14/06/2015

D. João de jaqueta: cenas da roça, de Horácio Nunes

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D. JOÃO DE JAQUETA, UM ELOGIO À INTELIGÊNCIA

Carlos Jorge Appel

Esse anjo, essa fala peregrina, essa luz brilhante era a inteligência, esclarecida, a educação, a instrução.

Que mulher, com o espírito acanhado, ignorante, não se deixaria arrastar por aquelas palavras cintilantes como pérolas,suaves como um perfume e que suspiravam tão doces como as notas lânguidas e harmoniosas de uma canção de melancólicas saudades?...

O livro, essa barreira de ouro que se antepõe a todas as ambições ilícitas, a todos os desejos criminosos, a todas as infâncias, é um sorriso de Deus, derramando em torrentes de luz, sobre a superfície da terra, o sentimento de brio, o amor casto, a dignidade santa, a virtude, finalmente.

Rasguem o livro, e o que será da sociedade?...

D. João de jaqueta, Cap. XL.
  
O escritor Horácio Nunes Pires
  
Horácio Nunes Pires, filho do professor Anfilóquio Nunes Pires e Henriqueta Nunes Pires, nasceu no Rio de Janeiro, na antiga rua. Matacavalos, a 3 de março de 1855. Quatro anos após, 1859, foi com a família para Lages, Santa Catarina. Ali fez o curso primário, dirigido por seu pai. Aprendeu, como as demais crianças da época, a "ler, escrever gramática e aritmética."

Quando completava 11 anos, em 1866, sua família se transferiu para Florianópolis. Seu pai abriu um colégio onde, de acordo com o costume da época, se ensinava português, inglês, francês, latim, aritmética, álgebra, geometria, história e desenho. Horácio Nunes Pires, evidentemente, cursou as aulas no colégio do pai.

Conta ele em suas Memórias (70 páginas manuscritas e inéditas) que, dos 12 aos 13 anos — ele não sabe precisar — escreveu seu primeiro poema "Sinfonia". Seu irmão, Eduardo, ao ler o poema, tentou dissuadi-lo de suas pretensões literárias.

Em 1876, com 21 anos, casa com Flora da Silva. Exerceu, sempre na capital do Estado, vários cargos públicos, alguns sem remuneração, fato não incomum na época, já que era uma das maneiras de ascender socialmente. Em suas Memórias, não declina os cargos que ocupou gratuitamente. Foi colaborador da Fazenda Provincial, Engenheiro da Província, da Secretaria do Governo, delegado literário das escolas da capital; fiscal do Teatro Santa Isabel; secretário dos exames gerais de preparatórios; delegado de Polícia, professor de Artes e Ofícios; amanuense e 2° oficial da Secretaria do Governo; diretor da Contabilidade do Tesouro Estadual; diretor Geral da Instrução Pública (nomeado a 3 de agosto de 1896) e confirmado no cargo de diretor da Instrução (a 29 de dezembro de 1898); inspetor geral de Instrução (a 1° de janeiro de 1900). Foi nomeado diretor da Escola Normal a 17 de abril de 1910, quando completava 55 anos de idade. Talvez seus inúmeros cargos públicos lhe tenham dado o tempo necessário para escrever 42 peças de teatro (dramas e comédias), além de traduzir comédias, dramas e operetas do francês, num total de 20; escreveu também 9 livros de poesia, além de traduzir, também do francês, outros tantos. Escreveu seis romances e traduziu, do espanhol, também, dois romances e, do francês, mais seis.

Realizou, em Florianópolis, várias conferências, duas delas sobre instrução pública.

Fundou o Jornal do Comércio com José da Silva Cascais. Na época em que iniciava a publicação, em forma de folhetim, de D. João de jaqueta, o jornal já era de propriedade de Maninho José Callado da Silva. Além disto, colaborou intensamente em todos os jornais e revistas de Florianópolis, que proliferaram sobretudo na época conturbada das lutas abolicionistas e republicanas. Além de teatrólogo, exerceu ativamente a crítica teatral, depois reunida e publicada sob o título de Literatura: crônica teatral, com o pseudônimo de Helvetius. Outras publicações suas aparecem com o pseudônimo de Fúlvio Coriolano.

