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A fábula como prática oral
Documentos
comprovam que a origem da fábula é mais remota do que se imagina e que ela não
é um gênero genuinamente grego. De acordo com as informações de Dezotti (2003,
p. 21), há textos sumerianos oriundos do século XVIII a.C, que veiculam
narrativas com animais antropomorfizados, semelhantes às fábulas que conhecemos
hoje. As diferenças entre essas narrativas e as fábulas gregas concernem à
forma de se estruturar o texto ou de se figurativizar determinado tema, uma vez
que todo discurso é permeado por aspectos culturais distintos, caracterizadores
de culturas e visões de mundo particulares.
Importa, pois, esclarecer que nos
apoiamos nos estudos de Dezotti (1988, p. 107) ao atribuir o rótulo “fábula” a
um conjunto muito mais amplo de narrativas do que as que conhecemos por meio de
coletâneas de caráter literário. Para a autora, “o que confere a uma narrativa
o estatuto de ‘fábula’, é uma orientação interpretativa apontada pela
enunciação”.
No que toca às fábulas veiculadas
pelos gregos, a autora postula que, inicialmente, ela era utilizada como
prática discursiva , como forma alternativa de alguém estruturar seu discurso,
pois o locutor poderia utilizar-se de uma narrativa ficcional ou de uma
história verídica para concretizar seu argumento. Para citar um exemplo de
argumento sustentado por um discurso ficcional, podemos nos reportar à
conhecida fábula O rouxinol e o falcão, parte integrante do poema Os trabalhos
e os dias, do poeta Hesíodo, que teria vivido no século VIII a.C.
Nesse período, a fábula, palavra
grega que costuma ser traduzida por “história”, e era usada pelos poetas
arcaicos para referir-se a uma pequena narrativa, conforme mostra o poema de
Hesíodo (vv.202):
A seguir Hesíodo utiliza-se de
uma fábula para ilustrar sua fala:
Assim disse o gavião ao rouxinol de colorido colo no muito alto das
nuvens levando-o cravado nas garras; ele miserável varado todo por recurvadas
garras gemia enquanto o outro prepotente ia lhe dizendo: “Desafortunado, o que
gritas? Tem a ti um bem mais forte; tu irás por onde eu te levar, mesmo sendo
bom cantor; alimento, se quiser, de ti farei ou até te soltarei. Insensato quem
com mais fortes queira medir-se, de vitória é privado e sofre, além de penas,
vexame.”
(HESÍODO, vv. 203-211)
A história que o poeta conta é
uma fábula em que a lei do mais forte prevalece e governa a vida, pois um
falcão, ao segurar um rouxinol que implora para não ser devorado, não se condói
dele, dizendo-lhe, perante suas súplicas, que, por ser mais forte, agirá como
lhe aprouver. O pássaro deve manter-se calado, pois somente os iguais devem
discutir, enquanto os inferiores devem permanecer quietos para que não sejam
humilhados. De acordo com a narrativa, é desta maneira que se deve ler esta
fábula.
Entretanto, inserida num contexto
de desavença fraternal, esta fábula é proferida por Hesíodo ao seu irmão
Perses, acusado de escamotear a divisão de uma herança deixada pelo pai. Na
realidade o poeta constrói sua própria moralidade e dá outra finalidade a esta narrativa:
ele a profere com a intenção de aconselhar seu irmão Perses a não agir como o falcão
da fábula.
Este é um modelo clássico de
narrativa que viria a se consolidar como “fábula” nos séculos posteriores.
Escrita em versos e de acordo com os moldes da épica clássica, a narrativa
conta com animais que dramatizam situações, interesses, sentimentos e paixões tipicamente
humanas. A construção figurativa aliada ao caráter argumentativo típico deste tipo
de texto denota paradigmas de comportamentos a serem seguidos ou evitados em determinada
situação.
Confirma-se, assim, que nas
narrativas da tradição, o discurso figurativo servia de ilustração para
censurar ou aprovar determinadas atitudes dos seres humanos, e isso dependia do
contexto e da intenção daquele que proferia a fábula, pois o discurso moral era
construído pelo próprio enunciador da narrativa.
A outra forma de o locutor
sustentar seu argumento, conforme postula Dezotti (1990), é usar histórias
exemplares de caráter real, que poderiam ser contadas com a finalidade de exortar
alguém a fazer algo.
[...]
E Odisseu, disfarçado de mendigo,
narra-lhe as peripécias e dificuldades que passou em batalha ao lado de
Menelau, numa noite muito fria, sem um cobertor para proteger-se do inverno. Ao
findar a história, Eumeu deu-lhe um manto, pois compreendeu que a intenção do
forasteiro ao contar narrativa, era pedir-lhe um agasalho. Heródoto recompõe
uma situação enunciativa entre o rei Ciro e os povos jônios e eólios. O
historiador documenta uma fábula que Ciro narrou aos mensageiros desses povos quando
estes chegaram em sua corte oferecendo ajuda militar. Disse Ciro:
Certa vez um flautista, vendo peixes no mar, começou a tocar sua
flauta, imaginando que os atrairia assim para a terra. Decepcionado em sua
esperança ele apanhou uma rede, lançou-a e capturou uma grande quantidade de
peixes; ao vê-los saltando ele disse aos peixes: “Parem de dançar agora, pois
vocês não saíram para vir dançar ao som de minha flauta”. (ESOPO apud
DEZOTTI, 1988, p. 114)
Ciro narra esta fábula a eles
porque, certa vez, ao pedir-lhes apoio contra Cresos, teve seu pedido recusado.
