03/10/2015

Verbos do Salomão (Ensaio) - Volume 2 - de Salomão Rovedo

Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em: 
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:



---

Thomas Mann: A gênese do doutor Fausto


(Editora Mandarim - 2001)

Quincas. Quantas vezes já se comentou e se ouviu dizer sobre a técnica que o escritor usa para desenterrar suas criações do limbo da memória – sabendo-se que elas chegam ali de alguma maneira, real ou surreal. Tirando fora as bobagens de sempre, que são as cenas que o autor representa diante de um entrevistador, ou assinando autógrafo a admiradores tomados de espanto, ou, ainda, nas notas de jornais – verdade é que cada qual inventa o próprio sistema.

Cá comigo, agora mesmo ouço minha coleção de Stabat Mater – que somam uns oito – quando teclo estas notas que te mandarei. Outros preferem o silêncio absoluto, ao ponto de colocar uma luz vermelha à porta da sala de trabalho quando escreve. Há os que fingem que é trabalhoso – mas na maior das vezes é prazer mesmo – contando a história da inspiração e da transpiração. E uma grande exceção são aqueles espíritos românticos que confessam descaradamente ser apenas o ‘cavalo, o intérprete, o psicografo, enfim, da sublime inspiração.

Daí do teu reduto na Ilha do Maranhão, não terei a mínima ideia de cogitar quantos pores de sol serão capazes de acordar a divina musa que te inspira, quando botas no jornal essa coleção de bonitas crônicas que um dia irá desencasular e se borboletar em crisálida-livro. Imagino, porém, que há de ter uma cachacinha boazinha para bicar enquanto o dedo descansa e retornará ao taque-taque apressado com que articula a ruma de letras, transformada em minhocas legíveis, para depois futucar o solo fértil das cabeças dos leitores.

Tenho aqui comigo esse livrinho danado de bom que é “A gênese do Doutor Fausto”, que nada mais é o diário em que Thomas Mann anotou o dia a dia da criação do seu famoso romance. Entre outras coisas, dá para saber que Thomas Mann foi beber em muitas fontes pra construir o seu Fausto: Sigmund Freud, Bíblia, contemporâneos e amigos. Volta e meia ele acaba por reconhecer em obras alheias alguma similaridade com o que está escrevendo.

Mário de Andrade chama isso de ‘sequestro’, isto é, um tema lido e guardado no subconsciente reaparece transfigurado, imitação ou semelhança, em obra nossa. Na prática o que Thomas Mann fazia era usar argumentos, temas, buscar conhecimento pras coisas que não sabia a fundo. Mas o livrote chama mesmo a atenção para a grande e decisiva mãozinha dada por Theodor Adorno, confessada como imprescindível. E agora? Como o Fausto é tema recorrente nas artes (tu não tens o teu?), fica difícil aceitar a teoria dele, Theodor Adorno, de que a arte representa um protesto social.

Uma coisa que me deixou encasquetado e não consegui resolver foi a transformação da música em texto de prosa, como diz-que Thomas Mann conseguiu – o Diabo no romance é compositor ou musicólogo (aliás, como não li o Dr. Fausto, não estou seguro disso). Com a poesia se sabe do vínculo estreito: não só a música, mas todos os elementos musicais estão presentes e são importantes. Mas como fazer que o texto de prosa represente uma obra musical? Isso é possível ou interpreto mal a proposição? Para conseguir o seu intento Thomas Mann consulta não só Theodor Adorno – também musicólogo – como vários compositores de sua relação (Arnold Schoenberg principalmente), e diz que conseguiu o que queria, ora, pois o romance saiu, não foi?

Música – Prosa... Você sabe de alguma coisa parecida? Pode me dar alguma luz, ainda que teórica? Ou será que vou ter que ler o Dr. Fausto pra entender isso? Acho que sim. Recordo-me que certa ocasião Thomas Mann – também com dificuldade – de repente anota no diário:

– Agora sim, vejo bem claro, a música (acho que se refere ao Trio em Si Bemol de Franz Schubert), está todinha lá! Rapaz pareceu-me que ele conseguiu ouvir/ler a representação da música dentro do texto! Tudo se infere que, sendo o capítulo final do Dr. Fausto a exibição de um oratório, era esse o objetivo de Thomas Mann. Para mostrar a composição, não só em teoria, mas também na técnica, ele recorreu a tudo, desde Bach a toda escola de Arnold Schoenberg (música serial)...

É isso aí, primo, esses são alguns dos mistérios da Arte... “Eis o mistério da Arte” – se poderia dizer como no ritual da missa: “Eis o mistério da Fé!” Arte e Fé são misteriosas, por isso disse lá atrás que o artista tanto pode nascer em Alagoinha quanto em Viena, tanto faz...

Mas não sou ingênuo a ponto de duvidar se esse meu desconhecimento, a minha dificuldade em perceber certas nuances da Arte (como esta, talvez inútil, digressão sobre música/prosa) ocorre devido à informalidade com que aprendi minhas pequenas artes. Não disse autodidatismo porque, para mim, isso é coisa que não existe. Se pensarmos bem a história do conhecimento, vamos ver que tudo que se aprende, tudo que é transmitido, é de alguém para alguém. Portanto, o autodidatismo não existe – essa é uma palavra inútil.

Esse livrinho de memória do Thomas Mann veio bem a calhar porque – como sabes – estou encasquetado nos entremeios de criação da novela Chiara, tomei decisão (para acabar de vez com a ‘novela’ termina não termina): vou completar o capítulo que falta, vou botar o que tenho aqui tirado de um conto, e assim dou por finalizado.

Tem outro texto que queria incluir, te conto. Foi uma crônica que escrevi quando mãe Mizica morreu. Chamei ‘Tudo que mamãe me ensinou’ e saiu numa revista eletrônica chamada Confraria. Pois bem, a tal revista acabou e – como um dia profetizei – o texto foi pro espaço sidéreo do mundo digital (o espaço cibernético está mais cheio de almas penadas do que o purgatório de Dante). E nos meus arquivos não encontro mais nada. É uma pena, porque o texto se encaixaria perfeitamente...

Um último trabalho que essa novela me dará é encontrar um nome. Chiara não dá, já te expliquei o porquê. Não quero botar Clara, nem Klara, nem algo similar porque quero tirar da cabeça que não se trata de coisa biográfica – e não é mesmo! Fui fazendo ficção das lembranças que me vinham, misturando tudo e vendo o resultado da composição. Aliás, veja só como são as coisas, acabei de discutir isso quando falei de Thomas Mann. Puxa!

Assim, conversa puxa conversa, foi dessa maneira que o fantasma de Thomas Mann baixou em Cachambi, Rio de Janeiro, para trazer luz ao quarto escuro da criação que carrego comigo.


Rio de Janeiro, Cachambi, 07 de abril de 2013.

Nenhum comentário:

Postar um comentário