Sua luta contra a escravidão mereceu inúmeros artigos e seu espírito republicano transparece com nitidez em D. João de jaqueta, onde fustiga e ironiza os monarquistas de modo impiedoso.

Sua curiosa obra ainda carece de uma pesquisa mais paciente. Os capítulos publicados em jornal apresentam deficiências e inúmeros erros, deixando algumas dúvidas, porque apenas algumas partes foram corrigidas pelo Autor. Só quando ocorriam erros crassos o Autor chamava a atenção dos seus leitores no próprio local onde publicava os seus folhetins.

Aos 64 anos de idade, no dia 20 de maio de 1919, em sua residência à rua Bocaiuva, em Florianópolis, morre Horácio Nunes Pires.
  
A época
  
Ligado à instrução pública, com trânsito entre os poderosos do seu tempo, espírito polêmico, a favor do abolicionismo e da República, Horácio Nunes Pires em sua obra, pretendeu apenas registrar os problemas sociais mais evidentes e imediatos de sua época.

Pela leitura dos jornais da corte e dos livros que vinham de Portugal, da Espanha e da França — ele traduziu várias peças de teatro e romances franceses — Horácio Nunes Pires podia se considerar um homem de seu tempo, sempre a par das convulsões que atingiam a Europa, da Revolução industrial, da ascensão da classe média que, de modo incipiente, surgia nas metrópoles pré-industrializadas brasileiras.
  
Peculiaridades da Ilha
  
As contradições que ocorrem no seio da burguesia em ascensão, a força crescente do operariado na Europa, a desconfiança para com as velhas estruturas, o anseio literário, as reivindicações do liberalismo burguês aparecem apenas como eco na Ilha de Santa Catarina.

O Brasil ainda é um país colonial em 1877, quando aparecem os primeiros capítulos de D. João de jaqueta. Eram os filhos de famílias abastadas do interior, de comerciantes e de profissionais liberais que definiam o modo de ser da classe dominante da época. O próprio Horácio Nunes, conhecedor do caráter seletivo do ensino brasileiro, pautou seu empenho de homem público em função de um ensino para todos.

Apesar das diferenças sociais e econômicas entre Brasil e Europa, foi comum a todos os intelectuais brasileiros da segunda metade do século XIX a absorção dos padrões estéticos europeus e até mesmo da maioria dos seus conflitos. Assim como Balzac se horrorizava com o grosseiro espírito burguês em ascensão na França, e no plano pessoal se voltava à glorificação do espírito monárquico, Alencar transmitiu semelhante ideal nos seus romances, privilegiando uma moral antiga, nobre e digna, contra a moral burguesa, voltada para o dinheiro, que ele considerava medíocre e detestável.

O paralelismo Brasil-Europa chega a um extremo de alienação com a importação do mal-do-século, com traços de regressão e evasão que contrastavam violentamente com um país em formação, de costumes primários, vivendo padrões reais que se distanciavam radicalmente da imaginação dos intelectuais da época, sobretudo os poetas influenciados por Byron. Florianópolis, porém, estava longe dos ideais dos estudantes do Rio e São Paulo da época. Aqui tudo era mais imediato, e problemas miúdos substituíam a imaginação do mal-do-século e outros modelos importados. Na mesma página de jornal em que Horácio Nunes Pires anuncia o início de D. João de jaqueta, há uma nota curiosa: "O paquete Vitória, entrando anteontem à noite, não trouxe jornais. Apenas, o nosso correspondente deu-nos algumas notícias." O jornal se referia a notícias vindas da Corte, entre as quais o comentado embarque da sra. Isabel e do sr. Conde D'Eu para Europa. Ainda na mesma página do jornal (primeira página): "Com destino ao nosso porto, deve partir hoje da corte o vapor nacional Arlindo, que seguirá daqui para o Rio Grande, Pelotas, até Porto Alegre." São notas aparentemente triviais, hoje, mas configuram um quadro importante para a Florianópolis de 1877: as notícias importantes vinham de navio. A dependência da Corte era total. A Ilha quase não tinha ligação com o interior do Estado, as estradas inexistiam ou eram péssimas. As condições de desenvolvimento cultural eram, pois, precárias. A burguesia, como em todos os lugares, importava ideias, modos, comportamentos, que se sobrepunham ao dia-a-dia pacato da maioria da população espalhada pela Ilha. Horácio Nunes Pires faz um corte verista — surpreendente para a época — no comportamento dos cidadãos na Ilha. Ridiculariza os chefes interioranos, imitando o falar esnobe da burguesia ascendente, contrapõe o homem urbano, já com ares civilizados, mas igualmente fátuos, ao interiorano grosseiro e ridículo. Chega a configurar, em quadros ágeis, com uma fabulação rápida, em que transparece nítida influência do teatro, a sociedade florianopolitana da segunda metade do século XIX.
  
