28/10/2013

A Condessa Vésper, de Aluísio Azevedo

 Aluísio Azevedo - A Condessa Vésper - Iba Mendes
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Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).

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Memórias de um condenado: a história de um criminoso.

No início de 1882, O mulato já ocupava o lugar de obra de destaque na literatura brasileira. De  acordo  com Jean-Yves  Mérian, a  crítica  fluminense  consolidou  o  seu sucesso  através  de  opiniões  que, se  não  eram positivas  em todo  o  seu  conteúdo, firmavam a  relevância  do  método  naturalista adotado  pelo  escritor. Assim, Valentim Magalhães afirmava que ele ainda não havia apreendido “todos os preceitos e princípios da  nova  escola.”  Urbano  Duarte também tecia  mais  de  uma  crítica  em seu  artigo publicado  na  Gazeta  da  Tarde  em ulho  de  1881. Para  ele,  Aluísio  Azevedo  era  um “impressionista”  e  existiam “borrões, falhas  e  alguns  descuidos  no  correr  da  ação  do Romance”.

Ainda  Valentim  Magalhães  comentava  que  as  personagens  principais  não agiam de  acordo  com o  “curso  fatal dos  acontecimentos”  e “escapou-lhe  o  estudo  de base: - o método experimenta.”

Apenas em novembro do mesmo ano Araripe Junior escreveria um artigo bastante favorável ao escritor maranhense, também na Gazeta da Tarde. Jornal de teor abolicionista, como  bem apontou  Mérian, o  romance  era  visto  como  uma  “contribuição  à  causa abolicionista.”.  A posição  do  crítico  alguns  anos  depois  em relação  aos  romances  que Aluísio Azevedo escreveria entre O mulato e Casa de Pensão mostrava a sua discordância em relação  ao  estilo  das  obras.  No  comentário  de  1881, Araripe  Junior  tinha  em Aluísio Azevedo  um “escritor  de  talento  e  imaginação  fecunda”: “Agora  o  que  resta é  ao estreante gritar à maneira dos hoteleiros: olha um novo romance que saia”. E foi isso mesmo que fez Aluísio Azevedo. 

Porém, não  exatamente da  maneira  que  Araripe  Junior  esperava. Em 1888, os romances seguintes a O mulato foram comparados pelo crítico a “pedaços de carne crua e ensanguentada" menção nada elogiosa. Portanto, Memórias de um condenado, publicado no jornal de  seu  irmão  Arthur  Azevedo, A Gazetinha,  não  foi um romance  que  mereceu elogios da crítica, assim como não houve interesse em publicá-lo sob a forma de volume no ano em que saíra no rodapé da folha, como ocorreu com Mistério da Tijuca.

A comparação entre a primeira edição de 1886 (alterada em relação ao folhetim, mas  ainda  com o  mesmo  número  de  capítulos) e  as  mudanças  realizadas  para  a publicação  da  Garnier  em 1901, já  com o  título       A Condessa  Vésper, podem esclarecer algumas  intenções  do  autor. Além de  retirar  “excrescências”  e  aproximar  a  obra  a  um “romance moderno”, o escritor escondia a sua condição de narrativa ficcional de crime. Com efeito, características  do  naturalismo  (ou  “romance  moderno”, como  era  a referência às obras inseridas na pauta naturalista na época) já existiam na edição de 1886.

O longo folhetim (comparado ao Mistério da Tijuca) era inspirado nas memórias de um condenado, que via no romancista o homem capaz de tornar a sua história conhecida. Na edição de 1886 é  visível a  preocupação em relatar que  o  romance era derivado das memórias de um preso. Essa  edição tem um prólogo: “Como e porque eu escrevi este romance” — equivalente, na edição transformada em A Condessa Vésper, ao capítulo 0 — “As memórias de um condenado”. Apesar de inseri-lo como capítulo cujo título se refere “às memórias”, houve modificações relevantes no texto no que concerne à identificação do romance como uma história de crime.