A intenção de Ciro era revidar, agindo da mesma maneira que eles agiram
anteriormente, e fez isso por meio do discurso fabulístico.
As passagens citadas mostram o
uso de narrativas como um recurso argumentativo típico do período arcaico, mas
que não perdeu essa finalidade em séculos posteriores. Ao contrário, a
popularidade da fábula aumentou entre os séculos VI e V a.C e coincide com o surgimento
de Esopo na Grécia.
Pouco se sabe sobre a vida de
Esopo, mas de acordo com a tradição, ele fora um
escravo que viveu, provavelmente,
no século VI a.C., e destacou-se por ser considerado muito hábil em proferir
fábulas, fato que fez com que os gregos o intitulassem “Pai da fábula”. Daí em
diante, a maioria das fábulas que circulavam na Grécia foi atribuída a Esopo e
seu nome veiculado em toda a Hélade.
Assim, no século V a.C, o uso da
fábula estendeu-se ao teatro, sendo possível encontrar referências ao fabulista
e às suas fábulas na boca de Filocleão, personagem principal da comédia Vespas,
de Aristófanes:
Filocleão: Escute menininha; vou lhe contar uma história muito bonita.
Padeira: Não quero ouvir história nenhuma!
Filocleão: Um dia Esopo, voltando de um jantar viu-se perseguido por
uma cadela indecorosa e bêbada que não parava de latir. “Cadela”, disse ele,
“você faria melhor negócio trocando sua má língua por um pedaço de pão.”
(ARISTÓFANES, vs. 1400-1405)
No contexto ilustrado acima, bem
típico da comédia, a fábula foi utilizada de forma muito grosseira pela
personagem Filocleão, com a finalidade de ofender uma padeira que lhe cobrava
pelos pães que ele a fizera derrubar. O maldoso Filocleão, que faz uma analogia
entre as reivindicações da moça e os latidos de uma cadela, usa a fábula para
desqualificá-la, dizendo que assim como os latidos de uma cadela são inúteis,
as reivindicações da moça também seriam.
Nesse mesmo período, afloram os
estudos filosóficos e largo uso desse tipo de discurso também fizeram os
retores gregos, que usavam as fábulas como exercício argumentativo para seus
alunos. Aristóteles nos diz na Arte Retórica:
“As fábulas convém ao discurso e têm a vantagem de que, sendo difícil
encontrar no passado, acontecimentos inteiramente semelhantes, é muito mais
fácil inventar fábulas. Para imaginá-las, assim como as parábolas, basta
reparar nas analogias, tarefa essa facilitada pela Filosofia. É pois mais fácil
encontrar argumentos pelas fábulas (...)” (RETÓRICA, XX,4)
Mais adiante, no capítulo
dedicado aos exemplos, o filósofo faz referência a Esopo e usa uma de suas
fábulas como exemplo argumentativo:
Esopo, falando aos sâmios em favor de um demagogo perseguido em justiça
por crime capital, contou-lhes a fábula seguinte: “Uma raposa, ao
atravessar um rio,caiu num fosso profundo e, não podendo de lá sair, agüentou durante
muito tempo, mas foi assaltada por um enxame de carrapatos. Passeava por ali um
ouriço que, ao ver a raposa, teve dó dela e perguntou-lhe: - Queres que te
liberte dos carrapatos? – A raposa recusou. O ouriço perguntou o motivo da
recusa. – É que, respondeu a raposa, os carrapatos já estão engurgitados de
sangue e não me sugam mais; se tu os tiras, virão outros esfomeados que sugarão
o pouco de sangue que me resta.” – Do mesmo modo, prosseguiu Esopo, “Sâmios,
este homem já não vos prejudicará, pois é rico; mas, se o condenais à morte,
outros virão, que, espicaçados pela sua pobreza, vos roubarão e dissiparão o
erário público.” (RETÓRICA, XX, 3)
Essas referências mostram que,
por mais obscuras que sejam as informações a respeito da origem da fábula grega
e do fabulista Esopo, essas narrativas fixaram-se sob seu nome e foram
veiculadas por toda a Grécia, adquirindo a popularidade que permanece até
nossos dias.
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Fonte:
Eliane Quinelato: “A figurativização do trabalho nas fábulas de Esopo”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Unesp, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de concentração: Estudos Literários).Orientadora: Profª. Drª. Maria Celeste Consolin Dezotti). Araraquara, 2009.
Fonte:
Eliane Quinelato: “A figurativização do trabalho nas fábulas de Esopo”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Unesp, para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de concentração: Estudos Literários).Orientadora: Profª. Drª. Maria Celeste Consolin Dezotti). Araraquara, 2009.
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