Para baixar o livro, clique na imagem e selecione-o em:
↓
http://www.projetolivrolivre.com/
---
Disponível também em "Minhateca", no link abaixo:
↓
---
Primeira carta
Corte, 22 de dezembro de 1850.
Prezado
amigo e sr. – A falta de letras suas me tem sobremodo inquietado, e, não
podendo atribuí-la à moléstia, só encontro a causa de mal tão sensível a esta
mísera criatura na
inconstância
com que V. M., qual Judeu Errante,
não toma pé em terra alguma deste brasíleo Império. Devo ao Jornal do Commercio este meio, que de
hoje em diante seguirei para transmitir-lhe a salvo notícias desta Corte, que
tão vivamente lhe interessam. Li em um artigo do Jornal dos Debates, cuja tradução aqui se publicou, que alguns
britânicos espertos, para escaparem à finta do correio, em vez de cartearem-se,
correspondem-se por meio dos jornais em anúncios de tal sorte redigidos, que
são para os profanos verdadeiros enigmas. Aproveitei da ideia o que ela tem de
mais simples e inocente, sujeitando-me a maior porte, o da impressão, mas
segurando por este modo as minhas cartas, que lhe chegarão às mãos sem que
levem sobrescrito, e onde quer que V. M. esteja, graças à ubiquidade de que
também goza este gigante da nossa imprensa. Se até aqui, na mais íntima
confiança da amizade, eu não entregava ao papel meus sentimentos e ideias
acerca dos homens e das coisas políticas desta terra, em que aliás vimos ambos
a luz, devassada como fica a nossa correspondência doravante, só como
historiador de fatos tocarei em matéria que se refira à bifaceira política do
belo, fértil, mas infeliz Brasil. A crônica do que nesta pequena babel se
passar de mais notável e divertido, e que puder ser tirada à luz sem ofensa da
moral e da decência pública, e sem perigo para o incógnito cronista, é o
assunto sobre que versarão, as minhas missivas a datar desta, que, nem por ser
a primeira, escapou aos meus inveterados hábitos de escrever tarde, e,
portanto, muito de afogadilho.
Um
fato, que profundamente comoveu-me, e ainda aperta o coração de muitos amigos e
conhecidos, que são numerosos, é a morte prematura do Dr. Francisco Júlio
Xavier, lente da Cadeira de partos da Escola de Medicina desta Corte, um dos
seus primeiros clínicos, incontestavelmente o mais hábil parteiro do Império.
Simpático, dotado de espírito agudo, de uma expressão clara e elegante, de
temperamento o mais fleumático, indiferente às grandezas transitórias deste mundo,
o Dr. Júlio captou a estima e consideração de todos os que tiveram ocasião de
com ele praticar. Como criatura humana, tinha seu lado fraco, que é de esperar
mereça de Deus a indulgência que os próprios homens lhe não recusavam. Sua
clínica era das mais rendosas, mas viveu sempre precisado, o mais modestamente
possível, e deixou sua família na indigência, de que só a gratidão e a
generosidade dos amigos a poderão resgatar. No momento em que a vida se lhe
mostrava mais segura, bem-disposto, vigoroso e alegre, de volta da casa de um
amigo em cuja festividade doméstica havia tomado parte, a morte acometeu-o com
uma congestão cerebral, e em pouco mais de uma hora triunfou de existência tão
preciosa, ou fosse porque assim estivesse escrito no livro dos destinos, ou
fosse por erro de alguém que primeiro lhe acudira em caminho e o conduzira até
ao seio da família, entre a qual expirou, sem outro lenitivo que um mudo e
expressivo adeus aos cinco filhinhos, que iam ficar em mísera orfandade.
A
morte do Dr. Júlio veio dar-nos mais uma prova do que valem neste mundo as
qualidades que em tão subido grau ele possuía. Ninguém lhe recusou uma
expressão de dor, uma lágrima de saudade. O mais puro e odorífero incenso tem
sido queimado em torno de seu túmulo, por inúmeros poetas cujas produções
correm impressas neste e nos demais jornais e periódicos desta cidade. Mas não
era este o único e mais valioso serviço que a memória do ilustre finado devia
esperar dos amigos e da generosidade pública, cinco inocentes órfãos aí estavam
entregues à indigência, e estéreis seriam a compaixão e a saudade que ante
quadro tão tocante se limitassem a lágrimas e elogios póstumos. Uma subscrição
está sendo agenciada por alguns amigos do célebre parteiro, entre os quais se
distinguem como principais coletores o Sr. Francisco de Paula Brito, bem
conhecido como tipógrafo e poeta, e o Sr. Dr. José Maurício Nunes Garcia,
colega do finado por mais de um título, como professor da Escola de Medicina, e
como acreditado parteiro. Além deste auxílio, promoveu-se um benefício para os
cinco órfãos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, o qual teve lugar na noite de
20 do corrente. O concurso excedeu do ordinário, e sendo de esperar que as
joias dos camarotes e cadeiras se elevem acima do preço fixo, o produto do
benefício provavelmente corresponderá aos esforços dos seus filantrópicos
diretores e à religião do fim para que é destinado.