Enredo
  
O esquema estrutural de D. João de jaqueta, em suas coordenadas básicas, em nada difere de outros folhetins românticos. Neste folhetim, torna-se possível verificar um jogo de correspondência entre os elementos integradores da "estrutura fática" da narrativa e que são as personagens, a trama, a ambientação, vistos como um todo, e de um modelo real que emana da sociedade florianopolitana (não se pode dizer, aqui, catarinense, pois a situação no continente é outra) na época em que as ideias republicanas e a luta pela abolição da escravatura haviam se transformado em acontecimentos de relevância. Para entender o jogo de correspondências, é preciso analisar a matéria ficcional, para verificar como as referências da época, mencionadas anteriormente, atuam sobre a estruturação do romance. Apesar do aspecto despretensioso de D. João de jaqueta, algumas ideias básicas transparecem com clareza na configuração do enredo e das personagens.

No centro de interesse da trama aparece Rosalina, filha do famoso Major Anacleto da Trindade. Ela educara-se na capital e especializara-se na "ciência do namoro", mas vivia no interior da Ilha. O conflito cidade/roça, aparentemente o mais importante, vai se constituir num dos planos de sustentação da ideia central. O romance mostra Rosalina esforçando-se para ser a namorada de todos os "rapazes da freguesia". Todos praticamente se apaixonam por ela. Mas o confronto principal vai ocorrer entre Serafim, o interiorano bruto e inculto — D. João de jaqueta — e Juca, rapaz da cidade, "bonito e conquistador", de fala agradável — o D. João de fraque. No meio da luta dos dois, os interesses políticos do Major Anacleto da Trindade. Desprezado por conservadores e liberais, zanga-se e torna-se candidato do partido republicano, "o único capaz de levar a nação à perfectibilidade." O autor satiriza, nele, o oportunismo político.

A trama se desenvolve numa freguesia do interior da Ilha. Serafim, ajudado por seus colegas roceiros, quer dar uma lição ao jovem da cidade, o Juca. Rosalina estimula a ambição não apenas dos dois, mas até de personagens secundárias, para conseguir aquilo que prepara: o amor e o respeito de Juca. O casamento acaba coroando um jogo, ou seja, a "ciência do namoro", posta em prática com muita inteligência por Rosalina. Exatamente por ter instrução, Rosalina difere das demais. Apesar de jovem, ela conhece os limites da leviandade e do bom comportamento. Representa o bom senso, modelo de jovem cuja "ciência do namoro" não perturba os limites do bem e do mal.

