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O
Juazeiro do Padre Cícero
O Sertão do Cariri, no começo do séc. XIX, era habitado
pelos primeiros colonizadores, que foram em busca de minérios. Houve conflitos
e mortes, enchendo as caatingas de cruzes. E no final de tudo as minas não
existiam.
Cícero Romão Batista nasceu no Crato, sul do
Ceará, aos pés da verdejante Chapada do Araripe. O vale do Cariri cearense
contém fontes, cujas águas descem em cascatas, cantarolando entre seixos, até
ao pé da Serra. Nos engenhos de açúcar, a rapadura aparece nas gamelas. As
feiras revelam o crescimento comercial da região de forma muito rápida. (BARRETO,
2002, p. 12).
Começava sua vida no contexto familiar, gente
humilde, talentosa, destemida e corajosa. Seu nascimento se deu aos 24 de março
de 1844, conforme consta em sua declaração testamentária. Seus pais se chamavam
Joaquim Romão Batista e Joaquina Vicência Romana.
O povo era religioso, segundo o modelo de ordem
devocional importado da Europa. As missões e seus pregadores se circunscreviam
neste quadro de ensinamentos morais, apontados para o exemplo dos santos, das
aparições e visões destes homens e mulheres de Deus. Os oratórios ocupavam o
espaço sagrado onde as famílias realizavam suas celebrações
com preces de louvor e agradecimento. Seria preciso encontrar o ambiente das
Santas Missões, de todo o seu conteúdo e, sobretudo visualizar novamente a
figura hierática do missionário. Vale lembrar a imagem encurvada do santo
missionário Frei Damião de Bozzano. Sobre este missionário capuchinho italiano,
é oportuno relatar o depoimento de um teólogo belga, José Comblin:
Até os dias de hoje, Frei Damião é o maior pregador de
missões há 60 anos. Aos olhos do povo ele recolheu a herança do Padre Cícero
Romão Batista. Frei Damião fala da morte e do Juízo, dos pecados, sobretudo dos
amancebados, anuncia castigos de Deus. O povo lhe atribui milagres numerosos. A
pregação de Frei Damião é somente espiritual. Ele não constrói nem promove
obras de caridade ou obras comunitárias. Somente fala dos pecados pessoais.
(1993, p. 35-36).3
Padre Cícero escrevera um dia que ele devia a
sua vocação de sacerdote a uma leitura da biografia de São Francisco de Sales. São
suas as palavras:
Devo ainda declarar, ser para mim uma grande honra, que em
vista de um voto feito aos doze anos de idade, pela leitura que fiz nesse
tempo, da vida imaculada de S. Francisco de Sales, conservei a minha virgindade
e a minha castidade até hoje. (BARRETO, 2002, p. 14).
Deve ser lembrada a idéia tão querida entre as
famílias de então, de terem um filho padre. A figura do padre ainda hoje
reserva muito respeito da gente nordestina. Padre Ibiapina havia deixado uma
herança muito forte, impregnando a imagem do padre de uma nova presença junto à
Igreja e no mundo. (BARRETO, 2002, p. 15).
Os padres lazaristas haviam desembarcado da
França para formarem os novos padres para a Igreja no Brasil.
A reforma do clero era prerrogativa da romanização. A
reforma dos seminários prepararia os novos ministros da Igreja. Merece relevo
em primeiro lugar, a congregação da Missão. Sem dúvida, foram os padres da
Missão ou lazaristas, os mais representativos colaboradores do episcopado, por
terem assumido a direção da maioria dos seminários. (AZZI, 1992, p. 32).
A Igreja no Brasil estava vivendo então a
romanização. Os cuidados com a fé cristã no Brasil fizeram a Santa Sé voltar-se
decididamente para a Igreja em nossa Pátria. Preocupada com a ignorância
religiosa e com uma prática muito popularizada, a Igreja procurou melhorar seus
quadros humanos trazendo da Europa, após algum tempo, Congregações
Religiosas e enviando alguns de seus futuros padres e bispos para estudarem em
Roma.
