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The Raven
The Raven – em tradução comum, O Corvo – é o mais
famoso poema de Edgar Poe, e teve sua primeira versão publicada em
Janeiro de 1845, em uma edição do New York Evening Mirror. A obra
faz-se notada pela rigidez matemática empregada em sua métrica, sua musicalidade
preeminente e linguagem rica em artifícios melódicos, além de sua marcante
atmosfera sobrenatural.
A reputação de The Raven é evidente em suas
frequentes traduções. Segundo Kopley e Hayes, destacam-se “as francesas (de
Baudelaire e Mallarmé, dentre outras) e a tcheca, a húngara
e a romena, a polonesa e a croata, a portuguesa e a chinesa” (2002, p. 196).
Além, “sua influência também pode ser percebida em uma variedade de obras
literárias, incluindo Out of the cradle endlessly rocking, de
Walt Whitman, Lolita, de Vladimir Nabokov, The jewbird, de
Bernard Malamud, e The parrot who knew papa, de Ray Bradbury” (IBID., p.
196).
No poema, um narrador de nome desconhecido tenta
aliviar sua “amarga, infinda, atroz saudade de Lenora”, ocupando-se em
destrinchar “vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais”. O solitário
acadêmico tem sua leitura subitamente interrompida pelo som de alguém que bate
levemente à porta – somente para descobrir, após abri-la, que há lá fora
“escuridão, e nada mais”. Ele então passa a ser atormentado pela imagem de sua
amada cujo nome, na mesma escuridão, ele sussurra, tão somente para escutar de
volta o eco de sua voz.
Tão logo nosso protagonista retorna à sua miséria,
“mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais” – ao que ele abre a
janela e, “em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto”. É o afamado Corvo,
“hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais”, que percorre toda a dimensão
do cômodo para então repousar em um busto de Atena, bem sobre a porta; e ali
fica, “empoleirado, e nada mais”.
Quando é perguntado sobre seu nome, o Corvo grasna em
retorno um surpreendente “nunca mais”, que em seguida se revela – após breve
reflexão do estudioso – nada que não simples repetição, que decerto aprendera
“de um dono a quem tortura uma implacável desventura”.
O estudante, então, se senta numa poltrona em frente
ao pássaro e começa a especular, “absorto e mudo”, em torno daquilo que o
funesto Corvo quisera dizer com nunca mais – poltrona essa que lhe traz
lembranças dolorosas da “deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora”. De
todo modo, mesmo sabendo da natureza irracional do discurso feito pelo animal,
ele prossegue inquirindo-o com toda a sorte de indagações, recebendo sempre a
mesma resposta: “nunca mais”. Ao perceber a inutilidade do diálogo o narrador
cede, tentando expulsar do recinto o Corvo a brados e impropérios, sem,
contudo, obter êxito.
O Corvo sobre o busto permanece,
“hirto, sombrio”, projetando sua sombra através da luz disforme da lâmpada –
traçando o destino do solitário: “Nela [na luz], que ondula sobre a alfombra,
está minha alma; e, presa à sombra, não há de erguer-se ai! nunca mais!”.
Á meia-noite de uma noite erma e sombria o Corvo
hierático e soberbo de Edgar Poe ganharia vida, grasnando repetições que
fechariam sextilhas com versos cataléticos, transformando o poema narrativo num
dos mais famosos já escritos. Tanto pelo efeito emotivo –
causado pela mimetização de temas, quanto pelo rigor simétrico empregado, é de
se admitir que até seus versos brancos sejam dignos de nota; decerto não
haveria quem ousasse sobrepujar Poe em se tratando de melindres artísticos,
quer em passado ou presente.
Dotado de riqueza semântica ímpar, Poe se valeu de uma
intrincada gama de recursos poéticos para construir sua obra. Seja na forma de
aliterações, alusões ou gradações, ele foi exponencialmente preciso, de modo
que se mantivessem todos os referenciais poéticos ditados pela cátedra. A
partir dessa argumentação se torna pertinente à pesquisa esmiuçar cada um dos
aspectos concernentes à composição da obra, à luz da própria teoria de Poe.
Nesse caso, nada mais justo, em se tratando da análise do poema, iniciar pelo
mais importante artifício utilizado –
assim considerado pelo próprio autor: o refrão. Se assegurando de seu valor
intrínseco, ele passou, então, ao aprimoramento do recurso.
Segundo Araújo, o refrão aparece como elemento de
extrema importância no poema, tendo em vista sua capacidade de armazenar uma
relação de analogia, ou similaridade, que aproxima a extensão do tema com suas
implicações de tom, tema, figura da mulher e a melancolia (2002, p. 97). O refrain,
portanto, confronta uma outra equação matemática à extensão do poema, de forma
a se poder inferir que ele se encontra em uma relação diretamente proporcional
àquela. Entretanto, “se com o refrão pode-se prolongar o tom da melancolia, por
outro lado, esse prolongamento repetitivo tende a levar o ritmo do poema para a
monotonia” (ARAÚJO, 2002, p. 98). É assim que o poeta chega ao ritornelo, ou à
sua essência. Este, proferido por um ser não humano, justificaria a sua
monotonia e, ao mesmo tempo, ampliaria o leque semântico.
Poe também faz uso, em The Raven, de vários
símbolos – o mais óbvio deles é o próprio Corvo. O tom melancólico e a
representação do animal como ave de mau agouro garantiram-no lugar de destaque
no poema por ser capaz de manter – a partir de sua recorrência – o tom
pretendido pelo autor. Esse conceito é corroborado pela tortura a que o
narrador se submete, ao inquirir o pássaro com perguntas às quais ele já havia
calculado a única resposta existente no campo das possibilidades. Um outro símbolo
importante na obra é o busto de Palas (Atena). Segundo Poe, uma das razões
porque o Corvo decidiu repousar sobre a deusa da sabedoria é fazer referência à
erudição do acadêmico, além da sonoridade da palavra “Pallas” em si (1994, p.
1540).
Muito embora não salte aos olhos em primeira
instância, outra analogia pode ser feita através do emprego de “midnight”, no
primeiro verso da primeira estrofe e “December”, na mesma altura da segunda
estrofe. Ambos os vocábulos simbolizam o fim de um ciclo, obviamente precedendo
o início de outro, desenhando uma mudança vindoura. Poe também faz referência à solidão do narrador – que é simbolizada pelo
quarto onde ele se encontra –, bem como a tristeza sentida pela perda de
Lenore. O recinto é ricamente mobiliado, e remete o narrador a essa mesma
perda, delineando o efeito de beleza na obra. A tempestade, em seu turno, é
usada para ressaltar o isolamento vivido pelo narrador, revelando um contraste
metonímico entre a calmaria dentro do quarto e a tempestade lá fora.