Bem
poucos, e pela maior parte fracos negociantes, são os franceses que aqui
existem no Rio de Janeiro, e, todavia, feridos nos mesmos afetos, sua
filantropia e patriotismo se manifestaram de uma maneira assaz recomendável.
Tributaram todas as homenagens de consideração moral às virtudes e serviços do
muito conhecido Dr. Sénechal, mas não pararam aí; valeram a sua filha, que ficará
sem recursos, com o produto de uma coleta, para a qual contribuíram também
brasileiros, e que subiu à não pequena soma de dez contos de réis. No cemitério
da Gamboa foi inaugurado, segunda-feira próxima passada, um simples e tocante
túmulo de mármore, assentado sobre uma lápide, e cercado por quatro cadeias que
se prendem a outras tantas colunas de pedra. Sobre a lápide desse túmulo lê-se
a seguinte inscrição, que recorda os louváveis sentimentos dos amigos daquele
distinto médico, que, como o Dr. Júlio, gozava de numerosas simpatias:
AU DOCTEUR SÉNECHAL
MEMBRE DE LA LÉGION D’HONNEUR
SES AMIS RECONNAISSANTS.
Nós
esperamos que os fluminenses que sem esse edificante exemplo outrora procederam
tão cavalheira e generosamente para com a família do Dr. Otaviano da Rosa agora
não ficarão aquém da fraternidade e gratidão dos franceses.
Estamos
presentemente em tempo de férias, e, portanto, na quadra característica da zona
tórrida que habitamos. As escolas já se fecharam; e nas duas academias
militares, na de Medicina, e no Colégio de Pedro II até os exames e
consequentes bacalaureatos e doutoramentos estão concluídos. Temos mais 37
médicos investidos do direito de curar ou matar, oito engenheiros militares e
um poder de bacharéis, com os quais todos bem se poderia criar uma povoação no
interior de nossas províncias. Mas, a julgar pelos precedentes, uns e outros
por aqui se deixarão ficar, prejudicando-se mutuamente, e engrossando as
fileiras do corpo de aspirantes aos empregos públicos. Felizmente, se devo crer
no que por aí dizem, daqui em diante o gênero bacharel obterá mais consumo nos
empregos de fazenda, e mesmo nos das secretarias de Estado em geral.
Os
alunos do templo de Hipócrates deram uma sentimental demonstração pela perda do
seu ilustre Mestre o Dr. Júlio, a quem alguns haviam tomado por paraninfo de
suas teses. Não só, segundo me referiu alguém que o podia saber ao certo, se
não prestaram para tornar a solenidade do doutoramento igual em brilho às destes
últimos anos, como, depois de terem recebido a investidura hipocrática,
dirigiram-se para o cemitério de Catumbi, onde repousam os restos mortais
daquele insigne médico, e sobre sua humilde campa depositaram uma capela de
jasmins e saudades. Alguns dos membros da faculdade acompanharam os novos doutores
nessa efusão de tão nobres e patéticos sentimentos.
Disse-lhe
que estávamos em férias, mas não pense que só me refiro ao mundo escolar. A
política também parece estar de verão. O Brasil cessou de publicar-se por tempo
indefinido, e por circunstâncias imprevistas; as outras folhas políticas não se
mostram muito fecundas. Mas isto é nada; o que me convence de que a política
cairá em completa pasmaceira é o receio que os calores de dezembro vão
incutindo, e a presença da febre amarela, ou coisa que o valha, na cidade de
Campos. Até alguns ministros vão tomar ar, o que, não só confirma aquele meu
prognóstico, senão ainda revela que os temores de guerra externa se esvaeceram,
bem que continuem as medidas preventivas. O Ministro da Fazenda, J. J.
Rodrigues Torres, retira-se com licença para sua fazenda; o da Guerra vai gozar
a branda temperatura das Paineiras; o da Justiça já lá está no Engenho Velho; o
do Império passa-se para o Jardim Botânico, e o de Estrangeiros para o Macaco.
