26/09/2015

Cartas ao Amigo Ausente, de Visconde do Rio Branco

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Primeira carta
Corte, 22 de dezembro de 1850.

Prezado amigo e sr. – A falta de letras suas me tem sobremodo inquietado, e, não podendo atribuí-la à moléstia, só encontro a causa de mal tão sensível a esta mísera criatura na

inconstância com que V. M., qual Judeu Errante, não toma pé em terra alguma deste brasíleo Império. Devo ao Jornal do Commercio este meio, que de hoje em diante seguirei para transmitir-lhe a salvo notícias desta Corte, que tão vivamente lhe interessam. Li em um artigo do Jornal dos Debates, cuja tradução aqui se publicou, que alguns britânicos espertos, para escaparem à finta do correio, em vez de cartearem-se, correspondem-se por meio dos jornais em anúncios de tal sorte redigidos, que são para os profanos verdadeiros enigmas. Aproveitei da ideia o que ela tem de mais simples e inocente, sujeitando-me a maior porte, o da impressão, mas segurando por este modo as minhas cartas, que lhe chegarão às mãos sem que levem sobrescrito, e onde quer que V. M. esteja, graças à ubiquidade de que também goza este gigante da nossa imprensa. Se até aqui, na mais íntima confiança da amizade, eu não entregava ao papel meus sentimentos e ideias acerca dos homens e das coisas políticas desta terra, em que aliás vimos ambos a luz, devassada como fica a nossa correspondência doravante, só como historiador de fatos tocarei em matéria que se refira à bifaceira política do belo, fértil, mas infeliz Brasil. A crônica do que nesta pequena babel se passar de mais notável e divertido, e que puder ser tirada à luz sem ofensa da moral e da decência pública, e sem perigo para o incógnito cronista, é o assunto sobre que versarão, as minhas missivas a datar desta, que, nem por ser a primeira, escapou aos meus inveterados hábitos de escrever tarde, e, portanto, muito de afogadilho.

Um fato, que profundamente comoveu-me, e ainda aperta o coração de muitos amigos e conhecidos, que são numerosos, é a morte prematura do Dr. Francisco Júlio Xavier, lente da Cadeira de partos da Escola de Medicina desta Corte, um dos seus primeiros clínicos, incontestavelmente o mais hábil parteiro do Império. Simpático, dotado de espírito agudo, de uma expressão clara e elegante, de temperamento o mais fleumático, indiferente às grandezas transitórias deste mundo, o Dr. Júlio captou a estima e consideração de todos os que tiveram ocasião de com ele praticar. Como criatura humana, tinha seu lado fraco, que é de esperar mereça de Deus a indulgência que os próprios homens lhe não recusavam. Sua clínica era das mais rendosas, mas viveu sempre precisado, o mais modestamente possível, e deixou sua família na indigência, de que só a gratidão e a generosidade dos amigos a poderão resgatar. No momento em que a vida se lhe mostrava mais segura, bem-disposto, vigoroso e alegre, de volta da casa de um amigo em cuja festividade doméstica havia tomado parte, a morte acometeu-o com uma congestão cerebral, e em pouco mais de uma hora triunfou de existência tão preciosa, ou fosse porque assim estivesse escrito no livro dos destinos, ou fosse por erro de alguém que primeiro lhe acudira em caminho e o conduzira até ao seio da família, entre a qual expirou, sem outro lenitivo que um mudo e expressivo adeus aos cinco filhinhos, que iam ficar em mísera orfandade.

A morte do Dr. Júlio veio dar-nos mais uma prova do que valem neste mundo as qualidades que em tão subido grau ele possuía. Ninguém lhe recusou uma expressão de dor, uma lágrima de saudade. O mais puro e odorífero incenso tem sido queimado em torno de seu túmulo, por inúmeros poetas cujas produções correm impressas neste e nos demais jornais e periódicos desta cidade. Mas não era este o único e mais valioso serviço que a memória do ilustre finado devia esperar dos amigos e da generosidade pública, cinco inocentes órfãos aí estavam entregues à indigência, e estéreis seriam a compaixão e a saudade que ante quadro tão tocante se limitassem a lágrimas e elogios póstumos. Uma subscrição está sendo agenciada por alguns amigos do célebre parteiro, entre os quais se distinguem como principais coletores o Sr. Francisco de Paula Brito, bem conhecido como tipógrafo e poeta, e o Sr. Dr. José Maurício Nunes Garcia, colega do finado por mais de um título, como professor da Escola de Medicina, e como acreditado parteiro. Além deste auxílio, promoveu-se um benefício para os cinco órfãos no Teatro de S. Pedro de Alcântara, o qual teve lugar na noite de 20 do corrente. O concurso excedeu do ordinário, e sendo de esperar que as joias dos camarotes e cadeiras se elevem acima do preço fixo, o produto do benefício provavelmente corresponderá aos esforços dos seus filantrópicos diretores e à religião do fim para que é destinado.