Além disso, faz-se notar, segundo Eco, a criação de um contraste monocromático
entre o preto – presente na noite umbrosa, na escuridão, na plumagem do Corvo –
e o alvo busto de Palas onde a ave se posicionou, indicando, respectivamente, a
morte e a sabedoria (2007, p. 339).
Outra característica marcante na obra poesca é o uso –
sutil ou conspícuo – de alusões. Poe diz, por exemplo, que o narrador é um
jovem acadêmico. Embora isso não seja explicitado no poema, o é, em contrapartida,
em The philosophy of composition. Em adição, pode ser também relacionado
ao busto de Palas, bem como aos “vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
os quais se arrastam pelos olhos do jovem. O autor, outrossim, faz referência
ao ocultismo através das palavras da persona, ao acreditar que “Night’s
Plutonian Shore”, versado por Fernando Pessoa como “trevas infernais”, é de
onde o Corvo vem.
Poe também faz menção ao “Bálsamo de Galaad”, uma
referência ao Livro de Jeremias (8:22) na Bíblia Sagrada:
Não haverá mais bálsamo de Galaad?
Nem se poderá encontrar um médico?
Por que, então, a ferida da filha de um povo
Não se há de cicatrizar?
No referido contexto, o bálsamo de Galaad é extraído
de uma planta e usado para fins medicinais – sugerindo, talvez, uma possível
necessidade de recuperação por parte do narrador, após a perda de sua amada.
Ele também especula em torno de uma possível admissão de Lenora no Paraíso ao
se referir, na antepenúltima estrofe, à “Aidenn”, que foi unanimemente
traduzido, em português, para “Éden”. Em “Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen
censer/Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor” o
narrador imagina serafins adentrando o recinto. Ele pensa que estão tentando levar embora a
lembrança de sua amada, usando Nepenthe – uma droga
mencionada na Odisseia de Homero – para induzir o esquecimento. Poe,
além, dominava um extenso vocabulário. Por vezes, isso significava introduzir
construções que não eram comumente utilizadas. Em The Raven, o uso de
linguagem arcaica parece apropriado, já que o poema trata de certo estudioso
que passa a maior parte de seu tempo em companhia de “muita lauda antiga”.
Destarte, substantivos como “mien” e “obeisance”, pronomes como “thee”, e
verbos como “hath” – além das próprias alusões acima citadas, obedecem aos
quesitos determinados.
No que tange a estrutura poética da obra, Poe faz,
certamente, jus à caracterização que a cerca, utilizando uma relação matemática
para compor a equação extensão/efeito em The Raven:
[...] a extensão de um poema deve ser calculada, para
conservar relação matemática com seu mérito; em outras palavras, com a emoção
ou elevação; ou ainda em outros termos, com o grau de verdadeiro efeito poético
que ele é capaz de produzir. [...] Alcancei logo o que imaginei ser a extensão,
conveniente para meu pretendido poema: uma extensão de cerca de cem versos. De
fato, ele tem cento e oito (POE, The philosophy of composition,
1846 apud MENDES e AMADO, 1999, p. 104).
A partir dessa exposição, observa-se que o poema, em
sua métrica, é composto por 18 estrofes de seis linhas cada. Barroso nos
presenteia com uma análise minuciosa da primeira estrofe, como pode ser vista a
seguir:
De início temos aquele “once upon”, em que o “on-” de
“once” faz eco no “on-” de “upon” e vai repercutir, mais à frente, no “pon-” de
“pondered”; depois, temos o “dreary” que é uma rima interna para o “weary” do
final do verso, o qual, por sua vez, integra o arrastado efeito aliterativo
“while/weak/weary”. No segundo verso, os recursos anteriores se sucedem: “over”
que ecoa em “volume”; “quaint and curious que repetem o efeito do “weak and
weary” do primeiro verso – seguido por uma insistência de tons em “o”; em
“curious volume of forgotten lore” e, em coda, no “nodded” do verso seguinte
(2000, p. 17).
Ele ainda continua, citando aliterações em /n/ encontradas
no terceiro verso, em “nodded, nearly napping”, além dos gerúndios dos verbos
monossilábicos “nap”, “tap” e “rap”, de efeito onomatopaico. Há de se ressaltar
ainda a insistente repetição de sons em /ə/, trazendo à tona “of some one” e
“some visitor”, com a introdução simultânea do efeito sibilante em “s”, “some”, “tis” e “this”; além do fonema /t/ em “midnight”, “quaint”,
“forgotten”, “tapping”, “gently” e “muttered”, como pode ser percebido no
decorrer de todo o poema.
No geral, a métrica utilizada é o octâmetro trocaico –
oito pés trocaicos por linha, cada pé tendo uma sílaba forte seguida de uma
sílaba fraca. Com a finalidade de se expor a estrutura silábica do verso em The
Raven, tomemos, exempli gratia, a primeira linha da sexta estrofe: “Back
in- to the cham- ber turn- ing, all my soul
with- in me burn- ing”. Assim, Edgar Allan Poe, em The philosophy of composition,
admite:
O primeiro é trocaico, o segundo é octâmetro
acatalético, alternando-se com um heptâmetro catalético, repetido no refrão do
quinto verso e terminando com um tetâmetro catalético. [...] o pé empregado no
poema (troqueu) consiste em uma sílaba longa, seguida por uma curta; o primeiro
verso da estância compõe-se de oito desses pés; o segundo, de sete e meio (de
fato, dois terços), o terceiro de oito, o quarto de sete e meio, o quinto idem,
o sexto de três e meio (POE, 1846 apud MENDES e AMADO, 1999, p. 109).
O esquema de rimas é [ABCBBB], ou [AA, B, CC, CB, B,
B], se contar com as rimas internas. Em cada estrofe, as linhas [B] rimam com
“nevermore” e são cataléticas, colocando ênfase extra na sílaba final. O poema
também faz um recorrente uso de aliterações, como se faz perceber, a partir do
emprego do fonema /d/, nos dois primeiros versos da quinta estrofe:
Deep into that darkness peering, long I stood there,
wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortals ever dared to
dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no
token,
And the only word there spoken was the whispered word,
"Lenore!"
This I whispered, and an echo murmured back the word,
"Lenore!"
Merely this, and nothing more.
Desse modo, Araújo completa: “[The Raven]
aponta para essa intuição matemática, para esse espírito de simetria, nas
estrofes, ou na musicalidade do poema, composto por [, entre outros,]
aliterações repetitivas” (2002, p. 93).