Para melhor formar o clero, fundam-se em Roma, dois
Colégios, junto à Universidade Gregoriana, aonde seminaristas de escol são
enviados para aperfeiçoar seus estudos e prepararem-se para tarefas mais
importantes. O Colégio Pio Latino (1858) aceitava alunos de todo o continente,
inclusive do Brasil. Mas para que houvesse mais vagas para nossos seminaristas,
em 1934, funda-se o Colégio Pio Brasileiro, exclusivamente para brasileiros. (LIBÂNIO,
1982, p. 49).
A nova formação qualificava seus padres com
compromissos apologéticos, diante dos inimigos da fé que então ameaçavam a
Igreja. Estes inimigos eram o protestantismo e o positivismo. O jovem
seminarista era moldado internamente para responder ao modelo da Igreja a que
se desejava chegar. Muitos alardeavam as dificuldades intelectuais do
seminarista Cícero. Por estudar “ciências ocultas”, isso quase lhe valeu o
impedimento de sua ordenação. (WALKER, 1995, p. 7). Aliás, Raquel de Queiroz
sobre isso escreveu:
Custou- lhe muito ser padre: quase o não ordenam. Os mestres
alegavam que o rapaz era esquisito e mentia, mas quem sabe se mentia realmente?
As histórias do céu parecem mentiras a quem só pensa na terra. E depois, dentro
da alma de um homem, quem tem poder para traçar o limite entre a verdade e a
mentira? De qualquer modo ele foi para o Juazeiro, assim mesmo, mentiroso e
angélico. Tão precário era o seu rebanho que aos domingos cabia todo na
capelinha da fazenda e vivia inteiro em seis casas de taipa e alguns casebres. (1944,
p. 31).
Em sua biografia, aparece o fato de ter desejado
ser professor no Seminário da Prainha em Fortaleza. (WALKER, 1955, p. 9).
Lecionou também no Colégio Padre Ibiapina no Crato, fundado e dirigido pelo
Prof. José Joaquim Teles Marrocos, seu primo e grande amigo. (BARRETO, 2002,
19). Cuidou da educação de jovens e órfãos. Criou escolas profissionalizantes e
a que seria a primeira futura Escola Normal Rural do Brasil. Trouxe, em
seguida, os salesianos com a missão de educar a juventude. (BARRETO, 2002, p.
39). Era filiado a uma Instituição chamada Sociedade de Agricultura. Recebeu o
título de Doutor, conferido pela Escola Livre de Engenharia do Rio de Janeiro
conforme lemos em Walker. (1995, p. 10).
Quem estudou num Seminário sabe que, sem
sacrifício, não se passa tanto tempo nessa casa. Sem espírito de oração e de
comunidade, o seminarista é aconselhado a sair do Seminário. O controle era
severo. Até nas férias, o seminarista levava do Reitor um questionário que
deveria ser minuciosamente respondido pelo pároco. Sem exagero, pode-se
concluir que Cícero não era um ignorante, nem visionário, nem ingênuo, nem
alheio. Seus boletins apontavam notas boas, melhores do que
as de um aluno medíocre. A ausência de pendores oratórios não pode ser motivo
para negar-lhe outras virtudes. Ganhou, a Igreja e o Povo, um conselheiro, um
fiel e paciente confessor, um homem de relações humanas. Em seu testamento
dedica ao seu bispo diocesano, Dom Luis Antônio dos Santos, a graça de ser
padre católico. Padre Murilo completa essa curta biografia, quando afirma:
“Quem na realidade irá dar a nota de comportamento e aplicação do
recém-ordenado Cícero será o seu modo de trabalhar, de operar de pastor,
enfim”. (BARRETO, 2002, p.18).
No Natal de 1871, uma equipe, representada pelo
Professor Simeão Correia de Macedo, não querendo que a capelinha de Nossa
Senhora das Dores ficasse sem a Missa do Galo, foi procurar Padre Cícero, no
Crato, para celebrar em Juazeiro. O Padre tinha 28 anos e mais que isso,
simpatia, olhos brilhantes e azuis, penetrantes e rápidos e voz modulada. Tudo
estava começando, sem que seu personagem se desse conta. (BARRETO, 2002, p.
