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Memórias de um condenado: a história de um criminoso.
No início de 1882, O mulato já ocupava o lugar de obra de destaque na literatura brasileira. De acordo com Jean-Yves Mérian, a crítica fluminense consolidou o seu sucesso através de opiniões que, se não eram positivas em todo o seu conteúdo, firmavam a relevância do método naturalista adotado pelo escritor. Assim, Valentim Magalhães afirmava que ele ainda não havia apreendido “todos os preceitos e princípios da nova escola.” Urbano Duarte também tecia mais de uma crítica em seu artigo publicado na Gazeta da Tarde em ulho de 1881. Para ele, Aluísio Azevedo era um “impressionista” e existiam “borrões, falhas e alguns descuidos no correr da ação do Romance”.
Ainda Valentim Magalhães comentava que as personagens principais não agiam de acordo com o “curso fatal dos acontecimentos” e “escapou-lhe o estudo de base: - o método experimenta.”
Apenas em novembro do mesmo ano Araripe Junior escreveria um artigo bastante favorável ao escritor maranhense, também na Gazeta da Tarde. Jornal de teor abolicionista, como bem apontou Mérian, o romance era visto como uma “contribuição à causa abolicionista.”. A posição do crítico alguns anos depois em relação aos romances que Aluísio Azevedo escreveria entre O mulato e Casa de Pensão mostrava a sua discordância em relação ao estilo das obras. No comentário de 1881, Araripe Junior tinha em Aluísio Azevedo um “escritor de talento e imaginação fecunda”: “Agora o que resta é ao estreante gritar à maneira dos hoteleiros: olha um novo romance que saia”. E foi isso mesmo que fez Aluísio Azevedo.
Porém, não exatamente da maneira que Araripe Junior esperava. Em 1888, os romances seguintes a O mulato foram comparados pelo crítico a “pedaços de carne crua e ensanguentada" menção nada elogiosa. Portanto, Memórias de um condenado, publicado no jornal de seu irmão Arthur Azevedo, A Gazetinha, não foi um romance que mereceu elogios da crítica, assim como não houve interesse em publicá-lo sob a forma de volume no ano em que saíra no rodapé da folha, como ocorreu com Mistério da Tijuca.
A comparação entre a primeira edição de 1886 (alterada em relação ao folhetim, mas ainda com o mesmo número de capítulos) e as mudanças realizadas para a publicação da Garnier em 1901, já com o título A Condessa Vésper, podem esclarecer algumas intenções do autor. Além de retirar “excrescências” e aproximar a obra a um “romance moderno”, o escritor escondia a sua condição de narrativa ficcional de crime. Com efeito, características do naturalismo (ou “romance moderno”, como era a referência às obras inseridas na pauta naturalista na época) já existiam na edição de 1886.
O longo folhetim (comparado ao Mistério da Tijuca) era inspirado nas memórias de um condenado, que via no romancista o homem capaz de tornar a sua história conhecida. Na edição de 1886 é visível a preocupação em relatar que o romance era derivado das memórias de um preso. Essa edição tem um prólogo: “Como e porque eu escrevi este romance” — equivalente, na edição transformada em A Condessa Vésper, ao capítulo 0 — “As memórias de um condenado”. Apesar de inseri-lo como capítulo cujo título se refere “às memórias”, houve modificações relevantes no texto no que concerne à identificação do romance como uma história de crime.
A função do prólogo estava em dizer ao leitor que o romance foi baseado em uma história verídica de um condenado que estava preso e aguardava julgamento. Em A Condessa Vésper a intenção é a mesma, porém, o enfoque é voltado muito mais para a Condessa que para o condenado. Em ambas as edições, uma “velhinha” entrega uma carta ao escritor. Em Memórias de um condenado, ela está “cheia de movimentos desconfiados”; enquanto em A Condessa Vésper, ela está “toda engelhada e trêmula” e fala com “voz misteriosa”. Apesar da sutileza, a referência a “movimentos desconfiados” sugere uma relação mais próxima de “atos suspeitos”, com fatos secretos e, quem sabe, crimes encobertos. Logo adiante, durante a leitura da carta, o escritor se depara com um homem que matou uma “mulher indigna e má”. Segundo a primeira edição:
Juro que ninguém foi mais leal e mais franco do que eu; juro que nunca me passou pela mente a ideia de uma infâmia; quando, porém, senti até que ponto me aviltara o meu próprio amor; quando percebi o estado de degradação a que me conduzira aquela por quem eu teria derramado a última gota do meu sangue, ah, então sufocou-me o desespero, uma onda de pensamentos negros subiu-me ao cérebro e, alucinado pela dor, louco, sem saber o que fazia, assassinei a mulher a quem dantes mil vidas teria eu dado, se mil vidas eu tivera.