Diz-se, precisamente, por “entre outros”, figuras de
linguagem, semânticas ou sintáticas, donde aparecem, além das explicitadas por
Barroso, “grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous”, em forma de gradação;
hipálages em “all my soul within me burning” e “take thy beak from out my
heart”; apóstrofes, em pontos perceptíveis; metáfora em “whose fiery eyes now
burned into my bosom’s core”; e perífrase em “ungainly fowl”. Além, temos em
“entreating entrance” uma paranomásia; uma assonância entre “deep” e “peering”;
epístrofes em todos os quartos e quintos versos de cada estrofe; e zeugma em
“let me see, then, what threat is, and this mistery explore”. Poe também faz uso de vários versos
ecoicos, como em “from my books surcease of sorrow – sorrow
for the lost Lenore” e “and so faintly you came tapping, tapping at my chamber
door”.
No que diz respeito à estrutura do refrão, Araújo
explicita:
Ora, como bem observou Jakobson, o título do poema
espelha o ritornelo que é repetido como que obedecendo a uma equação matemática
guiada pela intuição. Neste caso “raven”, estaria para “nevermore”, no
semipalíndromo-anagramático do título, espelharia o ritornelo que se repete em
uma equação rítmica onde o rigor do poema se une à fantasia da emoção. (2002,
p. 94).
Desse modo, ele termina sempre com uma proximidade
acústica dos sons emitidos pelo Corvo, dando forma a “nevermore” que, por sua
vez, espelha o espectro do som aliterativo “raven”: [/r/v/n/-/n/v/r/]. Araújo
conclui, então, que esse equilíbrio, para alcançar a perfeição, deve ser
mediado através de rigor de raciocínio lógico (2002, p. 95). Portanto, de
acordo com Poe, a união do tema, do tom e da extensão pode ser representada
através de uma equação matemática.
Um outro ponto de suma importância na construção de The
Raven é sua temática. Tendo sempre em mente a criação de um efeito em que a
unidade poética prevaleça, a partir dos três pilares (extensão, província e
tom), Poe tocou o ápice, a melancolia suprema – segundo a compreensão
universal: a morte que, aliada ao conceito de beleza, levou à
representação do amante enlutado. Segundo Campos,
Nesse sentido, a atmosfera faz-se sombria e o tom
melancólico prevalece, garantindo a unidade poética desejada. O prazer é
atingido com a contemplação do belo, que, por sua vez, eleva a alma. A verdade
e a paixão, elementos do intelecto e do coração, respectivamente, podem servir
ao efeito geral. O artista os utilizará em adequada subserviência ao objetivo
predominante, desvelando-os em meio ao belo, que constitui a essência do poema (2007,
p. 99).
Assim, o autor revela sua predileção, segundo Araújo,
ao compor “um quadro onde a beleza e a melancolia sempre estejam presentes e
evoquem, no sussurrar do vento ou no bater da porta, ou mesmo na insistente
resposta do corvo, uma alusão perceptível ao nome de Lenore” (2002, p. 97).
Percebe-se, então, que a rotina dos sons emitidos pelo corvo é impelida
exatamente pela melancolia e tristeza as quais, por seu turno, são originadas
da morte (POE, 1994, p. 1538). A partir disso, o autor, guiado pelo raciocínio
lógico, combina todos estes fatores para criar a atmosfera, espaço/tempo
adequados à recordação da morte. De acordo com Araújo, esse processo
desencadeia o surgimento de toda a atmosfera sombria através da qual o narrador
se enleia: o símile da morte, da escuridão, de Lenore, a tempestade, a câmara,
e principalmente a figura do Corvo. Desse modo, a cada
resposta inerte do corvo – mesmo em face de questões distintas – a presença da
amada se prolonga. Assim, “o homem se deleita, não por acreditar ser o corvo
uma ave agourenta, mas pelo fato de ali estarem as recordações de tristezas em
forma de never more” (ARAÚJO, 2002, p. 99).
Indo além, ao se evidenciar o olhar enviesado do
narrador, pode-se notar a perda de sua racionalidade, quando o corvo entra e
pousa sobre o busto de Atenas, sucumbindo ante a lembrança de sua amada – tal
fato pode ser demonstrado pela tortura a qual o acadêmico se submete ao
questionar o animal, bem como a possibilidade de sua permanência definitiva.
Dentro dessa realidade criada pelo erudito, de acordo com Araújo, encontramos a
absolutização do tempo, a perda que impõe ao homem um “conformismo dentro do
inconformismo”, paradoxalmente sublimado na lembrança (2002, p. 102). Desse
modo, o poema eterniza a solidão humana e a impotência diante da perda. Além
disso, este quadro denota a “união do racional com o sensível, do amante com a
emoção cristalizada na recordação de Lenora” (ARAÚJO, 2002, p. 104).
A partir de um olhar mais atento, nota-se que a
temática em The Raven se torna autossuficiente, como evidencia o próprio
autor, ao discorrer sobre o modo como iniciou a composição de sua obra: “[...]
foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela primeira vez, tomei
do papel e da pena para compor a [16ª] estância” (POE, 1846 apud MENDES
e AMADO, 1999, p. 108).
Vê-se, então, que os principais elementos componentes
da poética estrutural poesca estão contidos na referida estrofe – a décima
sexta –, que consiste do clímax do poema, ou seja, a intencionalidade de o
autor alcançar o efeito máximo na estrutura poética da composição:
“Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if
bird or devil!
By that Heaven that bends above us – by that God we
both adore –
Tell this soul with sorrow laden if, within the
distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name
Lenore –
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name
Lenore”.
Quoth the Raven, “Nevermore”.
The Raven é, de fato, um desafio aos tradutores, dada a
vital interdependência entre o conteúdo emotivo da obra e seu suporte estrutural.
Segundo Barroso, “qualquer tentativa ou intuito de
alterá-la concorre fatalmente para a diluição ou mesmo para a dissolução do
encantamento poético causado precisamente por essa combinação” (2000, p. 15).
Para ilustrar sua argumentação, o crítico usa como exemplo a expressão-chave
“nothing more/nevemore”. Muito embora as opções “nada mais” e “nunca mais” nos
garantam cadência correspondente à original e os mesmos fonemas iniciais em
forma das consoantes vozeadas /n/ e /m/, lhes falta aquela soturnidade
proveniente do /ɔ:/ e que percorre toda a extensão do poema.
