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Considerações sobre “Como e
por que sou romancista”, de José de Alencar
Ao mesmo tempo, Alencar
alude ao desejo de escapar da transitoriedade e dar a dimensão de seu legado:
neste sentido escreve “Como e porque sou romancista”, prefácio a O Guarani no
qual refaz a sua experiência como romancista, em um percurso constituído e construtor de imagens da memória
subjetiva a cruzarem a coletiva.
Neste texto confessional, o
artesanato da memória vincula-se ao romanesco e ambos ao cruzamento da memória
nos âmbitos coletivo e privado (evidentemente inseparáveis), em uma reflexão
sobre a estética e poética do romance.
Desta forma, por exemplo, a
lembrança da risada do tio padre, ao se deparar com as mulheres da família
chorando por conta da leitura do romance, anuncia em suas entrelinhas a perda
histórica do monopólio cultural católico e a ascensão das práticas romanescas, índices
da secularização do pensamento.
Indica ainda a importância
do, em suas palavra, “honroso cargo de ledor” (ALENCAR, 1966, p. 131) no
universo burguês oitocentista, em um Brasil ainda majoritariamente analfabeto e
com uma circulação de livros muito baixa se comparada à européia.
A condição de ledor pode ser
também relacionada à importância, no Brasil, das práticas da oratória religiosa
e política, o que fará reverberar, não só na escrita de Alencar, mas também de
outros escritores, a transferência para o romance da dicção oral.
As lembranças pessoais de
sua terra natal conformam-se em imagens maturadas desde a infância e
apresentadas como cromos dispersos em seus livros: a memória subjetiva é esfera
de passagem e criação da memória coletiva, tematizando o mote para a reelaboração
da memória da pátria. Sua escrita é uma comemoração da memória da terra natal
tornada memória brasileira.
Ao falar do Ceará, Alencar
refere-se também ao Brasil, fazendo com que a palavra pátria extrapole o
sentido que possuía no Brasil colônia – terra natal, lugar de nascimento e origem.
Na narrativa alencarina, o localismo é transcendido na percepção do Brasil como coletividade, como pátria.
Viajar por terra é uma nova
maneira de conhecer: conhecimento produzido em um olhar alternativo capaz de
corroborar o sentido terra- mar instaurado por Alencar. O canal da viagem não é
mais o mar, mas o solo nacional.
Um novo sentido é sugerido,
pois a viagem deixa de ser para e passa a ser a viagem através – do
Brasil, não mais para explorar e transformar o seu interior: na viagem para,
o telos econômico é dissolvido e o significado do sertão como espaço
potencial de domínio é deslocado, pois o objetivo da viagem passa a ser o
conhecimento alternativo deste espaço e a sua valorização.
Como forma de sublinhar a
identidade brasileira de seus textos deslocando-os para além das influências de
Fenimore Cooper, Walter Scott e Chateaubriand, Alencar localiza as suas “reais”
influências na infância, dialogando com os topoi românticos do gênio e
da originalidade autoral, negando a cópia do paradigma do romance francês e
americano.
A viagem feita na meninice
ao Ceará é apontada como fomento para a produção de imagens “puras”, pois
produzidas por um olhar percebido como ingênuo e livre de influênc ias. Alencar
reinvindica, em torno desta percepção, como cerne da sua construção poética a
via dupla da imaginação - estimulada por sua mãe quando criança e pela paisagem
– e da memória, construtoras de uma visão literária capaz de ver a natureza em
sua majestade.
Assim, como afirma em “Como
e porque sou romancista”, a imaginação modula o olhar não só sobre a paisagem,
mas sobre a estética européia, reelaborando a cena natural em um exercício de
memória capaz de trazer à tona as imagens trabalhadas em seus livros.
Alencar pensa a condição do
artista, a tarefa do romancista em seus textos críticos – de forma mais
profunda, embora esta imagem também esteja representada nos textos ficcionais,
como Senhora, Sonhos d´Ouro, As minas de prata e Guerra
dos Mascates :
-Já leram a Diva?
Respondeu um silêncio
cheio de surpresa. Ninguém tinha notícia do livro, nem supunha que valesse a
pena de gastar o tempo com essas coisas.
