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O mal que JK nos causou
O que pensou JK quando ousou assumir a transferência da capital federal
para o planalto? É claro que nenhum mal lhe passou pela cabeça. O projeto era
antigo, com raízes no segundo Reinado, mas seja qual for o hálito histórico que
ambientou todo o processo – hoje completamente documentado – a consequência
refletiu na política brasileira como uma bordoada mal dada, cujo nocauteado foi
o povo. O que hoje nos aflige e nos derrota é o distanciamento físico entre o
político e seu povo.
Acabou o corpo-a-corpo, a vaca das reivindicações foi pro brejo com
corda e tudo, a pressão popular cujas raízes remontam à Revolução Francesa
esvaiu-se, quando se quiseram reunir milhões de pessoas para clamar pela
restauração da democracia, a responsabilidade caiu sobre o Rio de Janeiro e São
Paulo. Lula como líder sindical no planalto seria uma tragédia satélite, uma
piada sem quintal.
O distanciamento da sede política das grandes metrópoles implantou e
trouxe consigo a pior de todas as tragédias políticas ao gerar e fazer nascer
uma teocracia até então inimaginável: a democracia ditatorial. Aquilo que
parece mais não é: a perpetuação de uma ordem política na qual a ética e a
estética são descartadas de revés.
Na antiga capital federal, o Rio de Janeiro, o senado ficava bem ali nos
costados da Cinelândia, um reduto tradicionalmente rebelde e revolucionário,
onde até mesmo as reivindicações de ordem homossexual derrubaram convenções.
Era o reduto do teatro, do cinema, das boates e, portanto das bichas recém
assumidas. Qualquer movimento errado das autoridades, qualquer passo em falso,
qualquer escândalo mesmo menor, logo provocava a reunião do populacho disposto
a redirecionar os transviados.
A câmara dos deputados ficava logo ali na Praça 15 de novembro, ao lado
ao Paço Imperial que já era, desde o tempo do império, palco que refletia a
efervescência social e política da época. A república chegou e permaneceu sujeita aos mesmos tremores, as reuniões que pautassem assuntos
de mérito raramente ocorriam no silêncio pacífico dos gabinetes. O alarido lá
fora ecoava em cada ouvido como a lembrar que o eleitor estava atento ao
deslize de seus mandatários.
Os estudantes tinham uma atuação política mais fecunda e conviviam no
entorno do poder. A UNE era ali na Praia do Flamengo a quinze minutos do
centro, a Faculdade de Direito, na Praça da República, mantinha o Largo do
CACO, em perene ebulição, a Faculdade de Filosofia na Praça Itália fazia
vizinhança com o Restaurante Central dos Estudantes, o famoso Calabouço,
fundindo estudantes secundários e universitários num só elemento. O Ministério
da Guerra, que nunca foi um órgão popular, tinha de conviver com a grande massa
de trabalhadores que embarcavam e desciam dos trens da Central do Brasil.
Quando JK tomou coragem para antecipar-se à história estava escrevendo a
própria história. No entanto em tudo que ocorreu entre a ideia, o projeto, a
implantação, a inauguração e a transferência dos poderes para o planalto
central, em nada transpira a intenção de destravar o político do povo, o
mandatário do voto, a promessa da cobrança. O papel de vilão sobraria para os
prefeitos e vereadores, se já não viesse do alto a desmoralização das gestões,
carregando de impotência desmoralizadora qualquer sentimento de reação.
Terceirizou-se o poder.
A câmara dos deputados, o senado, o poder judiciário, estabelecidos numa
praça que não é a Praça 15 de novembro, ao lado ao Paço Imperial – o Palácio da
Alvorada – deixou de ser o palco capaz de refletir a efervescência social e
política, necessários ao debate das questões importantes. Não há mais o debate,
a população não tem como se pronunciar, Brasília enterrou o plebiscito.
O isolamento do poder numa redoma protetora fez com que aumentasse a
sensação de impunidade, aumentando o rebanho das ovelhas negras. Quem tiver
mérito e paciência pode se dar ao trabalho de fazer a estatística que, no entanto, está bem latente: a nova capital promoveu também os
casos de corrupção mais escabrosos, que passaram a ter uma magnitude
inconcebível, alçando a cifras imagináveis, neste país que todos os hóspedes do
Alvorada consideram pobre.
A república que chegou depois da ditadura permaneceu sujeita aos mesmos
tremores. As reuniões que pautam assuntos de mérito agora ocorrem no silêncio
pacífico dos gabinetes. O alarido ficou lá fora, bem longe, não mais ecoa nos
ouvidos dos políticos a lembrança de que o eleitor é o responsável direto pelos
mandatos e mantém o direito de cobrança. O poder hoje se exerce encobertado
pelos ternos e jaquetões impecáveis, etiquetados pelos melhores estilistas
italianos. A construção de Brasília acabou com a cobrança direta, nenhum
presidente se suicidará no Alvorada.
A construção de Brasília de fato colocou o nome de JK num patamar
elevado da história e o levou nome do Brasil ao cume da modernidade, não só
pela jóia arquitetônica que a cidade representa, mas também pela audácia e
coragem em transformar um empreendimento árduo e utópico na realidade de fato.
Essa aura de modernidade, porém, não impregnou o espírito ético dos políticos,
transformando o ideal numa mácula e o exercício da política em tragédia
nacional. Alguém duvida?
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