À luz dessa premissa, é pertinente ressaltar que, por
mais que se tivesse um conhecimento amplo do idioma de origem – de modo que se
pudesse, tal qual em Pessoa, reproduzir o sentido das palavras e sua posição
nos versos, bem como se valer de alguns recursos aliterativos – as perdas
seriam de tal ordem que invalidariam a consistência, o ritmo, a melodia do
original (BARROSO, 2000); donde se conclui que, mesmo em posse do conhecimento,
a transferência deste, de uma área para outra, envolve alguns obstáculos
importantes e variáveis (MINER, 1996), e quiçá intransponíveis.
O maior desses obstáculos é, obviamente, a questão
linguística. Partindo do próprio exemplo de Barroso, o jornalista Cláudio
Abramo, em produção independente, pontua categoricamente:
Como o Corvo diz “Nunca mais”, e como (na estrutura
original) em cada verso a rima em “-ais” ocorre mais três vezes, o resultado em
português é uma profusão de sibilantes – o que, por si só, já é suficiente para
destruir a atmosfera soturna na qual a narrativa transcorre. Esse, contudo, é o
menor dos males. As dificuldades mais graves acontecem com a escolha de
palavras terminadas em “-ais”, que todos os tradutores foram buscar entre
plurais de adjetivos em “-al”. [...] Acontece, porém, que Poe emprega poucos
adjetivos para estabelecer a ambientação da narrativa. O clima sombrio do poema
é induzido na imaginação do leitor em consequência do encadeamento. [...] A explicitação
de atributos, que permeia as traduções para o português, constitui um desvio
coletivo quanto ao modo narrativo (s/d, p. 71).
É também sabido que o idioma inglês abrange extensa
gama de possibilidades monossilábicas – recurso o qual Poe faz uso através de
“conjugação especialíssima de aliterações e assonâncias, rimas e repetições
homófonas” (BARROSO, 2000, p. 17), como se percebe em
While I nodded, nearly napping, suddenly there
came a tapping,
As of someone gently rapping, rapping at my chamber
door.
nas formas de nap, tap e rap.
Ocupando o gerúndio do idioma de destino três sílabas – e. g., “batendo”
– num verso onde normalmente caberiam palavras de uma ou duas, cria-se, tão logo
se tente verter o texto ao português, uma anomalia estrutural, tornando a
tarefa do tradutor ainda mais dura. Igualmente, a
necessidade de se manter fiel à estrutura proposta por Edgar Poe desencadeia
uma série de novas complicações.
Na tradução de Machado, por exemplo, o octâmetro
trocaico dá lugar ao verso livre parnasiano, proveniente da liberdade poética
pregada até então. Entretanto, note bem, isso não deve levar à pressuposição de
outra que não uma versificação quase tão rígida quanto a original, embora absolutamente
distinta. A estrutura do verso em Machado traduz-se, por conseguinte, em
estrofes compostas, obedecendo à seguinte regra, quanto à métrica: 8 - 8 - 12 -
8 - 10 - 10 - 10 - 8 - 12 - 8. Assim, ele derruba o sustentáculo da obra
original ao abandonar o quesito extensão, como pode ser percebido em sua
tradução. Cada estrofe contém dez versos, ao passo que a original
apresenta seis (ou onze, se admitirmos cesura entre os hemistíquios),
resultando em um total de 180 linhas, extrapolando o número considerado por Poe
como ideal para a leitura contínua de um poema. Além disso, as opções do
tradutor resultaram num desenvolvimento rítmico, à medida que a interposição de
troqueus dá lugar a uma forma poética irregular, se distanciando do sistema
padronizado proposto por Poe.
Nestes termos, Barroso ainda completa:
Com isso perde-se o andamento lento maestoso do
poema, bem como sua aceleração no final da estrofe, obtida pela contração do
verso longo num verso curto, que vai construir o refrão. A estrofe machadiana
apresenta-se, por isso, diluída e, em muitos casos, repetitiva, [...] em
prejuízo da síntese e acumulação energética do original. Além disso, Machado,
em seu empenho de contar uma história, passa por cima dos efeitos especiais que
conseguiram transformar essa história em poesia.
Indo além, a versão de Machado remete mais à prosa do
que à poesia de Poe, sendo criado um ambiente macabro e mais propenso ao horror
de seus contos, na medida em que o poeta opta por utilizar “a ave do medo, que
me amedronta, que me assombra”. No original, exempli gratia, a
meia-noite é monótona, ao passo que a mesma meia-noite, na tradução de Machado,
se torna apavorante. Em contrapartida, ele consegue captar a atmosfera
melancólica existente no fecho de The Raven, quando traz à tona a sombra
que reproduz no chão as linhas funerais, resultado da obstinação do Corvo.
Em outras palavras, de acordo com Sergio Bellei, as
mudanças de sentido que Machado impõe no original tendem a produzir um
deslocamento na ênfase em sua tradução, [...] no sentido de que o amante é
retratado não como um homem enlutado que ainda está racional o bastante para
perceber um corvo repetindo irracionalmente uma única palavra melancólica, mas
sim como a vítima completamente passiva de um pássaro que
traz uma mensagem sombria e incompreensível (BELLEI, 1987, p. 51) 91.
Assim, faz-se notar que a tradução de um poema envolve
mais do que sensibilidade e habilidade poéticas, embora essas características
sejam essenciais. Segundo Schultz, é necessário, além de um domínio da técnica,
conhecimento da obra do autor e das concepções estéticas que defendia. “Logo,
cabe ao tradutor e, por extensão, ao analista crítico de uma tradução, conhecer
o contexto histórico e social em que foi produzida a obra” (2009, p. 37).
Fernando Pessoa aparentemente levou em conta tanto o
efeito quanto o suporte estrutural de The Raven para realizar sua
tradução, muito embora seja possível por vezes perceber “o esforço de
replicação da métrica original [, que] forçou o emprego de palavras curtas e
ideias sintéticas – tudo o que o inglês tem por excelência e o português,
também muito caracteristicamente, não tem” (ABRAMO, s/d, p. 103).
Pessoa traduziu o poema a partir das definições de
Poe, ritmicamente, conforme a original, além de tentar reproduzir o esquema de
rimas: [AA - XB - CC - CB - XB - B, onde B é tal que termine sempre em -ais],
embora ele tenha tido mais sucesso com este último, como pode ser percebido em
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos
ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus
umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
À primeira vista, parece realmente conseguir imitar a
cadência da obra poesca, porém, ao se enveredar pelos caminhos obscuros do
poeta, nota-se que os versos trocaicos bem definidos dão lugar a uma dança de
formas que se interpõem, se encontrando, por exemplo, iambos – em “viestes
batendo” – e anfimacros – em “batendo mais e mais”; desse modo, sabotando o
ritmo encontrado em The Raven. Segundo Barroso (2000, p. 20), a métrica
compromete um tanto o andamento do verso, que por vezes acaba se atropelando.