Sobressaem os costumes do local, a Festa do Divino, as quermesses, os jogos, o namoro após a missa, as vestimentas, os passeios em torno da praça, a vida sem maiores pretensões. As questões políticas são ridicularizadas na figura de Anacleto da Trindade e nada é levado muito a sério. O abolicionismo praticamente não entra em pauta e a ordem das reflexões segue uma direção clara: elogio da instrução nas figuras de Rosalina e Juca: crítica à falsa cultura, na figura do professor Pantaleão Peroba, que é tão pária social quanto Rubião de Machado de Assis; ao oportunismo político de Anacleto da Trindade, que adere aos ideais republicanos por interesses meramente pessoais. Enfim, Horácio Nunes Pires, com humor, às vezes com sarcasmo, põe a nu uma sociedade que se move em torno de pequenos desejos, de pequenas frustrações e de pequenas alegrias. As coisas mais sérias e importantes ficam para outros lugares e para outra gente. Apesar disto, há um tom de alegria, o tom de verdade das pequenas coisas da vida, que flui das personagens e das situações. O autor é complacente e se diverte com os costumes da sociedade da Ilha de fins do século XIX.
  
As personagens
  
A influência do teatrólogo sobre o romancista, em D. João de jaqueta, torna-se evidente na fácil caracterização das personagens pelo diálogo, pela fala caipira ou empolada, pela contraposição protagonista/antagonista, pela visível marcação cênica, pela naturalidade com que as pessoas entram ou saem de cena. A narrativa é montada em forma de quadros rápidos e o diálogo ágil e bem-humorado evita as descrições e as idealizações românticas mais banais.

Os traços caricaturescos em Rosalina, no Juca, no Serafim ou no Major Anacleto da Trindade aproxima-os dos personagens de Martins Pena. Os quiproquós são semelhantes, a linguagem é popular, no que se aproxima do verismo de Manuel A. de Almeida em Memórias de um sargento de milícias, e se distancia da linguagem bem comportada de A Moreninha de J. M. de Macedo. A apresentação das personagens se dá pela fala e pela ação no decorrer do romance, mas já nas primeiras cenas eles são caricaturados de modo incisivo e definitivo. Sempre aproveitando ao máximo as palavras do próprio autor, assim aparecem os principais personagens:

Major Anacleto da Trindade — "rústico, mas falador e ambicioso de posições, fora promovido a alferes da Guarda Nacional pelos conservadores, a tenente pelos liberais, a capitão pelos conservadores e a major pelos liberais, o que quer dizer que serviria sempre a contento de todas as facções que representava, um monumento vivo da passagem dos dois partidos pelas regiões do poder. Era truculento, glutão, alegre, quase analfabeto." Mas gostava do poder e achava que podia impô-lo aos demais.

Pantaleão Peroba Ferrabraz de Alexandria — misto de professor e jornalista, "homem de poucas luzes mas muito dado à parlapatonice, e que não deixava escapar ocasião de deitar discurso aos povos da freguesia, que o aplaudiam sem compreendê-lo, e que, justamente por não compreendê-lo, consideravam-no um sábio de quatro costados!" Fazia o gênero de um sujeito ingênuo, sempre à sombra dos poderosos, pseudointelectual a serviço do poder. O oportunismo do professor se configura no momento em que, apesar de republicano, "sonha em beijar a mão do Imperador. Por um cargo, trocaria de ideias."

Rosalina — educada num colégio da capital, "levava para casa do pai bastantes conhecimentos, inclusive a ciência do namoro, completamente desenvolvida." Aparece no papel de namoradeira, tão comum nas peças de teatro e folhetins românticos. Rosalina intriga mutuamente os pretendentes ao seu amor. A sua instrução, se não brilhante, "pelo menos é bonita. É a moça mais bonita de toda a freguesia." Rosalina, mostrando sua independência e superioridade em relação ao pessoal da freguesia, veste-se "como uma moça da cidade", possui ideias avançadas e emancipadas. Apesar disto, Juca lhe propõe uma relação amorosa "moderna", mas Rosalina, no seu bom senso, entende que o amor, sem o casamento, leva à vergonha e à perdição. O Autor não foge a alguns finais moralizantes, muito ao gosto da época.
  