Alencar tece nos próprios
romances a sua discussão, como nesta passagem intertextual de Senhora,
que prossegue na compra do livro pela personagem Aurélia e no seu diálogo com o
crítico que sentencia a sua inverossimilhança, questionada pela protagonista e
pela voz narrativa, que se assume como mediador ao afirmar ter conhecido a heroína,
que lhe contou a história agora narrada por ele. Também vale a pena indicar a defesa
de Senhora feita por uma certa “Elisa do Vale”, segundo Cavalcanti
Proença em uma alusão a Le lys dans le vale.
Em nenhum texto o escritor
usa a palavra intelectual (até porque ela surgirá posteriormente). Mas será que
poderíamos assim considerá-lo?
Se nos valermos das
reflexões de Jean-Paul Sartre, em Em defesa dos intelectuais, obra
compiladora das palestras realizadas pelo filósofo em Tóquio, o intelectual é sobretudo
um sujeito envolvido com o que não lhe diz respeito, extrapolando o seu campo técnico
de atuação e agindo ao mesmo tempo com liberdade e comprometimento. Assim, um físico comprometido somente com o seu
trabalho é um técnico; um físico que se propõe a denunciar e a discutir as
implicações da política de armamento nuclear é um intelectual.
Segundo Sartre, o termo
intelectual surgiu no término do século dezenove (1894), com a atuação de Émile
Zola e outros intelectuais no caso Dreyfus, na defesa do oficial pelo escritor
no conhecido e virulento artigo “J`accuse!”. Ao defender Alfred Dreyfus,
Zola foi alcunhado pejorativamente de
intelectual, por estar atuando em uma questão militar que não lhe diria
respeito, assumindo assim o papel do artista como elemento capaz de problematizar
e interferir nas discussões coletivas.
Ao situar como marco da
função intelectual a atuação de Zola (e de outros intelectuais) no caso
Dreyfus, Sartre estabelece uma distinção entre os intelectuais e os philosophes,
os pensadores ilustrados: especialistas do saber prático que foram os primeiros
a excederem as reflexões sobre o seu próprio campo de atividade.
Como pensar Alencar em meio
a estas duas categorias, escritor em um país fora do processo de ilustração
(reverberada como eco na produção árcade), artista que produz nas folgas de seu
trabalho como político, sua principal ocupação?
Responder a esta pergunta
pressupõe a reflexão sobre os limites e as possibilidades de diálogo entre a produção
política e literária de Alencar que sofreu em vida diversos ataques na política
por sua condição de escritor, bem como recebeu críticas ou a indiferença em
relação às suas obras, por sua atuação como político.
Perceber a autonomia da obra
literária não elide a compreensão da sua condição dialógica; entretanto a
postura politicamente conservadora de Alencar, não se espelhava de maneira
tranqüila em seus textos reveladores da tensão entre o público e o privado no Brasil,
como analisado por Helena.
Por outro lado, temas
exaustivamente discutidos por Alencar politicamente, como a questão da
escravidão, são silenciados na narrativa romanesca ou representados nos textos teatrais
– caso de Mãe e O demônio familiar, como questões familiares,
fora de uma complexidade capaz de
ampliar a discussão.
A condição do escritor
brasileiro, escrevendo a toque de caixa nas horas vagas72, convertendo a sua
arte em mercadoria (ou, como lê Baudelaire, vendendo-a, como a prostituta ao
seu corpo), solitário e deslocado não só como opção de vida, mas como condição sine
qua non frente ao quadro nacional, torna-se de certa maneira a literatura como
a atividade outra, o campo em que o político “não foi chamado”, em uma inversão
que fissura a idéia do intelectual como revolucionário e questionador,
posicionando-o fora da impossível tradição, como revela em Como e porque sou
romancista:
Deixe arrotarem os poetas
mendicantes. O Magnus Apollo da poesia moderna, o deus da inspiração e pai das
musas deste século, é essa entidade que se chama editor, eo seu Parnaso uma
livraria. Se outrora houvesse Homeros, Sófocles, Virgílios, Horácios e Dantes,
sem tipografia, nem impressor, é porque
então escrevia-se nessa página imortal que se chama a tradição. (ALENCAR, 2006, p. 154).
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Fonte:
Danielle Cristina Mendes Pereira Ramos: “Paisagens em claro-escuro : memória e imagem em José de Alencar”. Universidade Federal Fluminense, 2006
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