sem desejá-lo sensualmente. É assim que nós mulheres amamos Jesus Cristo; e se Maria, a formosíssima Virgem Santíssima, não tivesse, para resguardar a sua enamorada e frágil boniteza de mulher, a celestial e sacrossanta auréola de mãe de Deus, o que seria de ti, ó doce, poético e venerando prestígio do Catolicismo?...

Cristo atravessa os séculos, todo nu, de braços abertos para a humanidade, e a sua nudez de homem jamais trouxe rubor de pejo às faces da donzela, nem acordou desejos no peito das mulheres.

Mas se despissem Maria das castas vestimentas que lhe escondem o divino corpo, ela deixaria de ser a piedosa e cândida rainha dos céus, e seria Vênus, a deusa do amor e do pecado. (LUS, p.108)

Em outra ocasião desmitifica a noite de núpcias, retratando-a como um verdadeiro suplício do corpo para a mulher, utilizando-se, inclusive, do discurso cientificista.

Livro de uma sogra opera uma crítica bem humorada ao discurso cientificista de tese, bastante corrente entre os escritores de orientação real-naturalista. A obra se apresenta como um pseudotratado, indo de encontro ao ideário naturalista de uma escrita bem comportada, com bases científicas, tendo um narrador cujo saber científico, a observação precisa e a descrição técnica o levam a comprovar uma tese. Em Livro de uma sogra a narradora é leiga, é uma sogra autoritária que submete o genro pobre e a filha passiva aos seus mandos. Ela impõe a felicidade a ambos. Essa personagem ora aparece como megera, ora como sogra, ora como santa. Essa oscilação é cômica e compromete a seriedade do discurso. O hipercientificismo beira ao grotesco e situações de realismo cru são elaboradas, contrastando com passagens hiper-românticas. Do contraste, irrompe a fratura e a estrutura multiplanar do texto. O cientificismo é também neutralizado pelo uso do discurso bíblico que é componente de sustentação para a tese. Nesse sentido, vemos que o livro merece uma leitura mais atenta a fim de se apreciar a multiplicidade discursiva que lhe é inerente, refletindo certa pluridiscursividade social. Livro de uma sogra se aproxima do conceito de romance de “segunda linha”, com o qual vimos trabalhando, apresentando uma estrutura que problematiza os discursos sociais. José Veríssimo, embora criticando o estilo de Aluísio Azevedo em Livro de uma sogra, na epígrafe que encima este capítulo, destaca o que percebemos até agora como positivo na obra do escritor: a polivalência do discurso ao enfatizar-lhe a contradição; o paradoxo; a irregularidade estilística e a vinculação ao universo do riso.

O projeto pedagógico-ilustrado de Aluísio Azevedo, que investigamos em nossa Tese de Doutorado, cujo intuito era, a partir de narrativas folhetinescas e românticas, fornecer ao leitor a escrita realista, aos poucos, a fim de emancipá-lo, em Livro de uma sogra sofre um deslocamento significativo. Aqui, o discurso real-naturalista está na berlinda, sendo carnavalizado. Uma hipótese para entender essa carnavalização pode ser encontrada no contexto social extra-literário. Sabemos que Aluísio Azevedo pertencia à geração realista que acreditava no advento da República como um novo marco, um novo período para a sociedade brasileira. Aluísio Azevedo, literato, acreditava que a literatura, por intermédio de uma escrita realista, pudesse colaborar com esse advento. A República se fez, mas trouxe uma grande decepção para os jovens republicanos, progressistas e abolicionistas. Raul Pompéia se suicidou, Olavo Bilac foi preso e exilado, Aluísio Azevedo se fez embaixador e nunca mais escreveu ficção. A realidade republicana foi decepcionante e o discurso progressista que a poderia sustentar também se tornou inoperante. Daí porque a crítica a esse discurso em Livro de uma sogra.


A geração realista e de boêmios, à qual Aluísio Azevedo pertencia, lutou, a partir da literatura, do jornal, das caricaturas, por um país democrático, industrial e republicano, mas, com o advento da República, esse projeto gorou porque a República se efetivou como antidemocrática e autoritária. Esse fato é sobejamente destacado por José Murilo de Carvalho em Os bestializados e A formação das almas, em que o historiador conclui que entre as várias correntes ideológicas que se debateram pela proclamação da república - jacobinos, positivistas ortodoxos, positivistas, liberais vinculados ao projeto norte-americano - esta última é quem se consolidou no poder. Essa consolidação, atrelada a um projeto econômico e cultural liberal, transforma a República em um espaço antidemocrático e autoritário que impede a participação popular em vários níveis, inclusive mediante eleições fraudulentas. O projeto desenvolvimentista-industrial que poderia inserir o pobre, o negro, os intelectuais de classe média (profesores, médicos, engenheiros, intelectuais) é boicotado por uma elite de cafeicultores que sustentam um modelo agro-expotador e especulativo (política emissionista de títulos do governo sem lastro real).

Nesse contexto, os intelectuais que acreditaram em uma nova alternativa para a sociedade brasileira se decepcionaram e esse fato pode explicar, em parte, o porquê de Aluísio Azevedo elaborar em Livro de uma sogra um discurso que carnavaliza a racionalidade, a objetividade e o cientificismo. Essa estrutura mais iluminista não foi suficiente para desalojar do poder a velha elite. É sintomático que Aluísio Azevedo, após se fazer Cônsul, abandone as letras, pois, na nova configuração social, um fosso se abriu entre a república das letras e a república da política e o escritor afirma esse fato por intermédio de uma linguagem menos ingênua que desentroniza e problematiza a sua visão iluminista e emancipatória anterior.

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Fonte:
Fanini, Angela Maria Rubel: “Aluisio Azevedo carnavaliza o romance de tese em "Livro de uma sogra" . Universidade Tecnologica Federal do Paraná. [Outra travessia, Brasil, 2007 Vól. 2 Núm. 6 Ene-Jun, Pág. 113-123]

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