Se a nau do Estado não corresse por mares calmos e conhecidos, os timoneiros
estariam mais próximos ao leme, e mais atentos ao tempo e à agulha.
A
família imperial vai passar o verão em Petrópolis.
Sinto
dizer-lhe que a Comissão de Higiene Pública, cuja criação tantos discursos parlamentares
e antiparlamentares custou ao Tesouro, ainda se não constituiu. Ontem é que se
espalhou, não sei com que dados, a nomeação do Dr. Francisco de Paula Cândido
para presidente da cuja. O Dr. Paula Cândido foi um dos campeões do projeto de
lei de salubridade pública, e passa por um dos nossos mais hábeis químicos.
Seja quem for o nomeado, Deus queira que alguma coisa se faça para aquele fim,
que interessa a todos. É altamente notável que nenhum passo mais se desse desde
que cessou o terrível flagelo, cujos efeitos, aliás, ainda sofre o comércio.
Essa inação somente se explica pelas dificuldades que em nosso país o
individualismo a tudo opõe.
A
polêmica Ferraz-Leopoldo-Ferreira, etc. ainda continua, e, a falar a verdade,
com fastio geral. Os serviços e os erros do inspetor da Alfândega estão mais
que muito discutidos; a discussão nada mais de sério pode apresentar, e vai
degenerando em chufas e doestos que nem acreditam aos que socorrem-se a tais
meios, nem podem ofender o alvo a que são atirados. Ultimamente ocorreu um novo
incidente entre os Ferreiras, proprietários do trapiche da Saúde, e o
guarda-mor da Alfândega; foi um dos temas da conversação da semana passada. Eis
o caso:
Os
Ferreiras publicaram no Correio Mercantil
uma correspondência de queixa contra o Leopoldo, porque este, a despeito de
despachos do inspetor da Alfândega, lhes não queria dar guarda para um navio
que devia descarregar carvão de pedra em um dos seus depósitos. O guarda-mor
sai a campo em sua defesa; e apelida de trêfego
intrigante ao Sr. José Rodrigues Ferreira, um dos três queixosos. Este, não
satisfeito da réplica que fez pela imprensa, chama o Leopoldo à
responsabilidade, e obtém que o réu fosse pronunciado, em primeira instância, a
dois meses de prisão e multa correspondente à metade do tempo. O réu tem
apelação para alguma das Varas Crimes, e funda a sua defesa em agressões que
lhe foram dirigidas, e nas acepções que se podem dar à palavra intrigante,
alegando que dela serviu-se no sentido de inimizar
ou malquistar, desígnio que atribui
ao dito Ferreira, em relação ao inspetor da Alfândega. A curiosidade pública
aguarda a decisão final deste pleito.
O
comércio desta praça há muito pouco tempo que se acha sob a ação dos novos
regulamentos e decretos. A bondade destes ainda não pode ser sentida, nem se
tornaram visíveis os seus senões. Mas a opinião dos negociantes
bem-intencionados e probos é que a nova legislação comercial há de trazer-nos
benefícios muito reais, sendo de esperar que o governo se mostre dócil em
matéria de tanta gravidade e que só as indicações da experiência podem tornar
completa. A Junta dos Corretores, que, como sabe, é composta de cinco membros
eleitos por todos os que legitimamente pertencem a essa classe, representou há
algum tempo contra certo corretor, que, segundo essa, lhe faltara com o devido
respeito. Qualquer que tenha sido o motivo, provavelmente a longa fieira de
informantes por que passam tais negócios, o certo é que a representação não foi
ainda decidida pelo governo. Em consequência deste fato, os membros que compõem
a junta atual recusaram a reeleição; e o motivo da escusa sendo conhecido, os
que se lhe seguiram foram sucessivamente esquivando-se, de sorte que a nova
Junta de Corretores que deve servir no ano próximo ainda se não pôde organizar.
A
Comissão da Praça do Comércio esteve ameaçada de sofrer igual contratempo. Não
tendo aceitado o encargo os membros brasileiros que primeiro foram eleitos, nem
os seus imediatos em votos, força foi proceder a uma nova eleição, e obtiveram
maioria de votos os negociantes Teófilo Benedito Otoni e Antônio Gomes Neto.
Por
hoje aqui ponho o ponto final, adotando por assinatura o sinal dos cristãos,
com que afugento as tentações, e que, demais, é também aquela de que se valem
os analfabetos, que pouco menos são do que este seu ingênuo amigo e muito
humilde criado.
Jornal do Commercio de 23/12/1850.
Nenhum comentário:
Postar um comentário