Bem poucos, e pela maior parte fracos negociantes, são os franceses que aqui existem no Rio de Janeiro, e, todavia, feridos nos mesmos afetos, sua filantropia e patriotismo se manifestaram de uma maneira assaz recomendável. Tributaram todas as homenagens de consideração moral às virtudes e serviços do muito conhecido Dr. Sénechal, mas não pararam aí; valeram a sua filha, que ficará sem recursos, com o produto de uma coleta, para a qual contribuíram também brasileiros, e que subiu à não pequena soma de dez contos de réis. No cemitério da Gamboa foi inaugurado, segunda-feira próxima passada, um simples e tocante túmulo de mármore, assentado sobre uma lápide, e cercado por quatro cadeias que se prendem a outras tantas colunas de pedra. Sobre a lápide desse túmulo lê-se a seguinte inscrição, que recorda os louváveis sentimentos dos amigos daquele distinto médico, que, como o Dr. Júlio, gozava de numerosas simpatias:

AU DOCTEUR SÉNECHAL
MEMBRE DE LA LÉGION D’HONNEUR
SES AMIS RECONNAISSANTS.

Nós esperamos que os fluminenses que sem esse edificante exemplo outrora procederam tão cavalheira e generosamente para com a família do Dr. Otaviano da Rosa agora não ficarão aquém da fraternidade e gratidão dos franceses.

Estamos presentemente em tempo de férias, e, portanto, na quadra característica da zona tórrida que habitamos. As escolas já se fecharam; e nas duas academias militares, na de Medicina, e no Colégio de Pedro II até os exames e consequentes bacalaureatos e doutoramentos estão concluídos. Temos mais 37 médicos investidos do direito de curar ou matar, oito engenheiros militares e um poder de bacharéis, com os quais todos bem se poderia criar uma povoação no interior de nossas províncias. Mas, a julgar pelos precedentes, uns e outros por aqui se deixarão ficar, prejudicando-se mutuamente, e engrossando as fileiras do corpo de aspirantes aos empregos públicos. Felizmente, se devo crer no que por aí dizem, daqui em diante o gênero bacharel obterá mais consumo nos empregos de fazenda, e mesmo nos das secretarias de Estado em geral.

Os alunos do templo de Hipócrates deram uma sentimental demonstração pela perda do seu ilustre Mestre o Dr. Júlio, a quem alguns haviam tomado por paraninfo de suas teses. Não só, segundo me referiu alguém que o podia saber ao certo, se não prestaram para tornar a solenidade do doutoramento igual em brilho às destes últimos anos, como, depois de terem recebido a investidura hipocrática, dirigiram-se para o cemitério de Catumbi, onde repousam os restos mortais daquele insigne médico, e sobre sua humilde campa depositaram uma capela de jasmins e saudades. Alguns dos membros da faculdade acompanharam os novos doutores nessa efusão de tão nobres e patéticos sentimentos.

Disse-lhe que estávamos em férias, mas não pense que só me refiro ao mundo escolar. A política também parece estar de verão. O Brasil cessou de publicar-se por tempo indefinido, e por circunstâncias imprevistas; as outras folhas políticas não se mostram muito fecundas. Mas isto é nada; o que me convence de que a política cairá em completa pasmaceira é o receio que os calores de dezembro vão incutindo, e a presença da febre amarela, ou coisa que o valha, na cidade de Campos. Até alguns ministros vão tomar ar, o que, não só confirma aquele meu prognóstico, senão ainda revela que os temores de guerra externa se esvaeceram, bem que continuem as medidas preventivas. O Ministro da Fazenda, J. J. Rodrigues Torres, retira-se com licença para sua fazenda; o da Guerra vai gozar a branda temperatura das Paineiras; o da Justiça já lá está no Engenho Velho; o do Império passa-se para o Jardim Botânico, e o de Estrangeiros para o Macaco. Se a nau do Estado não corresse por mares calmos e conhecidos, os timoneiros estariam mais próximos ao leme, e mais atentos ao tempo e à agulha.