20). Pouco tempo depois, aos 11 de abril de 1872, chegou definitivamente Padre
Cícero ao Juazeiro, com sua família e pouca bagagem, apesar de relutar nessa
decisão.
Um grande sonho marcou o início de sua vida
sacerdotal e foi apontado como a causa que determinou a sua ida para Juazeiro. Este
relato foi feito pelos próprios amigos íntimos. Cansado, após um dia exaustivo,
de horas a fio no confessionário, foi descansar no quarto vizinho a uma sala de
aula da escolinha, onde improvisavam seu alojamento. Caiu no sono e em visão
ouviu a voz de Jesus que lhe dizia: “toma conta deles”. Ele viu Jesus Cristo e
os doze apóstolos, sentados à mesa, numa cena como a “Última Ceia” de Leonardo
da Vinci. De repente, o local foi invadido por uma multidão de sertanejos
famintos, conduzindo seus míseros pertences em pequenas trouxas. Então Cristo,
virando-se para os famintos, falou de sua decepção com a humanidade, dizendo,
porém, que ainda estava disposto a fazer um último sacrifício para salvar o
mundo. Entretanto, se os homens não se arrependessem depressa, ele acabaria com
tudo de uma vez. Naquele momento, Cristo, apontando para os famintos, falou: E
você, Padre Cícero, tome conta deles. (COMBLIN, 1991, p. 9).
O sonho de Padre Cícero, que o fez decidir-se ficar em
Juazeiro, faz parte do quadro místico -religioso desta época. As devoções ao
Coração de Jesus datam dos séculos XI e XII. No século XVII, Margarida (freira
francesa da Ordem da Visitação) teve uma aparição de Cristo em 1673, na qual
Jesus lhe ordenava uma devoção pública “de amor expiatório” a Ele, “sob a forma
de seu coração de carne.” “Veja o Coração que tanto amou os homens... em vez de
gratidão, recebo da maior parte só ingratidão...”4 (DELLA CAVA, 1985, p.47).
O sonho de 1872, o Milagre de 1889 e a Guerra de
1914 entraram na hagiografia canônica do Padre Cícero e na história política do
Juazeiro. (BARBOSA, 2004, p.62). Barreto afirmava que a decisão de
transferir-se para Juazeiro foi decorrência de um sonho “O que é certo é que de então
para o resto de sua vida este sonho marcou a vida do padre Cícero que assumiu
sempre a função de um condutor das massas nordestinas." (2002, p. 21).
Padre Cícero havia dedicado parte de sua vida à
leitura da vida dos santos, como João Maria Batista Vianney, o Cura d’Ars, São
João Bosco e São Francisco Xavier. Quando Padre Cícero começou seu pastoreio,
Padre Ibiapina já gozava de prestígio e respeito como missionário, pois era sua
intenção “recuperar o povo para a Igreja”. (BARRETO, 2002, p. 22).
Faleceu a 20 de julho de 1934. Foi o fim do
mundo em Juazeiro. No dia 21, cerca de 60 mil pessoas acompanharam seu
sepultamento. Mas a cidade não morreu. As romarias continuariam. O povo nunca
lhe faltou, apesar dos muitos inimigos e detratores. O desaparecimento de Padre
Cícero não diminuiu a fé de seus adeptos, os quais não acreditavam em sua
morte, pois o mesmo estava “em viagem” e devia um dia voltar à Cidade Santa a
fim de anunciar a chegada do Juízo Final. Seu retrato está entronizado em todos
os oratórios domésticos, sua lenda messiânica é constantemente enriquecida com
um rol de novos milagres. (QUEIROZ, 1983, p. 87).
O relógio marcava cinco horas da manhã do dia 20
de julho do ano de 1934. Era o “Dia de Juízo” para os romeiros,
exclamava o povo em Juazeiro. Choro e grito estremeceram a alma do povo
e os alicerces da cidade. As romarias continuam até hoje. Semanas e mais
semanas de romarias ao Juazeiro. Chegavam todos vestidos de preto. Já não
desciam à Rua São José, mas rumavam todos à Capela do Socorro, construída em
1906, onde estava sepultado Padre Cícero.