A função do prólogo estava em dizer ao leitor que o romance foi baseado em uma história  verídica  de  um condenado  que  estava  preso  e  aguardava  julgamento. Em        A Condessa  Vésper  a  intenção  é  a  mesma, porém, o  enfoque  é  voltado  muito  mais  para  a Condessa  que  para  o  condenado. Em ambas  as  edições,  uma  “velhinha”  entrega uma carta ao  escritor. Em    Memórias de um condenado, ela  está  “cheia  de  movimentos desconfiados”; enquanto em A Condessa Vésper, ela está “toda engelhada e trêmula” e fala com “voz  misteriosa”. Apesar  da  sutileza, a  referência  a  “movimentos  desconfiados” sugere uma relação mais próxima de “atos suspeitos”, com fatos secretos e, quem sabe, crimes encobertos. Logo adiante, durante a leitura da carta, o escritor se depara com um homem que matou uma “mulher indigna e má”. Segundo a primeira edição:

Juro que ninguém foi mais leal e mais franco do que eu; juro que nunca  me passou  pela  mente a  ideia  de  uma  infâmia;  quando, porém,  senti até que  ponto me aviltara  o  meu próprio  amor; quando percebi o estado de degradação a que me conduzira aquela por quem eu  teria  derramado  a  última  gota  do  meu sangue,  ah, então sufocou-me o desespero, uma onda de pensamentos negros subiu-me ao cérebro e, alucinado pela dor, louco, sem saber o que fazia, assassinei a mulher a quem dantes mil vidas teria eu dado, se  mil vidas eu tivera.

A Condessa Vésper  contém o  mesmo  parágrafo,  entretanto, com  algumas modificações: não existe referência  à  “onda  de  pensamentos  negros”  e  ao  estado  de alucinação provocado pela mulher amada. Ao invés de  “louco” e  alucinado pela dor”, ele “sucumbiu de compaixão por ele mesmo” e “arrancou friamente” a vida da amante. A relevância  das  pequenas  alterações  está em  mudar  a  perspectiva da  narrativa para  a personagem principal  da  edição  transformada  —  a  Condessa  Vésper.  Nessa  versão,  o final do capítulo 0 era da seguinte maneira:

As  confidências  do  pobre  assassino  deixaram-me em extremo comovido. Eram uma torrente vertiginosa de episódios dramáticos e  originais,  em que  toda  a  miséria  humana  se  estorcia convulsionada, ora pela dor, ora pelo prazer, mas sempre de rojo na mesma lameira de lágrimas ensanguentadas.
Não  hesitei,  tomei da  pena  e  escrevi  o  livro que  se  segue,  para mostrar ao meu leitor quanto é perigosa a beleza de uma mulher
do jaez da Condessa Vesper, posta ao mau serviço do egoísmo e da vaidade.

Em Memórias de um condenado, o criminoso não faz “confidências”, mas conta a sua “memória”; o final da carta contém a assinatura “G. de L. R.”, enquanto em A Condessa Vésper não existe nenhuma assinatura. Em Memórias de um condenado o interesse é contar a história  do  assassino  de  uma  mulher  e  não  a  história  da  mulher. Assim, as  últimas palavras do prólogo são bem diversas do final do capítulo 0:

As  memórias  do  pobre  moço  criminoso  tinham-me comovido; eram uma torrente vertiginosa de episódios dramáticos e originais, cuja narração sobressaltaria o espírito menos apreensivo. Havia ali a  febre,  o  desespero,  a  grande  luta  de  todos  os  sentimentos humano. 
Não  hesitei,  pois:  lancei mão  da  pena  e  escrevi a  obra  que  na seguinte página começa com o título de:

No  periódico, o Prólogo — denominado de “Um caso  extraordinário”40  —  foi publicado antes do início do folhetim, no dia 01 de janeiro de 1882. ―O capítulo 1 “O punhal de família” iniciava o romance no dia seguinte e equivalia ao primeiro capítulo da edição de 1886, com o mesmo título. Antes do início do capítulo, em destaque, estava o nome  da  obra  —  Memórias de  um condenado.  Romance brasileiro, seguindo  a  frase  iniciada anteriormente: “começa  com o  título  de:”. Em a  Condessa Vésper, o capítulo 1 — “O namorado  da  noiva”, apesar  do  conteúdo  semelhante ao  “Punhal de  família”, muda  o foco de Gabriel (o condenado) e do punhal pertencente a ele para “a noiva” Ambrosina, a futura Condessa Vésper.