A Condessa Vésper contém o mesmo parágrafo, entretanto, com algumas modificações: não existe referência à “onda de pensamentos negros” e ao estado de alucinação provocado pela mulher amada. Ao invés de “louco” e alucinado pela dor”, ele “sucumbiu de compaixão por ele mesmo” e “arrancou friamente” a vida da amante. A relevância das pequenas alterações está em mudar a perspectiva da narrativa para a personagem principal da edição transformada — a Condessa Vésper. Nessa versão, o final do capítulo 0 era da seguinte maneira:
As confidências do pobre assassino deixaram-me em extremo comovido. Eram uma torrente vertiginosa de episódios dramáticos e originais, em que toda a miséria humana se estorcia convulsionada, ora pela dor, ora pelo prazer, mas sempre de rojo na mesma lameira de lágrimas ensanguentadas.
Não hesitei, tomei da pena e escrevi o livro que se segue, para mostrar ao meu leitor quanto é perigosa a beleza de uma mulher
do jaez da Condessa Vesper, posta ao mau serviço do egoísmo e da vaidade.
Em Memórias de um condenado, o criminoso não faz “confidências”, mas conta a sua “memória”; o final da carta contém a assinatura “G. de L. R.”, enquanto em A Condessa Vésper não existe nenhuma assinatura. Em Memórias de um condenado o interesse é contar a história do assassino de uma mulher e não a história da mulher. Assim, as últimas palavras do prólogo são bem diversas do final do capítulo 0:
As memórias do pobre moço criminoso tinham-me comovido; eram uma torrente vertiginosa de episódios dramáticos e originais, cuja narração sobressaltaria o espírito menos apreensivo. Havia ali a febre, o desespero, a grande luta de todos os sentimentos humano.
Não hesitei, pois: lancei mão da pena e escrevi a obra que na seguinte página começa com o título de:
No periódico, o Prólogo — denominado de “Um caso extraordinário”40 — foi publicado antes do início do folhetim, no dia 01 de janeiro de 1882. ―O capítulo 1 “O punhal de família” iniciava o romance no dia seguinte e equivalia ao primeiro capítulo da edição de 1886, com o mesmo título. Antes do início do capítulo, em destaque, estava o nome da obra — Memórias de um condenado. Romance brasileiro, seguindo a frase iniciada anteriormente: “começa com o título de:”. Em a Condessa Vésper, o capítulo 1 — “O namorado da noiva”, apesar do conteúdo semelhante ao “Punhal de família”, muda o foco de Gabriel (o condenado) e do punhal pertencente a ele para “a noiva” Ambrosina, a futura Condessa Vésper.
O manuscrito que acompanhava a carta foi realizado “ao correr da pena e sob a influência dos terríveis acontecimentos que nele se acham relatados.” O preso tinha a intenção de “prestar um serviço” a outros homens que se deixassem “cegar por um amor irrefletido”: ―Possam elas [as memórias] impedir a queda dos inexperientes e evitar futuras calamidades, é o que melhor ambiciono.!42 Esse trecho foi excluído de A Condessa Vésper. O último capítulo da edição de 1886 — “Últimos raciocínios de Gabriel” (escritos na Casa de Correção em 1882) — apresentam alguma semelhança com trechos do capítulo 0 de A Condessa Vésper. Há um detalhamento da prisão, denominada de “sepulcro” e, assim como outras narrativas de crime, o sofrimento do preso pelo “mal que fez”:
Aqui não há sol, nem riso, nem amor. Vivo inteiramente só com o meu passado inútil e pernicioso.
Entretanto, o que mais me dói é a solidão, nem tampouco a saudade pelos gozos fugazes de outro tempo; não é a sofreguidão insanável de meus vícios, nem a falta absoluta dos elementos essenciais à vida. Não! — O que mais me acabrunha, o que mais me oprime — é o remorso.
Esse texto final desaparece de A Condessa Vésper e cede lugar à morte de Ambrosina por Gabriel com dois tiros (em que as balas são dois diamantes) e o suicídio do preso, com o mesmo punhal que sua mãe (Violante) se matara anos antes. Se o final do capítulo 0 fornecia espaço para a Condessa Vésper, o final dessa edição também se voltava para essa personagem. Retirando o capítulo final de Memórias de um condenado, Aluísio Azevedo transferia, novamente, o foco do criminoso para Ambrosina (a Condessa Vésper).
