03/10/2015

Cervantes, Dom Quixote e outras do nosso tempo, de Salomão Rovedo

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O mal que JK nos causou

O que pensou JK quando ousou assumir a transferência da capital federal para o planalto? É claro que nenhum mal lhe passou pela cabeça. O projeto era antigo, com raízes no segundo Reinado, mas seja qual for o hálito histórico que ambientou todo o processo – hoje completamente documentado – a consequência refletiu na política brasileira como uma bordoada mal dada, cujo nocauteado foi o povo. O que hoje nos aflige e nos derrota é o distanciamento físico entre o político e seu povo.

Acabou o corpo-a-corpo, a vaca das reivindicações foi pro brejo com corda e tudo, a pressão popular cujas raízes remontam à Revolução Francesa esvaiu-se, quando se quiseram reunir milhões de pessoas para clamar pela restauração da democracia, a responsabilidade caiu sobre o Rio de Janeiro e São Paulo. Lula como líder sindical no planalto seria uma tragédia satélite, uma piada sem quintal.

O distanciamento da sede política das grandes metrópoles implantou e trouxe consigo a pior de todas as tragédias políticas ao gerar e fazer nascer uma teocracia até então inimaginável: a democracia ditatorial. Aquilo que parece mais não é: a perpetuação de uma ordem política na qual a ética e a estética são descartadas de revés.

Na antiga capital federal, o Rio de Janeiro, o senado ficava bem ali nos costados da Cinelândia, um reduto tradicionalmente rebelde e revolucionário, onde até mesmo as reivindicações de ordem homossexual derrubaram convenções. Era o reduto do teatro, do cinema, das boates e, portanto das bichas recém assumidas. Qualquer movimento errado das autoridades, qualquer passo em falso, qualquer escândalo mesmo menor, logo provocava a reunião do populacho disposto a redirecionar os transviados.

A câmara dos deputados ficava logo ali na Praça 15 de novembro, ao lado ao Paço Imperial que já era, desde o tempo do império, palco que refletia a efervescência social e política da época. A república chegou e permaneceu sujeita aos mesmos tremores, as reuniões que pautassem assuntos de mérito raramente ocorriam no silêncio pacífico dos gabinetes. O alarido lá fora ecoava em cada ouvido como a lembrar que o eleitor estava atento ao deslize de seus mandatários.

Os estudantes tinham uma atuação política mais fecunda e conviviam no entorno do poder. A UNE era ali na Praia do Flamengo a quinze minutos do centro, a Faculdade de Direito, na Praça da República, mantinha o Largo do CACO, em perene ebulição, a Faculdade de Filosofia na Praça Itália fazia vizinhança com o Restaurante Central dos Estudantes, o famoso Calabouço, fundindo estudantes secundários e universitários num só elemento. O Ministério da Guerra, que nunca foi um órgão popular, tinha de conviver com a grande massa de trabalhadores que embarcavam e desciam dos trens da Central do Brasil.

Quando JK tomou coragem para antecipar-se à história estava escrevendo a própria história. No entanto em tudo que ocorreu entre a ideia, o projeto, a implantação, a inauguração e a transferência dos poderes para o planalto central, em nada transpira a intenção de destravar o político do povo, o mandatário do voto, a promessa da cobrança. O papel de vilão sobraria para os prefeitos e vereadores, se já não viesse do alto a desmoralização das gestões, carregando de impotência desmoralizadora qualquer sentimento de reação. Terceirizou-se o poder.

A câmara dos deputados, o senado, o poder judiciário, estabelecidos numa praça que não é a Praça 15 de novembro, ao lado ao Paço Imperial – o Palácio da Alvorada – deixou de ser o palco capaz de refletir a efervescência social e política, necessários ao debate das questões importantes. Não há mais o debate, a população não tem como se pronunciar, Brasília enterrou o plebiscito.

O isolamento do poder numa redoma protetora fez com que aumentasse a sensação de impunidade, aumentando o rebanho das ovelhas negras. Quem tiver mérito e paciência pode se dar ao trabalho de fazer a estatística que, no entanto, está bem latente: a nova capital promoveu também os casos de corrupção mais escabrosos, que passaram a ter uma magnitude inconcebível, alçando a cifras imagináveis, neste país que todos os hóspedes do Alvorada consideram pobre.

A república que chegou depois da ditadura permaneceu sujeita aos mesmos tremores. As reuniões que pautam assuntos de mérito agora ocorrem no silêncio pacífico dos gabinetes. O alarido ficou lá fora, bem longe, não mais ecoa nos ouvidos dos políticos a lembrança de que o eleitor é o responsável direto pelos mandatos e mantém o direito de cobrança. O poder hoje se exerce encobertado pelos ternos e jaquetões impecáveis, etiquetados pelos melhores estilistas italianos. A construção de Brasília acabou com a cobrança direta, nenhum presidente se suicidará no Alvorada.

A construção de Brasília de fato colocou o nome de JK num patamar elevado da história e o levou nome do Brasil ao cume da modernidade, não só pela jóia arquitetônica que a cidade representa, mas também pela audácia e coragem em transformar um empreendimento árduo e utópico na realidade de fato. Essa aura de modernidade, porém, não impregnou o espírito ético dos políticos, transformando o ideal numa mácula e o exercício da política em tragédia nacional. Alguém duvida?

[Tema da obra]

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