O manuscrito que acompanhava a carta foi realizado  “ao correr da pena e sob a influência  dos  terríveis  acontecimentos  que  nele  se  acham  relatados.”  O preso  tinha  a intenção de “prestar um serviço” a outros homens que se deixassem “cegar por um amor irrefletido”: ―Possam elas  [as  memórias]  impedir  a  queda  dos  inexperientes  e  evitar futuras calamidades, é o que melhor ambiciono.!42 Esse trecho foi excluído de A Condessa Vésper. O último capítulo da edição de 1886 — “Últimos raciocínios de Gabriel” (escritos na  Casa  de  Correção  em 1882)  —  apresentam alguma  semelhança  com trechos  do capítulo  0 de  A Condessa Vésper. Há um detalhamento  da  prisão, denominada  de “sepulcro” e, assim como  outras narrativas de crime, o sofrimento do  preso  pelo  “mal que fez”:

Aqui não há sol, nem riso, nem amor. Vivo inteiramente só com o meu passado inútil e pernicioso.
Entretanto,  o  que  mais  me dói é  a  solidão,  nem tampouco  a saudade pelos gozos fugazes de outro tempo; não é a sofreguidão insanável de  meus  vícios,  nem a  falta  absoluta  dos  elementos essenciais à vida. Não! — O que mais me acabrunha, o que mais me oprime — é o remorso.

Esse  texto  final desaparece  de  A Condessa  Vésper  e  cede  lugar  à  morte de Ambrosina por Gabriel com dois tiros (em que as balas são dois diamantes) e o suicídio do preso, com o mesmo punhal que sua mãe (Violante) se matara anos antes. Se o final do capítulo 0 fornecia espaço  para a Condessa Vésper, o final dessa edição também se voltava  para  essa  personagem.  Retirando  o  capítulo  final de  Memórias de um condenado,  Aluísio  Azevedo  transferia, novamente, o  foco  do  criminoso  para  Ambrosina  (a Condessa Vésper).

Essas cenas fazem parte de  Memórias de um condenado, porém, outros eventos são acrescentados, evidenciando a construção narrativa de uma história de crime. O capítulo final sobre  os  últimos  raciocínios  de  Gabriel é  fundamental para  essa  condição. Nesse capítulo, além do sentimento de remorso do preso, confirma-se uma ideia apresentada de forma  bastante resumida  no  fim do  capítulo  0 de  A Condessa  Vésper. Segundo  Gabriel, foram os “elementos que determinaram a sua vida” que fizeram com que ele se tornasse “vítima” de uma mulher como Ambrosina. Assim, foi o “romantismo em que palpitaram aqueles que tiveram de formar o meu caráter e a minha individualidade; foi a ausência de trabalho, foi a má educação sentimental, foi o excesso de dinheiro.”

Após alguns parágrafos em que Gabriel reitera  o  “perigo  do  romantismo e a necessidade  do  trabalho  para  a  formação  do  caráter”, o  narrador  intervém e  termina  o  romance, reafirmando a posição de Gabriel:

Eis tudo o que colhemos das memórias do pobre Gabriel.
O leitor que as leia e que nos perdoe, se não as arranjamos melhor. Nosso fim único foi bradar contra a  educação romântica, de que até hoje  tanto se  tem abusado  entre nós  e  de  cujos  resultados brotaram a maior parte de nossos males.

Uma  “educação  romântica”  englobava  a  leitura  de  autores  considerados inapropriados  —  os  franceses  da  década  de  1820, como  por  exemplo, Lamartine  e Gautier. Pelo  que  se  pode  extrair  ao  longo  do  romance, um sentimento  idealista e

fantasioso era consequência de uma criação romântica. As personagens passavam a viver amores proibidos, como a relação entre Laura e Ambrosina. Gaspar, padrasto de Gabriel, vivera uma intensa  paixão por Violante, mãe do  protagonista, que se suicidara por não conseguir  a  vingança  desejada: matar  Paulo  Mostela  que, por  coincidência, havia  se casado com a irmã mais nova de Gaspar, Virgínia.