Pessoa também faz uso de rimas fáceis, como em “adormecia”, “parecia”, “batia”.
Além, traços linguísticos resultam em recorrência de síncopes, como em “qu’ria”
e “p’ra”. O tradutor mantém a epístrofe original, contudo optando por “nunca
mais”, em detrimento do som oclusivo obtido em “nevermore”.
A tradução de Milton Amado – em que pese a questão da
fidelidade rítmica – se aproxima mais da original, haja vista à quase plena
manutenção dos troqueus, peças-chave na engrenagem do poema. Temos um claro
exemplo do fenômeno em “sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar
iguais”, onde o tradutor respeitou o fator linguístico já observado
anteriormente – corroborado através do uso, em sua maioria, de palavras
dissilábicas ou, quando muito, trissilábicas. Em se tratando da estrutura
melódica em The Raven, se observa um esquema de rimas algo distinto,
onde os finais do quarto e quinto versos ganham novas terminações, ilustrado
através do seguinte arranjo: [AA - XB - CC - CD - XD - B, onde B é tal que
termine sempre em -ais], reduzindo, como Machado, a frequência da rima em
questão. Desse modo, pode ser favorável ao poema a troca de uma terminação
recorrente, que se alterna a cada estrofe; o que permitiria o uso de
sonoridades menos abertas do que aquela forçada pela tradução de “nevermore”:
Ah! Claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
e o fogo agônico animava o chão de sombras fantasmais.
Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava
ainda
algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de
Lenora
– essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus
chamam Lenora
e nome aqui já não tem mais.
Voltando à tradução de Machado de Assis, identifica-se
o uso de várias figuras de linguagem, bem como no poema original (embora
distintos), como anáclase em “certo dia, à hora”; anáfora em “bem me lembro”;
sinérese em “ansioso pelo sol”; rimas cruzadas de eco em “acho a noite somente,
somente a noite”; estrangeirismo em “de um lord ou de uma lady”. Além, ele
reduz a ocorrência de palavras terminadas em -ais em cada estrofe – onde
normalmente seriam quatro, passou-se a duas. Isso, contudo, não o privou de
forçar, segundo Abramo (s/d, p. 74), a entrada do pronome “tais” em várias
oportunidades: “E disse essas palavras tais”; “que bate a estas horas tais”;
“Dessas duas pancadas tais”. O uso do pronome em questão, sendo redundante,
perde sua função semântica. Por outro lado, identifica-se a tentativa de
transportar os fonemas de “door” e “more”, para “porta” e “morta”.
Na terceira estrofe, Machado ignora a cor púrpura das
cortinas, utilizada por Poe com o intuito de reforçar a melancolia que
gradualmente cresce ao longo do poema, associada à paixão e dor do amante: ele,
dessa forma, desacelera a gradação. Na quarta estrofe o romancista comete
pecado inverso, ao eliminar contundentemente a ênfase colocada por Poe na
apreensão do acadêmico ao abrir a porta de seu quarto. Onde se tem, no
original, uma pausa que supõe profunda apreensão por parte do acadêmico em
[…] here I opened wide the door; —
Darkness there and nothing more”
Machado traduz, em verso único, “[…] a porta
escancaro, acho a noite somente”, ignorando de forma veemente a atmosfera proposta
por Poe.
Além disso, na sétima estrofe “saintly days of yore” é
transmutado em “antigos dias”. Já na oitava ele omite toda a caracterização do
corvo como “ghastly grim and ancient”, descrevendo a ave apenas como “feia” em
“Diante da ave feia e escura/Naquela rígida postura”. Na nona estrofe, ainda,
há uma inversão de valores sintáticos: em “much I marvelled this ungainly fowl
to hear discourse so plainly”, Machado troca um verbo por substantivo, ao
traduzir “discourse” como “pergunta”, em “vendo que o pássaro entendia/a
pergunta que eu lhe fazia”. Além disso, quem ouve não é o Corvo, mas sim o
narrador. No penúltimo verso, o tradutor repete que o Corvo ouve a pergunta.
Já na décima quinta estrofe, Machado opta por ignorar
(ou ignora, de fato) a alusão feita, ao escrever “Existe acaso um bálsamo no
mundo?” onde se fazia uma clara referência à Bíblia. Por fim, a décima sexta
estrofe tem seu início alterado, haja vista ao fato de Machado ter removido a
ênfase em Prophet 92, que se inter-relaciona diretamente ao
conteúdo emotivo do poema. Por outro lado, é positiva, voltando à estrofe XV, a
manutenção da ênfase em “Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo”,
reproduzindo com sucesso a atmosfera original.
Por outro lado, ao aprofundarmos na análise da
tradução de Pessoa, percebe-se que ele faz certas escolhas que acarretaram num
desvio do efeito poético: ele, por exemplo, dissocia completamente a memória da
amada de seu nome – se referindo a Lenore como “a amada”; “um nome cheio de
ais”; “a que [tu – o narrador] não esqueces”; “essa cujo nome sabem as hostes
celestiais”, sendo esta última ocorrência extraída da 16ª estrofe que,
originalmente, deveria abranger todo o efeito poético contido no poema. A opção
de Pessoa reflete a questão linguística: enquanto “Lenore” ecoa em “Never
more”, “Lenora” – ou qualquer outra adaptação plausível do nome – não satisfaz
as rimas em -ais. Entretanto, ainda à luz de seu sistema cultural, a rima
escolhida remete ao efeito de saudade, próprio da cultura portuguesa, justificando,
em parte, a escolha do poeta.
Especificamente, na primeira estrofe Pessoa troca
“weak and weary” por “lento e triste”, e, como aponta Bellei (1987), “agreste”
não é exatamente “dreary”; além de qualificar os livros como
“vagos”, haja vista à original, que os descreve como “quaint and curious”. A
próxima estrofe traz um verso agramatical em “Me incutia, urdia estranhos
terrores nunca antes tais”, já que “nunca antes” pede complemento de um
particípio, como “nunca antes sofridos tais”; além, “silken sad
uncertain rustling” sofre mutação e resulta em “tremer frio e frouxo”. Já na
quinta estrofe, Pessoa afasta-se do sentido original em “Mas a noite era
infinita, a paz profunda e maldita”; o poema de Edgar Poe traz palavras que
sugerem silêncio envolto em sutil delicadeza criada pelo ritmo suave e
sibilante sugerido pela consonância do /s/ e das nasalizações do /n/ em “But
the silence was unbroken, and the stillness gave no token” – nada que possa
parecer maldito, como Pessoa traduz.