A família imperial vai passar o verão em Petrópolis.

Sinto dizer-lhe que a Comissão de Higiene Pública, cuja criação tantos discursos parlamentares e antiparlamentares custou ao Tesouro, ainda se não constituiu. Ontem é que se espalhou, não sei com que dados, a nomeação do Dr. Francisco de Paula Cândido para presidente da cuja. O Dr. Paula Cândido foi um dos campeões do projeto de lei de salubridade pública, e passa por um dos nossos mais hábeis químicos. Seja quem for o nomeado, Deus queira que alguma coisa se faça para aquele fim, que interessa a todos. É altamente notável que nenhum passo mais se desse desde que cessou o terrível flagelo, cujos efeitos, aliás, ainda sofre o comércio. Essa inação somente se explica pelas dificuldades que em nosso país o individualismo a tudo opõe.

A polêmica Ferraz-Leopoldo-Ferreira, etc. ainda continua, e, a falar a verdade, com fastio geral. Os serviços e os erros do inspetor da Alfândega estão mais que muito discutidos; a discussão nada mais de sério pode apresentar, e vai degenerando em chufas e doestos que nem acreditam aos que socorrem-se a tais meios, nem podem ofender o alvo a que são atirados. Ultimamente ocorreu um novo incidente entre os Ferreiras, proprietários do trapiche da Saúde, e o guarda-mor da Alfândega; foi um dos temas da conversação da semana passada. Eis o caso:

Os Ferreiras publicaram no Correio Mercantil uma correspondência de queixa contra o Leopoldo, porque este, a despeito de despachos do inspetor da Alfândega, lhes não queria dar guarda para um navio que devia descarregar carvão de pedra em um dos seus depósitos. O guarda-mor sai a campo em sua defesa; e apelida de trêfego intrigante ao Sr. José Rodrigues Ferreira, um dos três queixosos. Este, não satisfeito da réplica que fez pela imprensa, chama o Leopoldo à responsabilidade, e obtém que o réu fosse pronunciado, em primeira instância, a dois meses de prisão e multa correspondente à metade do tempo. O réu tem apelação para alguma das Varas Crimes, e funda a sua defesa em agressões que lhe foram dirigidas, e nas acepções que se podem dar à palavra intrigante, alegando que dela serviu-se no sentido de inimizar ou malquistar, desígnio que atribui ao dito Ferreira, em relação ao inspetor da Alfândega. A curiosidade pública aguarda a decisão final deste pleito.

O comércio desta praça há muito pouco tempo que se acha sob a ação dos novos regulamentos e decretos. A bondade destes ainda não pode ser sentida, nem se tornaram visíveis os seus senões. Mas a opinião dos negociantes bem-intencionados e probos é que a nova legislação comercial há de trazer-nos benefícios muito reais, sendo de esperar que o governo se mostre dócil em matéria de tanta gravidade e que só as indicações da experiência podem tornar completa. A Junta dos Corretores, que, como sabe, é composta de cinco membros eleitos por todos os que legitimamente pertencem a essa classe, representou há algum tempo contra certo corretor, que, segundo essa, lhe faltara com o devido respeito. Qualquer que tenha sido o motivo, provavelmente a longa fieira de informantes por que passam tais negócios, o certo é que a representação não foi ainda decidida pelo governo. Em consequência deste fato, os membros que compõem a junta atual recusaram a reeleição; e o motivo da escusa sendo conhecido, os que se lhe seguiram foram sucessivamente esquivando-se, de sorte que a nova Junta de Corretores que deve servir no ano próximo ainda se não pôde organizar.

A Comissão da Praça do Comércio esteve ameaçada de sofrer igual contratempo. Não tendo aceitado o encargo os membros brasileiros que primeiro foram eleitos, nem os seus imediatos em votos, força foi proceder a uma nova eleição, e obtiveram maioria de votos os negociantes Teófilo Benedito Otoni e Antônio Gomes Neto.

Por hoje aqui ponho o ponto final, adotando por assinatura o sinal dos cristãos, com que afugento as tentações, e que, demais, é também aquela de que se valem os analfabetos, que pouco menos são do que este seu ingênuo amigo e muito humilde criado.

Jornal do Commercio de 23/12/1850.

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