Selecionamos propositalmente para este momento
as palavras de uma ilustre escritora cearense, fiel às suas raízes:
Ele era baixinho, corcunda. Parecia um desses santos de pau
que a gente venera nas igrejas antigas, feitos grosseiramente pelo artista
rústico, a poder de fé e engenho. A cabeça enorme descaía no ombro sungado e
magro, a batina surrada acompanhava em dobras amplas o corpo diminuto. Só a
carne do rosto e os olhos azuis, límpidos e místicos, que se cravavam na gente,
penetrantes como uma chama. Megalomaníaco, paranóico, gerador de fanatismo,
protetor de cangaceiros, explorador da credulidade sertaneja de tudo isso foi
ele acusado por teólogos, médicos e sociólogos que juntos lhe fizeram o
diagnóstico. Senhores teólogos, senhores médicos, quão longe já andais dos
belos tempos da fé antiga! Pois quem poderá ser um bom santo sem ser ao mesmo
tempo um bom doido - e a melhor definição de um santo não será ‘um doido de
Nosso Senhor’? Tanto o Santo como o doido despe a roupa na rua, abandona casa e família,
vai comer raízes bravas e pregar à turba ignara qualquer ardente mensagem que
lhe consome o coração. E só a essência dessa mensagem e a extensão do seu êxito
é que estabelecem a diferença. (QUEIROZ, 1944, p. 31).
O Padre Cícero foi “canonizado” pelo povo e até
hoje sua volta é aguardada pelos romeiros. (JORGE, 1998, p. 78). Naturalmente,
vamos encontrar um processo do retorno ou da ressurreição do mito. Padre Murilo
lembrava o grande cantor nordestino, Luiz Gonzaga, que cantava: “E olha lá no
alto do Horto, o Padre está vivo, o Padre não está morto.” (BARRETO, 2002,
p.63).
Novamente, encontramos, em Raquel de Queiroz,
igual sentimento sobre o fenômeno Padre Cícero:
Alguns dizem que o padre está debaixo do chão: os incréus,
os materialistas. Porque a gente que tem fé conta que Meu Padrinho, vendo a
choradeira do povo, ressuscitou ali mesmo, sentou-se no caixão, sorriu, deu
bênção, depois deitou-se outra vez e seguiu viagem dormindo, até a Igreja do
Perpétuo Socorro. Ficou morando lá, naquela igreja que os padres nunca quiseram
benzer. De noite, sai de casa em casa curando os doentes, consolando os
aflitos. E se ninguém o vê, na rua ou na Igreja, é porque as asas dos anjos
rodeando-o todo, o encobrem dos olhos dos viventes. (QUEIROZ, 1944, p. 35).
Os romeiros continuaram com suas peregrinações
no anseio de visitar a Mãe das Dores e o Padrinho do Juazeiro. A literatura
popular tem registrado frequentemente estes fatos inerentes à história
religiosa do Nordeste, como a poesia de autoria de Dias Gomes:
Quem for para o Juazeiro Vá com dor no coração
Visitar Nossa Senhora
E
o Padre Cícero Romão.
Que meu Padrim é um
Santo Isso tá mais que provado Basta atentar nos milagres Que ele tem
realizado.
O primeiro foi ter feito
Em certa manhã pacata Isso já faz tanto tempo
Nem me lembro bem a data
A hóstia virar sangue
Na
boca de uma beata.
(Texto
extraído de obra não identificada).
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Fonte:
Manoel Henrique de Melo Santana: “Do anátema ao acolhimento pastoral”. (Da condenação e exclusão eclesial do Padre Cícero do Juazeiro à sua Reabilitação Histórica Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Área de Conhecimento: Ciências Humanas. Orientador: Prof. Dr. Ferdinand Azevedo). Recife, 2007
Manoel Henrique de Melo Santana: “Do anátema ao acolhimento pastoral”. (Da condenação e exclusão eclesial do Padre Cícero do Juazeiro à sua Reabilitação Histórica Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Área de Conhecimento: Ciências Humanas. Orientador: Prof. Dr. Ferdinand Azevedo). Recife, 2007
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