Essas cenas fazem parte de Memórias de um condenado, porém, outros eventos são acrescentados, evidenciando a construção narrativa de uma história de crime. O capítulo final sobre os últimos raciocínios de Gabriel é fundamental para essa condição. Nesse capítulo, além do sentimento de remorso do preso, confirma-se uma ideia apresentada de forma bastante resumida no fim do capítulo 0 de A Condessa Vésper. Segundo Gabriel, foram os “elementos que determinaram a sua vida” que fizeram com que ele se tornasse “vítima” de uma mulher como Ambrosina. Assim, foi o “romantismo em que palpitaram aqueles que tiveram de formar o meu caráter e a minha individualidade; foi a ausência de trabalho, foi a má educação sentimental, foi o excesso de dinheiro.”
Após alguns parágrafos em que Gabriel reitera o “perigo do romantismo e a necessidade do trabalho para a formação do caráter”, o narrador intervém e termina o romance, reafirmando a posição de Gabriel:
Eis tudo o que colhemos das memórias do pobre Gabriel.
O leitor que as leia e que nos perdoe, se não as arranjamos melhor. Nosso fim único foi bradar contra a educação romântica, de que até hoje tanto se tem abusado entre nós e de cujos resultados brotaram a maior parte de nossos males.
Uma “educação romântica” englobava a leitura de autores considerados inapropriados — os franceses da década de 1820, como por exemplo, Lamartine e Gautier. Pelo que se pode extrair ao longo do romance, um sentimento idealista e
fantasioso era consequência de uma criação romântica. As personagens passavam a viver amores proibidos, como a relação entre Laura e Ambrosina. Gaspar, padrasto de Gabriel, vivera uma intensa paixão por Violante, mãe do protagonista, que se suicidara por não conseguir a vingança desejada: matar Paulo Mostela que, por coincidência, havia se casado com a irmã mais nova de Gaspar, Virgínia.
A imagem de Gaspar era equivalente ao seu reconhecimento como “médico Misterioso”. Nunca se casara, dedicara-se a vida toda a ser conselheiro de Gabriel, por quem tinha imenso carinho. Após a morte de Violante, o menino, com cinco anos, passava a ser a única felicidade do médico. Segundo o narrador, Gaspar “foi-lhe criando uma amizade profunda e egoísta”. Quando o menino fez vinte anos, o padrasto lhe contou a história de sua mãe e lhe deu o punhal que fora do seu avô, pai de Violante. Em determinado momento, o narrador interrompia a narrativa para chamar a atenção para o
caráter de Gaspar: “O leitor deve ter reparado como [Gaspar] percorre, no correr do romance, toda a escala patológica da vida humana. Foi romântico, apaixonado, descrente e, afinal, dramático”.
A demonstração mais clara do significado negativo de uma educação romântica está na comparação entre Gabriel e Gustavo (sobrinho de Gaspar, alguns anos mais novo que Gabriel, filho de Virgínia e Paulo Mostela). Gaspar e Gabriel conversam no gabinete de trabalho do primeiro. Gabriel reclama que Gustavo os chamou de “duas crianças, dois tipos românticos”:
E olha que ele disse meia verdade, respondeu Gaspar, depois de uma pausa, — porque, no fim de contas, as circunstâncias especiais de nossa existência puseram-nos fora do alcance das forças práticas da vida comum e das leis reguladoras da sociedade. Hoje mesmo, que já estou velho e vejo o mundo por um prisma diverso; hoje, que tenho o raciocínio apurado e a experiência completa das coisas, ainda me sinto dominado pela corrente romanesca em que nasci, e na qual palpitou minha juventude. Tu vieste depois, é certo, mas não vieste no teu tempo; nunca dependeste dos homens para os conheceres; nunca foste oprimido para poderes ter uma compreensão perfeita da justiça; nunca sofreste as misérias, as decepções, as lutas pela existência, — o trabalho, o estudo, a experimentação das dores vulgares, para poderes formar uma ideia justa da verdade; e, nessas condições, sem um lugar entre os homens, sem parentes, sem responsabilidade e sem amor, vivendo às cegas, iludido, explorado e desestimado, não pudeste compreender o mundo que te cercava e tiveste de voltar as vistas e a atividade de teus sentimentos para o passado. Esse passado era tua mãe e eu, isto é, era o romantismo no seu maior desenvolvimento. E, já pela hereditariedade natural, já pela educação sentimental que te dei inconscientemente, nunca chegaste a compreender a época em que tens vivido.