A imagem de  Gaspar  era  equivalente ao  seu  reconhecimento  como  “médico Misterioso”. Nunca  se  casara, dedicara-se  a  vida  toda  a  ser conselheiro  de  Gabriel, por quem tinha  imenso  carinho. Após  a  morte de  Violante, o  menino, com cinco  anos, passava a ser a única felicidade do médico. Segundo o narrador, Gaspar  “foi-lhe criando uma  amizade  profunda  e  egoísta”.  Quando  o  menino  fez  vinte anos, o  padrasto  lhe  contou a história de sua mãe e lhe deu o punhal que fora do seu avô, pai de Violante. Em determinado momento, o narrador interrompia a narrativa para chamar a atenção para o
caráter  de  Gaspar: “O leitor  deve  ter  reparado  como  [Gaspar]  percorre, no  correr  do romance, toda a escala patológica da vida humana. Foi romântico, apaixonado, descrente e, afinal, dramático”.

A demonstração  mais  clara  do  significado  negativo  de  uma  educação  romântica está na comparação entre Gabriel e Gustavo (sobrinho de Gaspar, alguns anos mais novo que Gabriel, filho de Virgínia e Paulo Mostela). Gaspar e Gabriel conversam no gabinete de  trabalho do primeiro. Gabriel reclama que Gustavo os chamou de “duas crianças, dois tipos românticos”:

E olha  que  ele  disse  meia  verdade,  respondeu  Gaspar,  depois  de uma  pausa,  —  porque,  no  fim  de  contas,  as  circunstâncias especiais  de  nossa  existência  puseram-nos  fora  do  alcance  das forças práticas da vida comum e das leis reguladoras da sociedade. Hoje mesmo, que já estou  velho  e vejo o mundo por um prisma diverso;  hoje,  que  tenho  o  raciocínio  apurado  e  a  experiência completa  das  coisas,  ainda  me  sinto dominado  pela  corrente romanesca em que nasci, e na qual palpitou minha juventude. Tu vieste depois,  é  certo,  mas  não  vieste  no  teu tempo;  nunca dependeste dos homens para os conheceres; nunca foste oprimido para  poderes  ter uma  compreensão  perfeita  da  justiça;  nunca sofreste  as  misérias,  as  decepções,  as  lutas  pela  existência,  —  o  trabalho,  o  estudo,  a  experimentação  das  dores  vulgares,  para poderes  formar uma  ideia  justa  da  verdade;  e,  nessas  condições, sem um lugar entre os  homens,  sem  parentes,  sem responsabilidade e sem amor, vivendo às cegas, iludido, explorado e desestimado, não pudeste compreender o mundo que te cercava e tiveste de voltar as vistas e a atividade de teus sentimentos para o passado. Esse passado era tua mãe e eu, isto é, era o romantismo no seu maior desenvolvimento. E, já pela hereditariedade natural, já pela educação sentimental que te dei inconscientemente, nunca chegaste a compreender a época em que tens vivido.

Gustavo,  ao  contrário, nascera  “no  seu  tempo”, ou  seja, tinha  um “espírito moderno,  frio  e  observador”. Revoltava-se  contra  Gabriel e  Gaspar  por  achá-los “idealistas,  contemplativos”, enquanto  ele  era  “trabalhador, independente”.  Essa oposição entre o “romântico” e o “observador” equivalia, de fato, aos contrastes entre a escola romântica e naturalista. A discussão do assunto nesse romance esteve presente na edição de 1886 e na edição modificada, A Condessa Vésper. 

Com efeito, era  um tema  relevante para  o  romancista naquele  momento, assim como  mostra  que, mesmo  em      Memórias de um condenado, havia  a  intenção  de  exibir determinantes do  meio  para  a  construção  do  caráter  das  personagens, movimento principal  dos  romances  feitos  a  partir  do  método  experimental.  Essa  constatação  é relevante, pois  indica  que  as  intervenções  feitas  no  romance  em 1901  não  estavam
voltadas  apenas  para  uma  “depuração  do  estilo”  como  aponta Milton  Marques.  A compactação de capítulos não foi decorrência de uma apresentação do romance sob uma forma  mais  “naturalista”, pois  essa  já  estava  presente em     Memórias de um condenado. As personagens principais são expostas como inerentes ao meio em que nasceram e foram criadas e essa característica da narrativa é desenvolvida exaustivamente em Memórias de um condenado. 