Horácio Nunes e os modelos hegemônicos
  
Ao escrever D. João de jaqueta, deixou-se embalar pela tradição, ou seja, pelo modelo europeu que ele, como tradutor de romances e peças de teatro, conhecia muito bem. Com o seu romance, Horácio Nunes reforça o nosso débito cultural para com os modelos hegemônicos. Sua originalidade só poderia consistir na transgressão e na ruptura do modelo hegemônico europeu, reproduzido, aqui no Brasil, por Macedo, Alencar e B. Guimarães, sobretudo. Estes romancistas se defrontaram, no curso de vários romances, com a tríplice questão do oprimido: a mulher, o índio, o negro. O problema das desigualdades fundamentais — comum a toda a América Latina — é analisado tendo a mulher como centro da questão. B. Guimarães em a A escrava Isaura, por exemplo, enfoca o duplo aspecto mulher/negro, enquanto em A Moreninha Macedo analisa a relação mulher/indígena (lenda de Aí). Já Alencar, nos romances urbanos, cuidará especificamente da mulher na sua relação social.

Alencar enfoca a contradição entre o direito da mulher burguesa à escolha do parceiro — de acordo com os ideais dos romancistas liberais europeus, que glorificam o amor — e a manutenção da família patriarcal numa sociedade escravagista. O casamento não deixava de ser um disfarçado contrato socioeconômico. Senhora e Lucíola enfocam com clareza a contradição. O liberalismo romântico buscava transformar a mulher em sujeito, mas isto implicava questionar e levar a limites perigosos o sistema patriarcal. Nele, a mulher era marginalizada economicamente e transformada em objeto do lar. Seu papel era o de procriar, de prestar contas do bom andamento da economia da casa, como herdeira de bens e reprodutora do sistema vigente. No momento que escolhesse seu parceiro por razões não econômicas, mas amorosas, influía perigosamente nesse sistema de trocas. A mulher era induzida a consolidar a ascensão individual do homem pelo amor, como é o caso de Aurélia em Senhora e de Glória em Sonhos douro. O Alencar dos romances urbanos vai chegar aos limites toleráveis, e mostrar os avanços possíveis para a mulher numa sociedade patriarcal. Lucíola será o exemplo extremo das possibilidades da mulher neste sistema. Ultrapassados os limites — Lucíola tenta sua afirmação pessoal no amor — a mulher deveria ser punida pela transgressão, o que deixava intactos os padrões da sociedade patriarcal. Lucíola concedera-se status de sujeito, pondo em risco o papel tradicional da mulher. Herdeira de bens, as opções amorosas deveriam ceder ante os interesses socioeconômicos. Daí se explica, também, a necessidade de idealizar o amor, de colocá-lo acima de quaisquer interesses, o que encobriria e justificaria a submissão da mulher. A sociedade patriarcal, tanto na corte quanto na província, glorificava a submissão da mulher, procurando dissimular suas causas reais e específicas. O "eterno feminino" repete, em nossos romances românticos, o modelo europeu. Horácio Nunes, em D. João de jaqueta, apesar de elogiar a inteligência de Rosalina, não deixa de ratificar essa situação. Rosalina é o "eterno feminino" que não toma a iniciativa amorosa ostensivamente; deixa-se conquistar, dissimulando em objeto sua condição de sujeito da escolha amorosa. A contradição é visível. Horácio Nunes leva até o limite a situação de Rosalina: não fosse sua instrução (elogio à escola pública) e sua inteligência, deixar-se-ia engambelar pelas palavras sedutoras de Juca. Não fosse sua educação, facilmente se tornaria prostituta. Sem tocar diretamente no assunto, a dicotomia romântica virgem/prostituta traz à tona os parâmetros da mulher na sociedade patriarcal. Horácio Nunes coloca sua personagem numa situação perigosa e extrema, mas isto não impede que Rosalina, apesar do seu jogo e dissimulação, preencha o papel de legitimadora da ascensão social do homem e da manutenção da sociedade de classes. Vários personagens que se apresentam como pretendentes ao amor de Rosalina são descartados de imediato em vista de suas condições socioeconômicas. A reação do pai de Rosalina, Anacleto Trindade, é sintomática neste sentido. As possibilidades de atuação da mulher são restritas; ela deve obedecer às leis do jogo.