Gustavo, ao contrário, nascera “no seu tempo”, ou seja, tinha um “espírito moderno, frio e observador”. Revoltava-se contra Gabriel e Gaspar por achá-los “idealistas, contemplativos”, enquanto ele era “trabalhador, independente”. Essa oposição entre o “romântico” e o “observador” equivalia, de fato, aos contrastes entre a escola romântica e naturalista. A discussão do assunto nesse romance esteve presente na edição de 1886 e na edição modificada, A Condessa Vésper.
Com efeito, era um tema relevante para o romancista naquele momento, assim como mostra que, mesmo em Memórias de um condenado, havia a intenção de exibir determinantes do meio para a construção do caráter das personagens, movimento principal dos romances feitos a partir do método experimental. Essa constatação é relevante, pois indica que as intervenções feitas no romance em 1901 não estavam
voltadas apenas para uma “depuração do estilo” como aponta Milton Marques. A compactação de capítulos não foi decorrência de uma apresentação do romance sob uma forma mais “naturalista”, pois essa já estava presente em Memórias de um condenado. As personagens principais são expostas como inerentes ao meio em que nasceram e foram criadas e essa característica da narrativa é desenvolvida exaustivamente em Memórias de um condenado.
Assim, Ambrosina, como Gabriel, era produto do ambiente em que nascera:
por um fenômeno de seleção natural, Ambrosina reproduzia, com as modificações correspondentes às circunstâncias de seu meio, todos os sonhos de ambição e todas as vertigens do egoísmo, que um dia abalaram o cérebro de seu pai, e sob cuja influência palpitou a sua existência inteira.
As personagens reagem a partir de uma “combinação experimentada”, em que figuram como elementos vivos de um experimento, colocadas em um determinado meio e sob determinadas circunstâncias. A consequência, como não poderia deixar de ser, é dramática. Digamos de outro modo: é dramática dentro das condições possibilitadas por um determinado meio já delimitado pelo autor. Memórias de um condenado exibe, ao menos, dois episódios retirados de A Condessa Vésper que fazem referência à influência do meio e também às narrativas de crime.
O primeiro deles remete-nos ao crime de Pontes Visgueiro ocorrido em 1873 e às narrativas geradas pelo caso. Na época do crime as principais discussões em torno do assassinato brutal cometido pelo desembargador estavam em torno do seu estado alterado pela velhice, proporcionando-lhe uma disfunção física e psicológica. Em Memórias de um condenado, essa situação é descrita a partir de alguns eventos vividos por Gaspar e a sua condição é delimitada como parte do “erotismo senil”.
Durante algumas páginas, o narrador se concentra em descrever a sedução de Gaspar por Ambrosina. Ele a procurara para exigir que a moça — que nesse momento da narrativa já era uma famosa prostituta — não voltasse a procurar Gabriel. Padrasto e enteado iriam viajar no dia seguinte e a intenção de Gaspar era afastá-la do rapaz, para que ele não desistisse da viagem. Porém, ela deseja que, para isso, ele passasse por uma “prova”: encontrá-la à meia-noite daquele dia, para despedirem-se. Nesse encontro, Gaspar não consegue controlar o desejo instigado pela sedutora mulher e, mesmo contra a vontade:
(.. ) sem prestar contas de seus raciocínios, sem ousar formular uma ideia, tomou Ambrosina nos braços e, trêmulo, cheio de ansiedade, foi depô-la na cama, que ficava no repartimento próximo.
Ela não lhe deu tempo para fugir, puxou-lhe os braços em volta do pescoço e colocou os lábios contra os dele.
O velho médico sairia da casa apenas no dia seguinte, nove horas da manhã, com o “coração oprimido, o corpo mole”.56 Em A Condessa Vésper, o evento termina com a chegada inusitada de Gabriel, que finaliza a situação de forma mais dramática:
(.. ) com um gesto profissional e certeiro, passou-lhe os hábeis braços em volta do pescoço, grudando-se toda a ele e prendendo-lhe os lábios com os dentes.
O Médico Misterioso ia arrojá-la de si, quando de súbito se arredou o reposteiro da entrada, deixando ver o vulto transformado de Gabriel, que, trêmulo e arquejante, olhos em fogo, os observava mais pálido que um cadáver.