Assim, Ambrosina, como Gabriel, era produto do ambiente em que nascera: 

por um fenômeno de seleção natural, Ambrosina reproduzia, com as  modificações  correspondentes  às  circunstâncias  de  seu  meio, todos os sonhos de ambição e todas as vertigens do egoísmo, que um dia  abalaram o  cérebro  de  seu  pai,  e  sob  cuja  influência palpitou a sua existência inteira.
  
As personagens reagem a partir de uma  “combinação experimentada”, em que figuram como elementos vivos de um experimento, colocadas em um determinado meio e  sob  determinadas  circunstâncias. A consequência, como  não  poderia  deixar  de  ser, é dramática. Digamos de outro modo: é dramática dentro das condições possibilitadas por um  determinado  meio  já  delimitado  pelo  autor. Memórias de um  condenado  exibe, ao  menos, dois episódios retirados de A Condessa Vésper que fazem referência à influência do meio e também às narrativas de crime.     

O primeiro deles remete-nos ao crime de Pontes Visgueiro ocorrido em 1873 e às narrativas geradas  pelo  caso. Na  época  do  crime  as  principais  discussões  em  torno  do assassinato  brutal cometido  pelo  desembargador  estavam  em torno  do  seu  estado alterado  pela  velhice, proporcionando-lhe  uma  disfunção  física  e  psicológica. Em Memórias de um condenado, essa  situação é descrita a  partir de  alguns eventos vividos  por Gaspar e a sua condição é delimitada como parte do “erotismo senil”. 

Durante algumas  páginas, o  narrador  se  concentra  em descrever  a  sedução  de Gaspar por Ambrosina. Ele a procurara para exigir que a moça — que nesse momento da narrativa já era uma famosa prostituta — não voltasse a procurar Gabriel. Padrasto e enteado iriam viajar no dia seguinte e a intenção de Gaspar era afastá-la do rapaz, para que ele não desistisse da viagem. Porém, ela deseja que, para isso, ele passasse por uma “prova”: encontrá-la  à  meia-noite daquele  dia, para  despedirem-se. Nesse  encontro, Gaspar não consegue controlar o desejo instigado pela sedutora mulher e, mesmo contra a vontade: 

(.. ) sem prestar contas  de  seus  raciocínios,  sem ousar formular uma  ideia,  tomou  Ambrosina  nos  braços  e,  trêmulo,  cheio  de ansiedade,  foi depô-la  na  cama,  que  ficava  no  repartimento próximo.
Ela não lhe deu tempo para fugir, puxou-lhe os braços em volta do  pescoço e colocou os lábios contra os dele.

O velho médico sairia da casa apenas no dia seguinte, nove horas da manhã, com o “coração oprimido, o corpo mole”.56 Em A Condessa Vésper, o evento termina com a chegada inusitada de Gabriel, que finaliza a situação de forma mais dramática:

(.. ) com um gesto profissional  e  certeiro,  passou-lhe  os  hábeis braços em volta do pescoço, grudando-se toda a ele e prendendo-lhe os lábios com os dentes.
O  Médico  Misterioso  ia  arrojá-la  de  si,  quando  de  súbito  se arredou  o  reposteiro da  entrada,  deixando  ver o  vulto transformado  de  Gabriel,  que,  trêmulo  e  arquejante,  olhos  em fogo, os observava mais pálido que um cadáver.

O episódio de Memórias de um  condenado  fornece  ensejo  para  futuros  encontros entre Ambrosina e Gaspar, que se apaixona pela moça. Segundo o narrador, “já não era amor, era moléstia”. Os eventos de A Condessa Vésper eram bem distintos. As alterações não  forneceram uma  “depuração  do  estilo”, mas  transformaram a  cena. De  fato, a entrada  dramática  de  Gabriel  era  mais  improvável que  a  sedução  de  Gaspar  por Ambrosina. Neste último  caso, o  “curso  fatal dos  acontecimentos”  parece  mais plausível.

A relação Ambrosina-Gaspar foi possível pelo mesmo estado que proporcionou a ligação de Pontes Visgueiro com Maria da Conceição no crime ocorrido em São Luís do Maranhão em 1873. A “moléstia” foi citada no julgamento do desembargador como um elemento atenuante do assassinato. Porém, em              Memórias de um condenado, ela é exposta como mais um dos fatores que justificavam o assassinato de Ambrosina por Gabriel. 