O que Horácio Nunes consegue fazer, com ironia e humor, não só neste romance, mas também nas suas peças de teatro, é mostrar as contradições, os limites e o papel da mulher ante os ideais que surgiam na época. Rosalina, dissimulando-se em objeto, torna-se em verdade sujeito da história. Ela consegue, pelo menos, casar com quem ela planejara e tornar-se digna do amor do seu futuro marido. Isto configura uma audácia e um avanço num sistema que via a mulher apenas como objeto num sistema de trocas. Horácio Nunes, tanto quanto Alencar em Senhora e Lucíola, traz à tona o problema da desigualdade homem/mulher na sociedade patriarcal. O "eterno feminino" e o triunfo do amor, o final feliz das histórias românticas serve ao jogo do ocultamento dessa situação. A conciliação dessas contradições, comum nos romances da época, tem o mérito de deixar à mostra a situação da mulher numa sociedade patriarcal como a da Ilha no decorrer de 1877. Apesar de não romper com a tradição, Horácio Nunes soube mostrar e fazer entender, em D. João de jaqueta, que as contradições iriam se tornar insuportáveis e levariam a sociedade a uma nova etapa. Essa dimensão alcançada por Horácio Nunes neste romance dá-lhe permanência no quadro da nossa literatura romântica. Apesar das exigências e pressões comerciais a que estavam condicionados os folhetins em direção à estandartização e a fácil assimilação da mensagem, Horácio Nunes consegue fazer uma obra dinâmica e surpreendente. Os fatores fundamentais, em qualquer obra escrita são: autor, universo receptor, código e tema. Horácio Nunes soube harmonizar estes elementos por intuição, como o fizeram Alencar, Manuel Antônio de Almeida e Bernardo Guimarães, e conseguiu nos legar, à maneira dos pintores flamengos dos séculos XVI e XVII, um admirável e pitoresco painel dos costumes da Ilha da segunda metade do século XIX, já nos albores da República.

O folhetim constituía-se no veículo cultural por excelência da época (1877). O folhetim D. João de jaqueta mantém autêntica a criação literária, apesar de pretender atingir o mais amplo público possível. Seu mérito maior será discutir, com bom humor, o difícil problema das modificações culturais e a resistência inútil, às vezes trágica, a inevitáveis modificações. Para uma história sem maiores pretensões, não é pouco.
  
Conclusão


A composição do objeto ficcional, a articulação interior, os planos se organizam e operam sobre uma realidade empírica, uma paisagem familiar e social: a Ilha. Em plena época de explosão sentimental, agrada ver como a situação abordada por Horácio Nunes Pires gera certa verossimilhança na história, certa fidelidade na construção ambiental e coerência nas personagens.

De certo modo, por ser um folhetim, D. João de jaqueta poderia sofrer a influência dos consumidores, mas curiosamente mantém autonomia. Sua linha de força mantém-se sem maiores atropelos, o que vem mostrar a possibilidade — mesmo em histórias aparentemente despretensiosas — da liberdade possível em relação à ordem vigente.


O humor, às vezes a ironia em relação aos costumes e à moral vigente, confere um certo tom de atualidade a D. João de jaqueta. Talvez resida nisto o prazer que o romance ainda pode proporcionar hoje. É bom lembrar que o folhetim francês predomina. O próprio Nunes Pires — e verificaremos com mais certeza quando toda sua obra for analisada — sofreu influência do esquema folhetinista francês. Horácio Nunes soube aclimatar com felicidade o esquema do folhetim rico em incidentes, a história orientada para um final feliz, à necessidade e ao poder do reconhecimento do leitor. Mas a isso acrescentava a crítica dos costumes, naquela antiga máxima do ridendo castigat mores. Foi o que Horácio Nunes Pires pretendeu fazer e conseguiu dar bem o seu recado. Daí a possibilidade de permanência de D. João de jaqueta que, quase cem anos após sua publicação em forma de folhetim, aparece finalmente em livro.

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Fonte:
http://www.portalcatarina.ufsc.br/

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