A sétima estrofe apresenta outra distinção: no que
tange qualquer oportunidade de se referir ao Corvo, o é feito iniciando com
minúscula – ao contrário de Poe, que grafa enfaticamente o vocábulo “Corvo”. Na
oitava, “E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura” tornou vago o
modo como o pássaro o fez sorrir, abandonando o sentido original, que
evidenciava o corvo ludibriando o acadêmico ao sorriso, ao enfatizar o verbo no
gerúndio “beguiling” 93. Pessoa também ignorou a conotação alusiva
em “Night’s Plutonian shore”, substituindo-a por “terras infernais”. Na estrofe
seguinte, a última palavra em “Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera,
augusto” destoa do resto da estrofe, bem como da aura em que o Corvo estava
envolto. O adjetivo “augusto” parece simplesmente ser conveniente, ao rimar com
“busto”, e de forma alguma aparece na original. Ademais, “Que essa frase, qual
se nela a alma lhe ficasse em ais” produz sentido distinto: “That one word, as
if his soul in that one word he did outpour” não implica sofrimento, mas sim a
intensidade com que a palavra é dita.
No que diz respeito à estrofe XII, “Esta ave negra e
agoureira”, muito embora consiga manter um ínfimo efeito aliterativo, ignora a
gradação aliterativa do uso dos fonemas /g/, em sintonia com os sons nasais /n/
e /m/ e explosivos dos /t/, que realçam o crescendo rítmico do poema
aliado ao sentido: “this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird”.
Nesta mesma estrofe, os “maus tempos ancestrais” contradizem os “bons tempos
ancestrais” – oposição inexistente na obra original. Na estrofe subsequente, a
cor violeta do veludo desaparece – a tonalidade do tecido se faz importante
justamente para compor o ambiente macabro. Nas estrofes seguintes, duas alusões
à Bíblia são ignoradas, parcialmente ou completamente. Pessoa transforma
Serafins (Isaías 6:2) em anjos e substitui o bálsamo de Gilead (Jeremias 8:22)
por um bálsamo longínquo.
O final do poema apresenta nova série de distinções:
na décima sexta estrofe, o fragmento “by that God we both adore” é traduzido
como “Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais” – há aqui uma clara
alteração de sentido. Na estrofe que segue, a força emocional do discurso é
desvirtuada. Em “Be that word our sign in parting” o poeta prefere “Que esse
grito nos aparte”; além de substituir “shrieked” por “disse”. Ao final da
estrofe, nota-se que o intenso “Take thy beak from out my heart” é subvertido
em “Tira o vulto de meu peito”, jogando por terra toda a progressão melancólica
construída durante o poema. Já a estrofe derradeira sofre de uma espécie de
adjetivação excessiva, a partir da descrição de Pessoa, onde o olhar adquire
uma coloração “medonha” e a sombra se torna “tristonha” – sendo desnecessário
apontar a facilidade das rimas nessa altura. No entanto, à tradução de Pessoa
também podem ser atribuídos, além, vários recursos poéticos, como: diérese em
“ouvi o que parecia”, anáfora em “nada mais” e sinalefa em “e eis que”, bem
como pertinentes aliterações em “fitando”, “fiquei perdido” e “tais sonhos
sonhando que ninguém sonhou iguais”.
No que diz respeito à versificação da tradução de
Milton Amado, Barroso faz, mais uma vez, uma intrincada análise da primeira
estrofe:
No primeiro verso não foi mantido o adjetivo duplo
aliterativo (“weak and weary”) qualificando o poeta, mas o conjunto se
aplica a meia-noite (“erma e sombria”), colocado, como em Poe, no final do
verso. Foi preservado o som do e (“dreary”) em “vez”, “refletia”,
“meia-noite”, “erma”, e, em coda, em “ler”, “de”, “tempo”, “em”, “alguém”.
Foram mantidas as rimas tríplices “adormecido”, “ruído”, “batido” (de
categorias gramaticais distintas) e a insistência do t martelado a partir de
“refletia”: “noite”, “doutrinas”, “tempo”, “exausto”, “súbito”, “batido”. O
ônus da perda fica por conta da impossibilidade de salvar a onomatopeia dos
verbos monossilábicos “rap”, “nap”, “tap”, mas salvou-se o
sussurro do s a partir de “curiosíssimos”, que se reforça em “houvesse” para
terminar naquele obsessivo “Sim, é só isso e nada mais”, acentuado pelo “Sim”,
que não consta do original, mas funciona aqui como reforço sibilativo. (2000,
p. 24).
Na estrofe seguinte, vê-se uma extrapolação de sentido
em “e o fogo agônico animava o chão”, onde “agônico” seria correspondente a
“dying”. Além, observa-se uma engenhosa gradação em “algum remédio à amarga,
infinda, atroz saudade” que, contudo, não está contida na original. Nas
estrofes subsequentes, “purple” dá lugar à “rubra”; “Ergui-me após e, calmo
enfim” substitui “Presently my soul grew stronger”; além de novas extrapolações
em “se há muito aí fora esperais”, “em hora morta” e “Por que agitar-me de
aflição?” – já que não constam da original. Ademais, “a noite erma e tranquila”
diverge de “darkness”, na sexta estrofe. A seguir, “Pallas” dá lugar à figura
de “Minerva”, preferindo o autor a mitologia romana à grega, presente em The
Raven – Amado teria a chance de se redimir, mas optou por ignorar a menção
a Plutão em estrofe próxima.
Ao início da décima estrofe há uma mudança de sentido
em “com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais”. Na original, Poe
descreve como a alma do corvo emanava daquela única palavra, enquanto na
tradução de Amado a palavra, que se desdobra em sílabas, se torna, por alguma
razão, fatal. Na décima quarta estrofe, a alusão aos serafins de Poe desaparece
enquanto Amado oculta o sujeito em “qual se incenso ali descessem a esparzir
turibulários celestiais”. Na próxima estrofe observa-se a excelente intervenção
de Amado ao traduzir “Tempter” como “Tentador”, mantendo inclusive a maiúscula
enfática; vale menção, outrossim, à pertinente aliteração “maldita e estéril
terra, a esta precita”. Além destes, a manutenção da referência à Bíblia na
forma de “Galaad” também é válida. A respeito da estrofe XVI de The Raven,
Amado foi assaz preciso ao traduzi-la, muito embora ele falhe em dirimir o
desejo do acadêmico, ao trocar o apaixonado “clasp”, por um frio “verá”. Na
estrofe seguinte, o olhar do Corvo que, de acordo com Poe, lembrava o de um
demônio sonhando, foi transformado em um olhar “medonho” nos versos de Amado.