O episódio de Memórias de um condenado fornece ensejo para futuros encontros entre Ambrosina e Gaspar, que se apaixona pela moça. Segundo o narrador, “já não era amor, era moléstia”. Os eventos de A Condessa Vésper eram bem distintos. As alterações não forneceram uma “depuração do estilo”, mas transformaram a cena. De fato, a entrada dramática de Gabriel era mais improvável que a sedução de Gaspar por Ambrosina. Neste último caso, o “curso fatal dos acontecimentos” parece mais plausível.
A relação Ambrosina-Gaspar foi possível pelo mesmo estado que proporcionou a ligação de Pontes Visgueiro com Maria da Conceição no crime ocorrido em São Luís do Maranhão em 1873. A “moléstia” foi citada no julgamento do desembargador como um elemento atenuante do assassinato. Porém, em Memórias de um condenado, ela é exposta como mais um dos fatores que justificavam o assassinato de Ambrosina por Gabriel.
As memórias de um criminoso (e não as suas confidências, como eram tratadas as “memórias” do condenado em A condessa Vésper) eram uma forma de mostrar que houve algum sentido no crime, que os motivos do assassinato foram relevantes, que o criminoso, durante o crime, encontrava-se em um “estado de alucinação”. A troca da palavra “memória” por “confidência” é essencial. Fazer uma “confidência” significa que havia uma intenção em “confiar” algo bastante pessoal; contar uma “memória” se remete ao fato de trazer uma lembrança de algo já vivido e parte do passado, um relato biográfico.
Em A Condessa Vésper a relação tumultuosa entre Ambrosina e Gaspar desaparece. Assim, um longo capítulo final — “Os brilhantes do Farani” descreve o fim da relação entre Ambrosina e Gabriel, em que ambos estão envelhecidos e sem dinheiro. Não há nenhuma intenção em ressaltar determinados momentos fundamentais que levaram ao assassinato de Ambrosina. Em Memórias de um condenado, ao contrário, os dois últimos capítulos são dirigidos ao crime e sua explicação.
O capítulo CV — “Desfecho” prioriza o momento do assassinato. Pela divisão feita na publicação periódica, percebe-se a importância desse momento, que ficou disperso em A Condessa Vésper. Assim, o capítulo CIV — “Dissolução”, além da morte de Gaspar, decorrência da descoberta de suas relações com Ambrosina por Gabriel — tinha como eixo a insistência da moça em possuir certo “broche de diamantes” que estava na vitrine da joalheria Farani. O final do capítulo incitava o suspense: “E Gabriel tomou a direção da casa do Farani”. “Desfecho” — penúltimo capítulo — tem a descrição do assassinato de Ambrosina que, ao contrário do mesmo evento em A Condessa Vésper, ainda permanece agonizante por algumas horas. O último capítulo retornava à carta do condenado: “Últimos raciocínios de Gabriel”.
Memórias de um condenado era, de fato, um romance bem mais impressionante que A Condessa Vésper. Os capítulos que relatam o roubo que Ambrosina obrigava Gustavo a cometer e o seu consequente suicídio — que foram completamente retirados do romance reformulado — apresentavam detalhes dignos de um romance sensacional, assim como as cenas iniciais da noite de núpcias de Ambrosina e Leonardo. O marido tinha um ataque de hidrofobia e se transformava em uma “fera” que atacava Ambrosina com “uma dentada na polpa macia de um dos seios”. A descrição feita em Memórias de um condenado era bem mais sensacional que aquela apresentada em A Condessa Vésper. No primeiro romance, Leonardo “tinha a boca cheia de carne e o sangue escorria-lhe por entre os dentes”; enquanto em A Condessa Vésper não há nenhuma referência aos detalhes do ataque feito por Leonardo.
Os capítulos sucintos de Memórias de um condenado eram adaptados para fornecer sensação em momentos importantes da narrativa, normalmente vinculados a fatos específicos que mostravam Ambrosina como uma mulher traiçoeira. Com efeito, essa era a intenção principal da memória do criminoso: mostrar que a pessoa assassinada era, em grande parte, culpada do crime. Portanto, retirar o foco do criminoso e voltá-lo à vítima fornecia o efeito desejado em A Condessa Vésper, ou seja, “mostrar ao leitor quanto é perigosa a beleza de uma mulher do jaez da Condessa Vésper”. Porém, alterava o sentido inicial de Memórias de um condenado, que era mostrar a fragilidade de uma criação inadequada e o caminho traçado pelo criminoso até o crime. Características presentes em narrativas ficcionais de crime.
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Fonte:
Ana Gomes Porto: “Memórias de um condenado e Mistério da Tijuca, Romances de crime”. Floema — Ano VII, n. 9, p. 33-60, jan./jun. 2011
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