As memórias de um criminoso (e não as suas confidências, como eram tratadas as “memórias” do condenado em A condessa Vésper) eram uma forma de mostrar que houve algum sentido  no  crime, que  os  motivos  do  assassinato  foram relevantes,  que  o criminoso, durante o  crime, encontrava-se  em um “estado  de  alucinação”. A troca  da palavra “memória” por “confidência” é essencial. Fazer uma “confidência” significa que havia uma intenção em “confiar” algo bastante pessoal; contar uma “memória” se remete ao  fato  de  trazer  uma  lembrança  de  algo  já  vivido  e  parte do  passado, um relato biográfico.    

Em A Condessa Vésper a relação tumultuosa entre Ambrosina e Gaspar desaparece. Assim, um longo capítulo final — “Os brilhantes do Farani” descreve o fim da relação entre  Ambrosina  e  Gabriel, em que  ambos  estão  envelhecidos  e  sem dinheiro. Não  há nenhuma  intenção  em ressaltar  determinados  momentos  fundamentais que  levaram ao assassinato  de  Ambrosina. Em Memórias de um condenado, ao  contrário, os  dois  últimos capítulos são dirigidos ao crime e sua explicação. 

O capítulo  CV  —  “Desfecho”  prioriza  o  momento  do  assassinato. Pela divisão feita na publicação periódica, percebe-se  a  importância  desse  momento, que  ficou disperso em A Condessa Vésper. Assim, o capítulo CIV — “Dissolução”, além da morte de Gaspar, decorrência da descoberta de suas relações com Ambrosina por Gabriel — tinha como eixo a insistência da moça em possuir certo “broche de diamantes” que estava na vitrine da joalheria Farani. O final do capítulo incitava o suspense: “E Gabriel tomou a direção da casa do Farani”. “Desfecho” — penúltimo capítulo — tem a descrição do assassinato  de Ambrosina  que, ao  contrário  do  mesmo  evento  em A Condessa Vésper, ainda permanece agonizante por algumas horas. O último capítulo retornava à carta do condenado: “Últimos raciocínios de Gabriel”.

Memórias de um condenado era, de fato, um romance bem mais impressionante que A Condessa  Vésper. Os  capítulos  que  relatam o  roubo  que  Ambrosina  obrigava  Gustavo a cometer e o seu consequente suicídio — que foram completamente retirados do romance reformulado — apresentavam detalhes dignos de um romance sensacional, assim como as  cenas  iniciais  da  noite de  núpcias  de  Ambrosina  e  Leonardo. O marido  tinha  um ataque de hidrofobia e se transformava em uma “fera” que atacava Ambrosina com “uma dentada na polpa macia de um dos seios”. A descrição feita em Memórias de um condenado era  bem mais  sensacional que  aquela  apresentada  em   A Condessa  Vésper. No  primeiro romance, Leonardo  “tinha  a  boca  cheia  de  carne  e  o  sangue  escorria-lhe  por  entre  os dentes”;  enquanto  em A Condessa Vésper  não  há  nenhuma  referência  aos  detalhes  do ataque feito por Leonardo.

Os capítulos  sucintos  de  Memórias de um condenado  eram adaptados  para  fornecer sensação  em momentos  importantes da  narrativa, normalmente vinculados  a  fatos específicos que mostravam Ambrosina como uma mulher traiçoeira. Com efeito, essa era a intenção principal da memória do criminoso: mostrar que a pessoa assassinada era, em grande parte, culpada do crime. Portanto, retirar o foco do criminoso e voltá-lo à vítima fornecia o efeito desejado em A Condessa Vésper, ou seja, “mostrar ao leitor quanto é perigosa  a  beleza  de  uma  mulher  do  jaez  da  Condessa  Vésper”.  Porém, alterava  o sentido inicial de  Memórias de um condenado, que era mostrar a fragilidade de uma criação inadequada e o caminho traçado pelo criminoso até o crime. Características presentes em narrativas ficcionais de crime. 


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Fonte:
Ana Gomes Porto: “Memórias de um condenado e   Mistério da Tijuca,   Romances de crime”. Floema — Ano VII, n. 9, p. 33-60, jan./jun. 2011

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