Além, o adjetivo “enorme” parece constar apenas para rimar com “disforme” e
“dorme”.
A tradução, em si, como observado no capítulo
anterior, vai muito além do simples traslado de sentenças de um idioma para
outro, especialmente em se tratando de tradução poética. Dessa forma,
obedecendo aos parâmetros preestabelecidos, apresenta-se uma contraposição de
versões – evidenciando suas semelhanças e diferenças, em seguida
confrontando-as sob um viés comparatista, na medida em que tal aferição possa
ser relacionada ao acorveamento.
Destarte, atentemo-nos aos três últimos versos da
quarta estrofe de The Raven, na qual Poe se vale de um conveniente
artifício para compor a atmosfera de suspense:
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber
door,
That I scarce was sure I heard you” – here I opened
wide the door; –
Darkness there and nothing more.
Ao cercar com travessões “here I opened wide the
door”, o autor destacou a apreensão do narrador ao abrir a porta de seu quarto.
Entretanto, o efeito gerado pelo recurso foi desde absolutamente ignorado em
Machado – que descartou tanto a pausa quanto a cesura – a ligeiramente
negligenciado em Pessoa – que fez vista grossa à pontuação original; ao passo
que Amado remanesceu fiel a Poe, ao respeitar, tal qual se observou, o sinal
gráfico e a mudança de verso.
Além, deve ser creditada ao próprio Amado a
manutenção, na estrofe IX, da tendência à comicidade em
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird […] above his
chamber door,
With such name as “Nevermore”.
A partir da superposição de traduções, observa-se que
tal efeito não pôde ser alcançado em qualquer outra que não a acima descrita,
que traz:
pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no
presente, que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta, uma ave
(ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta e que se chame “Nunca mais”.
No que diz respeito à décima estrofe, as traduções de
Machado e Milton Amado respeitaram o sentido original em “[But the raven spoke
only] that one word, as if his soul in that one word he did outpour”, ao passo
que Pessoa subverteu a narrativa, ao optar por “[Mas o corvo nada mais dissera]
que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais”. Percebe-se, ademais, a
conservação de “nepentes”, em Amado, onde Machado e Pessoa falham, ao citar
apenas o esquecimento proporcionado pela droga, contrariando o que pretendia
Poe com sua alusão. O mesmo acontece nas estrofes XV e XVI, onde a ênfase do
original em “Prophet!” é ignorada e mantida em configuração análoga à do
exemplo anterior – ignorada por Machado e Pessoa; mantida por Amado –, mesmo
compondo o vértice melancólico do poema. Cumpre ainda ser ressaltado,
novamente, que “nunca mais” – que consta de todas as versões analisadas – é a
tradução do conteúdo, e não do efeito em si que, primariamente, é gerado pela
oclusão em /ɔ:/.
De qualquer maneira, a pesquisa revela a existência de
algumas críticas discordantes acerca das traduções. Por exemplo, para Abramo, a
tradução de Pessoa guarda escassa relação com o poema original, seja qual for o
plano em que se fixe atenção. Não apenas alteram-se palavras e significados
como as vozes são desvirtuadas e a narrativa gravemente comprometida. E, para
permanecer apenas no nível mais vago (talvez aquele que Pessoa, conforme suas
próprias palavras [...] consideraria o mais importante sob o ponto de vista
“poético”), a própria sequência emocional, quando não radicalmente corrompida,
é amenizada (ABRAMO, p. 111).
Por outro, Haroldo de Campos defende que “do cotejo
das traduções [...], ressalta desde logo a superioridade da versão pessoana
sobre as outras duas” (1971, p. 9). Com base no ensaio de Roman Jakobson 94,
ele argumenta que Pessoa altera a métrica inglesa – moldando-a aos ouvidos
lusófonos, recurso que crê ser plenamente amparado à luz do discurso
vanguardista. O mesmo Haroldo afirma, ainda, que “a tradução de Machado de
Assis [é] demasiadamente explicativa e contaminada por versos parnasianos”
(IBID., p. 11), e argumenta que “a tradução de Óscar Mendes e Milton Amado é,
flagrantemente, a menos realizada das três. Mais explicativa e adjetiva ainda
que a de Machado” (IBID., p. 12-13).
Barroso, por sua vez, contraria a avaliação de Campos,
ao discorrer acerca da tradução de Amado:
A grande tradução do poema – a de Milton Amado –
preserva ambas as qualidades: é oral, declamativa, fluente, emocionante; e é um
texto denso, rico de invenções, de compensações, preservações e salvamentos,
que se presta ao estudo semiótico. [...] Aliás, em momentos cruciais do poema,
Milton soube introduzir alguns outros apoios sonoros, inexistentes no original,
que atuam como uma espécie de efeito de compensação pelas perdas anteriores
(2000, p. 24-25).
Assim, percebe-se que aferir a qualidade das traduções
de The Raven revela-se tarefa ingrata, haja vista à divergência de
opiniões geradas a partir da análise delas. De todo modo, análises frias como
as de Abramo e Campos – quer sejam positivas ou negativas –, acabam por
suprimir a relevância da tradução de Pessoa perante as literaturas de língua
portuguesa. Em seu turno, “Machado [, ao traduzir Poe,] remete à discussão
sobre a oposição entre a obra original e a tradução, questionando-a e apontando
para uma nova compreensão do tradutor como autor e do texto traduzido como
dotado de uma originalidade e autonomia frente ao texto fonte” (BARRETTO, 2007,
p. 3).
Com base nessa argumentação, atesta-se, à luz da
teoria de polissistemas, que “a tradução de fragmentos de textos estrangeiros
evidencia o importante papel que a tarefa tradutória exerceu não apenas [na]
carreira literária [de Machado], mas também no contexto cultural da sociedade
oitocentista brasileira” (FERREIRA, 2004, p. 125). Ou seja, a partir de sua
iniciativa um elo foi criado, abrindo espaço para que inúmeras outras traduções
da obra fossem feitas, tão somente para enriquecer a poesia brasileira.
Ademais, respondendo à questão feita ao final da seção
O Romantismo Sombrio, no capítulo II, ele de fato imprime sua marca na
obra original, já que “definitivamente não tenta reproduzir
um equivalente em som e sentido em português da maneira que Pessoa obviamente o
faz. A palavra ‘tradução’ quando aplicada à poesia parece ter significados
completamente diferentes para esses dois grandes escritores” (BELLEI, 1987, p.
49). Sergio Bellei continua sua comparação, atestando que, ao
contrário de Pessoa, “Machado é o escritor na colônia que estava sofrendo de um
tipo peculiar de ansiedade de influência e que estava particularmente ciente
das implicações dessa ansiedade para a construção da nacionalidade na
literatura” (IBID., p. 61) 96. Ele conclui, argumentando que “ao
usar a apropriação na escrita, o autor na colônia tem êxito ao produzir tanto a
repetição da origem quanto da inovação. Isso implica na habilidade de tornar
seu o que é estrangeiro e estranho. O que para Machado era o ‘instinto da
nacionalidade’, era o resultado do uso adequado da apropriação por parte do
escritor” (IBID., p. 59-60).
Desta sorte, faz-se pertinente citar duas traduções
pouco conhecidas, mas que, de maneira clara, ilustram a premissa depreendida do
parágrafo anterior. A primeira, de Eduardo Rodrigues, a despeito de suas
falhas, com a tentativa audaciosa de reproduzir o que nenhum ousou: o efeito em
“nevermore”, como pode ser percebido no excerto [estrofes VII e XVI] que segue:
Quando a janela abri depois, com muito estrépito a
transpôs
De antiga estirpe um Corvo altivo, pelos ares a se
impor!
Sem que do susto eu me recobre, o vejo, em pose muito
nobre,
Ao ignorar-me, pousar sobre minha porta, a seu dispor
–
Bem sobre um busto alvo de Palas, junto à porta, a seu
dispor,
Como se fosse grão-senhor.
“Profeta!”, grito, “Ó coisa preta! – Sim, profeta, ave
ou capeta!”
Pelo amplo céu – Pelo bom Deus que ambos amamos com
fervor,
Dize a este espírito refém da dor se ele há de no além
Rever, enfim, aquela a quem chamam nos céus Eleonor –
Irei revê-la? Vai, revela! Irei rever Eleonor?”
E o Corvo disse: “Não senhor!”
A segunda, de Diego Raphael, muito embora abdique de
certos aspectos do original, respeita fielmente o ritmo proposto por Poe,
mantendo inclusive a justaposição de troqueus, de modo a ser verificado a
partir da primeira e oitava estrofes:
Certa vez, à noite infausta, quando, extenuada,
exausta,
Debruçada eu tinha a vista sobre tomos doutrinais,
Quando, quase cochilando, ouvi, de súbito, tocando,
Tão de leve alguém chamando, tão de leve em meus
portais;
“Deve ser um visitante”, falo, “e bate em meus
portais.
É só isso e nada mais”.
E eis que a ave estranha, escura, por sua tão grave
postura
Contentou minha amargura, desprendeu-me de meus ais;
“Apesar da crista rente”, assim lhe digo, “és tu
valente,
Corvo de eras precedentes, vindo de orlas infernais;
Qual teu nome, o nobre nome nessas orlas infernais?”
Disse o Corvo: “Nunca mais”.
A seção não podia ser selada sem que se citasse a
única estrofe de The Raven traduzida pelo próprio Haroldo de Campos, a
derradeira – em poema e em capítulo, e que não passe despercebida a espantosa
proximidade à original, guardadas as proporções, tornada possível tão somente
pela atenção dispensada à maior parte das nuances que configuram o poema de
Poe:
E o corvo, sem revoo, para e pousa, para e pousa
No pálido busto de Palas, justo sobre meus umbrais;
E seus olhos têm o fogo de um demônio que repousa,
E o lampião no soalho faz, torvo, a sombra onde ele
jaz;
E minha alma dos refolhos dessa sombra onde ele jaz
Ergue o voo – nunca mais!
Sob estes termos, evidenciam-se as particularidades de
cada versão – ao abrigo da égide de Rushdie 98, que considera: “Em
geral admite-se que se perde algo na tradução. Agarro-me obstinadamente à ideia
de que também se pode ganhar algo com ela”. Quer-se referir, nesse caso, ao
próprio legado iniciado por Poe, que, passando por Baudelaire, Machado e
Pessoa, culminou, entre outros, na tradução de Amado.
Muito embora o senso comum admita The Raven
como cerne da extensa obra poética de Edgar Allan Poe, faz-se notar que a
inspiração do poeta atravessa elementos específicos, tangendo uma cortina de
artifícios poéticos e literários que remetem a facetas da própria personalidade
do autor – seja na morte da amada, como em Ulalume e Lenore, ou
na essência do Romantismo Sombrio, como em Tamerlane.
Tanto quanto já foi dito, o conceito-chave proposto
nessa pesquisa vai muito além de simples transposição criativa e, dessa forma,
conclui-se que o verdadeiro desafio consiste em desvelar, a peso de exaustivo
escrutínio, a ligação entre o acorveamento e o verdadeiro Edgar Poe –
não o solene e assertivo Poe de The Raven, conquanto represente parte
significativa no escopo do trabalho; ainda assim, na medida em que navegamos
pela poética do autor, percebe-se um Poe que se reafirma e outro que se nega,
ora corroborando, ora vilipendiando a própria fortuna crítica.
Destarte, em virtude desta dicotomia de valores,
buscar-se-á analisar obras de menor exposição acadêmica, de tal modo que, a
partir desse ponto, o trabalho comece a tornar visível o elo entre teoria e
objeto.
O primeiro desses poemas, Annabel Lee, é
possivelmente o último poema completo escrito por Poe, e retoma o tema favorito
do autor: a imagem romântica de uma bela mulher que morre subitamente na flor
da juventude. Edgar Poe compôs o poema no ano de sua morte, e não chegou a
vê-lo publicado. Muito embora tal afirmação não seja de aceitação unânime,
diz-se que a inspiração do autor veio de sua esposa e prima Virginia Clemm, que
tinha uma beleza descrita como sobrenatural. A moça pálida de cabelos negros se
casou com Poe aos treze anos, e era tão jovem quanto Annabel Lee – e quanto
Eulalie e Lenore, personagens de outros poemas do autor. Poe afirmou ter amado
Virginia como nenhuma outra, e, de fato, há registros que indicam que o autor
passou várias noites ao lado do túmulo da amada, imitando a obra, na qual pode
ser percebido comportamento semelhante do narrador. Os versos simples e a
temática familiar ao autor garantiram ao poema um reconhecimento quase tão
vasto quanto o de The Raven.
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Fonte:
Fonte:
PEDRO ALVES DE OLIVEIRA BRITO: "O ACORVEAMENTO DE
POE: Um estudo sobre como tradição e tradução se inter-relacionam". (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Estudos da
linguagem Linha de pesquisa: Tradução e práticas discursivas. Orientadora:
Prof.ª Dr.ª Maria Clara Versiani Galery). Mariana, 2014.
Estou encantada com o poema O Corvo e com o estudo apresentado. Qts mistérios, sentimentos, perguntas nos remete. Parabéns!
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